A desproporção entre o poderio militar dos dois países é tamanha que é impossível para a Ucrânia reconquistar os territórios já ocupados pela Rússia sem que os países da Otan entrem diretamente no conflito, coisa que, até o momento, está descartada. Com receio de tornar a guerra na Ucrânia uma guerra na Europa e uma guerra convencional em guerra nuclear, tanto os Estados Unidos quanto seus aliados europeus, até agora, limitaram-se a oferecer ajuda financeira e militar aos ucranianos, mas sem entrar, pelo menos oficialmente, no conflito, recusando-se a colocar suas tropas para lutar ao lado dos ucranianos.
O resultado provável desta estratégia será a devastação completa do país. Quanto mais o conflito se prolongar, mais a Ucrânia terá sua infraestrutura destruída e sua economia destroçada, mesmo que consiga infligir perdas materiais e humanas sobre os russos. Estima-se que o PIB da Ucrânia cairá 45% este ano. Olhando friamente a questão, o mais sensato, para evitar mais perdas humanas e destruição material, seria a paralisação imediata do conflito, com a Ucrânia aceitando que as áreas no leste do país já ocupadas pelos russos fiquem sob seu controle. Mesmo porque, como observou recente editorial do Wall Street Journal (31/03), “A experiência do comportamento da Rússia na Geórgia em 2008 e no leste da Ucrânia em 2014-15 é que o Sr. Putin não desiste do território quando suas tropas o ocupam”.
Para o povo ucraniano, principalmente para a maioria de etnia russa que vive no leste do país, foco da ofensiva russa, essa troca de governo provavelmente não implicaria em grandes mudanças, uma vez que não se trata de uma guerra cujo objetivo seja exterminar a população local ou tomar suas propriedades, mas de colocar a região sob o controle do governo de um país com o qual grande parte da população que ali vive já se identifica etnicamente.
A questão é que essa solução não interessa principalmente aos Estados Unidos, cuja opção de “defender” a Ucrânia até o último ucraniano é a mais conveniente, pois sem precisar colocar seus soldados para morrer no campo de batalha podem prolongar indefinidamente o conflito a ponto de, no limite, quebrar a economia russa, enfraquecer o país militarmente e torcer por uma improvável queda de Putin. Também não interessa ao presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy, que, de uma hora para outra, viu-se alçado, de figura obscura na cena política mundial, para a condição de grande estadista defensor dos valores democráticos do Ocidente contra o autoritarismo. Ceder territórios depois de tantas mortes e devastação em uma guerra inglória seria provavelmente o fim de sua curta carreira política.
A questão é que Putin não cairá nessa armadilha e, caso os Estados Unidos e a Otan enviem mais armas para a Ucrânia, como ficou acertado na visita recente a Kiev feita pelo secretário de Estado norte-americano Antony Blinken e o secretário de defesa Lloyd Austin, a tendência é que os russos dobrem a aposta e ataquem com ainda mais força, para tentar liquidar logo essa fatura que já está ficando bem pesada. O resultado inevitável será a completa destruição do palco de batalha, no caso o própria Ucrânia, o que, a esta altura, não interessa à Rússia, aos países europeus e muito menos ao povo ucraniano, que é quem mais está sofrendo com uma guerra que poderia nem ter começado caso os Estados Unidos e a Otan não tivessem deliberadamente provocado o conflito.
Os únicos que teriam alguma coisa a ganhar com isso são os Estados Unidos, seja porque transformarão a dependência da Europa em relação ao gás natural russo em uma nova dependência em relação a gás natural liquefeito (GNL) americano, seja porque essa guerra foi uma verdadeira benção para o complexo industrial-militar americano. Desde a Segunda Guerra Mundial, o chamado complexo industrial-militar americano, comandado pelos cinco principais fornecedores para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos – Lockheed Martin Corporation, Raytheon Company, Northrop Grumman Corporation, Boeing Company e General Dynamics Corporation – vêm obtendo enormes lucros com as centenas de guerras iniciadas pelos Estados Unidos e o grande número de contratos do governo americano.
Como lembrou editorial recente do jornal Global Times (31/03) “Em 15 de março, o presidente dos EUA, Joe Biden, assinou um ato de financiamento para enviar US $ 13,6 bilhões em ajuda à Ucrânia, que inclui armas solicitadas pelos ucranianos, como os sistemas antitanques e antiaéreo. Em 16 de março, Biden anunciou novamente outros US $ 1 bilhão em nova assistência, fornecendo à Ucrânia 9.000 sistemas antitanques; 7.000 armas leves; 800 sistemas antiaéreos Stinger; 20 milhões de cartuchos de munição e 100 drones”. Agora no final de abril, Biden pediu autorização ao Congresso para mais US$ 33 bilhões; grande parte disso será em armas fabricadas pelas empresas norte-americanas.
