Depois de semanas de negociação sem resultado entre as três grandes montadoras de veículos nos Estados Unidos – GM, Ford e Stellantis (proprietária da Chrysler e Fiat) –, as chamadas “Big Three”, e o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Automobilística dos Estados Unidos (UWA) para a renovação do acordo coletivo de quatro anos que expirou em 14 de setembro, o UWA deflagrou uma greve que paralisou três fábricas, uma de cada empresa, e ameaça se expandir para as demais.
O sindicato exige um aumento de 36% nos salários e o fim de um acordo estabelecido, em 2007, quando as empresas estiveram à beira da falência, que permitia que novos trabalhadores contratados recebessem salários inferiores aos dos trabalhadores mais antigos na mesma função. Além de lutar por salários muito mais altos, um de seus objetivos é estender salários e outros benefícios oferecidos na fabricação de carros convencionais para pessoas que trabalham em veículos elétricos (EVs), cuja produção normalmente usa mais robôs e menos operários.
O descontentamento dos trabalhadores se deve, entre outras questões, ao fato de que as empresas, depois da crise de 2008, e graças à ajuda do governo, recuperaram seus lucros, que agora estão engordando os estratosféricos bônus dos CEOs e os dividendos dos acionistas, enquanto os salários no setor vêm sendo corroídos ao longo dos anos. Comparados aos salários pagos no setor em 2003, o salário real dos trabalhadores da indústria automobilística americana estão 30% mais baixos, em termos reais.
As causas desse declínio são complexas, dentre as quais se destacam as concessões feitas pelo sindicato na crise financeira de 2007, mas também a mudança da localização das empresas dos Estados do Meio-Oeste (Detroit), onde o nível de sindicalização é maior, para estados do sul dos Estados Unidos, onde os obstáculos para a formação de sindicatos é muito maior. Atualmente apenas 6% dos trabalhadores americanos no setor privado são sindicalizados, contra 30%, em 1970.
Segundo levantamento do jornal Washington Post (22/9), “No início da década de 1990, os empregados comuns na produção de veículos automotivos ganhavam em média 43 dólares por hora, em valores atuais, mais do que qualquer um dos seus pares do setor privado, não gestores, em 165 outras indústrias para as quais temos dados do Bureau of Labor Statistics. Mas, como sugere a atual greve da UWA contra os grandes fabricantes de automóveis de Detroit, as coisas mudaram. No ano passado, os trabalhadores da indústria automobilística ganharam em média cerca de 32,70 dólares por hora, ou 30 por cento menos do que no pico de 2003, após ajuste à inflação. E isso os coloca em algum lugar no meio do grupo entre trabalhadores comparáveis – pessoas como funcionários de produção em indústrias manufatureiras, trabalhadores não gerenciais em indústrias de serviços e trabalhadores da construção civil”.
Ainda segundo o jornal, essa que foi, outrora, a elite do operariado americano viu seus salários despencarem, entre 1993 e 2023, ainda mais do que qualquer outro dos 166 setores acompanhados. O salário por hora de um trabalhador das “Big Three” (GM, Ford e Stellantis) filiado à UWA varia, atualmente, entre US$ 18 e US$ 32 por hora para os trabalhadores em tempo integral e entre US$ 16 e US$ 19 para trabalhadores temporários. Ainda segundo a matéria do Washington Post, “Por volta de 1997, à medida em que a bolha da Internet inflava, os empregos na indústria de software ultrapassaram os trabalhadores da indústria automobilística e assumiram o primeiro lugar em salários não gerenciais, seguidos por empregos de design de sistemas de computador e outros trabalhos de tecnologia, embora os trabalhadores de veículos automotores permanecessem entre os cinco primeiros, com cerca de US$ 44 por hora, ajustado pela inflação. Mas, na década de 2000, os seus rendimentos começaram a cair, após ajustamento à inflação. A indústria automobilista caiu para cerca do 40º lugar no ranking, atrás de indústrias como obras comerciais e de construção de estradas, mineração e administração de escritórios”.
Além disso, o aumento do ativismo sindical em decorrência das recentes medidas de política industrial adotadas pelo governo Biden é notório. Como observou matéria da revista The Economist, “O contra-argumento de que o aumento do ativismo laboral será mais duradouro baseia-se em grande parte nas ações de Biden. A sua política industrial – cerca de 1 bilhão de dólares em subsídios para semicondutores, veículos elétricos e energias renováveis – foi elaborada tendo em mente os trabalhadores. Grande parte do financiamento depende de compromissos de pagamento de salários justos. Algumas das isenções fiscais também incluíram a formulação de que as empresas devem permanecer neutras quando os seus trabalhadores tentam organizar sindicatos. Isto se revelou importante na Blue Bird, fabricante de ônibus escolares na Geórgia, um estado hostil aos sindicatos. Em maio, a maioria dos trabalhadores votou pela adesão a um sindicato, um avanço para o movimento operário no Sul”.
É preciso considerar também as mudanças tecnológicas, principalmente com a chegada dos carros elétricos. Por serem mecanicamente menos complicados do que os veículos convencionais, exigem menos trabalhadores nas linhas de montagens, que estão sendo substituídos por mais robôs. Há ainda os problemas macroeconômicos, nomeadamente o aumento da inflação, em grande parte resultado das políticas protecionistas adotas pelos governos Trump e Biden, sob pretexto de proteger os empregos nos Estados Unidos, mas que contribuem para elevar a inflação e, consequentemente, corroer o poder aquisitivo dos trabalhadores que supostamente pretendiam proteger.
Resolver esse imbróglio não é simples, pois se a indústria aceitar pagar o que sindicato demanda, o movimento poderá se estender para outras categorias em função das condições apertadas do mercado de trabalho dos Estados Unidos, onde a taxa de desemprego tem estado abaixo de 4% nos últimos cinco anos, com exceção de 2020, quando começou a pandemia de Covid-19.
Na verdade, os atuais níveis salariais no setor automotivo podem ser mantidos sem mexer nos gordos lucros das empresas e nos bônus milionários de seus executivos graças às tarifas que estão sendo impostas aos carros elétricos chineses que foram taxados em 27,5% por Trump no início da guerra comercial, em 2018, e estão virtualmente fora do mercado americano. Isso permite acomodar as demandas dos trabalhadores sem afetar seriamente os lucros, transferidos os custos mais elevados para os consumidores americanos. Isso não impede, contudo, que os concorrentes chineses ocupem outros mercados mundiais, como está acontecendo no Brasil, onde mais da metade dos carros importados vendidos este ano vieram da China. Daí a demanda da Anfavea, que representa no Brasil os interesses das “Big Three”, de elevação do imposto de importação para carros elétricos chineses importados pelo Brasil para 35%, hoje entre 4% e 7% para veículos híbridos (gasolina/elétrico) e 0% para os totalmente elétricos, transferindo, assim, parte da conta dos salários, bônus dos CEOs e lucros dos acionistas das “Big Three” nos Estados Unidos para o consumidor brasileiro.