Para além da dicotomia superficial entre aqueles que dizem que acreditar ser o mercado uma entidade satânica e aqueles que acreditam na ingenuidade do conto liberal, é preciso analisar de forma atenta como, quem, quanto e em quais condições um ativo público é colocado no mercado. No caso da Sabesp, vários pontos chamam a atenção de todos aqueles que, com ceticismo, não caem em narrativas majoritárias e preferem analisar os fatos.
A coisa toda começa ainda na campanha de 2022, quando uma batalha narrativa foi travada como se o grande feito econômico necessário ao Estado de São Paulo fosse a desestatização de uma empresa de saneamento com 100% eficiência em 87% dos municípios que atendia – e com mais de 80% nos outros 13% – sendo superavitária e rendendo cerca de 500 milhões de reais por ano em dividendos ao Governo de São Paulo.
O principal argumento usado foi o de que a desestatização reduziria a conta de água. Uma mentira desmentida pela auditoria contratada pelo próprio Governo. Ao contratar a consultoria International Finance Corporation (IFC) para realizar o estudo preparatório para a privatização da Sabesp, o governo gastou R$ 45,6 milhões e ouviu da empresa que, sem ajuda estatal – o chamado subsídio – não haveria queda no valor da conta de água no estado. O estudo apontou que “a redução tarifária se dará a partir do uso de parte dos recursos gerados pela venda das ações do governo do estado de São Paulo, de modo que não haja impacto no valor da empresa e em seus acionistas.”
Ou seja, o governo terá de usar o valor que vai receber pela venda da Sabesp para subsidiar o caixa da própria Sabesp e assim os novos investidores conseguirão maiores fatias sem necessidade de aporte. Essa falta de capacidade do governo em argumentar o porquê da privatização é um forte indício de que o real motivo da venda era justa e unicamente a operação de venda.
Após uma batalha custosa politicamente, tanto na Assembleia Legislativa quanto na Câmara Municipal de São Paulo, o governo aprovou um processo em duas fases: a primeira buscaria um investidor de referência, tanto para balizar os preços como para traçar responsabilidades, e a outra uma oferta pública no mercado. A oferta envolveu 32,3% das ações da companhia, pelas quais o governo de SP arrecadou R$ 14,8 bilhões e reduziu sua fatia de 50,3% para 18% do capital.
A Equatorial adquiriu 15% da companhia, tornando-se o grupo de referência. Outro detalhe bastante curioso é que mesmo a Sabesp sendo lucrativa e estratégica, apenas uma única oferta foi feita pela empresa. O edital foi organizado de modo que, magicamente, apenas um grupo, como a Equatorial, se interessou e teve condições de ganhar bilhões de reais.
Outro aspecto que não pode passar despercebido é quem são os donos da Equatorial: o Banco Opportunity, de Daniel Dantas, condenado por corrupção e suborno na Operação Satiagraha, é o maior acionista, com 6,2%; seguido pela Atmos Capital com 5,4%, a Capital World Investors (um fundo americano) com 5,1%, a Squadra Investimentos (refratários do BTG liderados por Guilherme Aché), o Canada Pension Plan com 4,9% e a BlackRock com 4,9%.
Com oferta única, a Equatorial ofereceu apenas R$ 67 por ação ao Governo pelas ações da companhia e, ainda no mesmo dia, as ações foram comercializadas a R$ 82. Cerca de 20% de valorização em apenas um dia.
No outro grupo, os outros 17,3% restantes, houve uma corrida do ouro entre corretoras, bancos e gestoras para conseguir abocanhar o lote de ações que sabidamente estava abaixo do valor. Como todos queriam o maior número possível de ações por R$ 67 – e que já estavam sendo comercializadas a mais de R$ 80 – havia mais pessoas querendo comer o bolo do que bolo para distribuir. Com isso, Tarcísio pôde escolher a dedo para quais bancos, gestoras e fundos ele executaria as ordens de compra e dar o direito de morder cerca de 2 bilhões de reais num único dia.
O mito liberal criado para justificar a metamorfose do bem público para o ativo privado só se sustenta num cenário de concorrência nas ofertas de valores e serviços. No caso da Sabesp, a privatização de um monopólio, em um edital de oferta única e com a oferta pública em que o governo decidiu quem pôde comprar, não há competição ou concorrência real. O que existe é a compra de apoio do mercado em troca de presentes que em nada favorecem o cidadão paulista, mas são pagos por ele. Não é sem motivos que o “Trade Tarcísio” tem virado jargão em setores do mercado que já vislumbram o atual governador de São Paulo na presidência do país no pleito de 2026.
Com esse modelo de socialização dos custos e privatização dos lucros, não há dúvidas de que Tarcísio terá todo o apoio que precisa da Faria Lima.