Em visita à fábrica da Lockheed Martin, que monta os mísseis antitanque Javelin para a Ucrânia, o presidente Joe Biden afirmou “Ser o arsenal da democracia também significa empregos bem remunerados para os trabalhadores americanos no Alabama, nos Estados Unidos em toda a América, onde o equipamento de defesa é fabricado e montado” (WSJ, 03/05/2022)
Tulsi Gabbard, político dos EUA e candidato à indicação democrata nas eleições presidenciais dos EUA de 2020, afirmou, em entrevista à Fox News, que alguns no governo Biden “realmente queriam que a Rússia invadisse a Ucrânia” porque “o complexo industrial militar é aquele que se beneficia disso”, conforme artigo assinado por Peter Beinart, publicado no New York Times, em 28/3 (The Friend of Our Enemy Is Not a ‘Traitor’).
Em artigo recente publicado na revista Foreign Affairs – The Return of Pax Americana? – Michael Beckley e Hal Brands vão direto ao ponto quando afirmam: “No entanto, o presidente russo, Vladimir Putin, inadvertidamente, fez um enorme favor aos Estados Unidos e seus aliados. Ao chacoalhá-los de sua complacência, ele lhes deu uma oportunidade histórica de se reagrupar e recarregar para uma era de intensa competição – não apenas com a Rússia, mas também com a China – e, finalmente, reconstruir uma ordem internacional que recentemente parecia estar indo para o colapso”.
Em artigo publicado na revista inglesa The Economist, edição de 22/03, cujo título é “John Mearsheimer on why the West is principally responsible to the Ukrainian crisis”, o autor destaca que em todos os episódios envolvendo russos e ucranianos desde 2008 é possível identificar as digitais dos Estados Unidos. Conforme destacou o mencionado artigo, tudo começou na cúpula de Bucareste da Otan, em abril de 2008, quando o governo de George W. Bush pressionou a aliança para anunciar que a Ucrânia e a Geórgia se tornariam membros. Na ocasião, os líderes russos responderam imediatamente com indignação, caracterizando esta decisão como uma ameaça existencial à Rússia e prometendo impedi-la. Segundo noticiou a imprensa, Putin “ficou furioso” e advertiu que “se a Ucrânia se juntar à Otan, o fará sem a Crimeia e as regiões orientais”.
Os Estados Unidos ignoraram a linha vermelha de Moscou e avançaram para fazer da Ucrânia um baluarte ocidental na fronteira com a Rússia e torná-la uma democracia pró-americana. Isso tudo levou às hostilidades de 2014, depois que uma revolta, apoiada pelos Estados Unidos, fez com que o presidente pró-russo da Ucrânia, Viktor Yanukovych, fugisse do país. Em resposta, a Rússia tirou a Crimeia da Ucrânia e ajudou a alimentar uma guerra civil que eclodiu na região de Donbas, no leste da Ucrânia.
A provocação seguinte veio em dezembro de 2021 e levou diretamente à guerra atual. Em dezembro de 2017, o governo Trump decidiu vender “armas defensivas” de Kiev. O que conta como “defensivo”, no entanto, não é claro, e essas armas certamente pareciam ofensivas para Moscou e seus aliados na região de Donbas. Outros países da Otan entraram no ato, enviando armas para a Ucrânia, treinando suas forças armadas e permitindo que ela participasse de exercícios aéreos e navais conjuntos. Em julho de 2020, a Ucrânia e os Estados Unidos co-sediaram um grande exercício naval na região do Mar Negro, envolvendo marinhas de 32 países.
Já no governo Biden, as provocações tiveram continuidade. Em novembro de 2021, foi assinada a “Carta EUA-Ucrânia sobre Parceria Estratégica”, por Antony Blinken, secretário de Estado americano, e Dmytro Kuleba, seu homólogo ucraniano com o objetivo de “ressaltar… um compromisso com a implementação na Ucrânia das reformas profundas e abrangentes necessárias para a integração plena às instituições europeias e euro-atlânticas.”
Putin considerou esta situação em evolução intolerável e começou a mobilizar seu exército na fronteira da Ucrânia na primavera passada para sinalizar sua determinação a Washington. Mas não teve efeito, pois o governo Biden continuou a se aproximar da Ucrânia. O último lance, antes da guerra, foi a exigência russa de uma garantia por escrito de que a Ucrânia nunca se tornaria parte da Otan e que a aliança removesse os ativos militares que havia implantado no leste europeu desde 1997. Como é sabido, as negociações subsequentes fracassaram e um mês depois Putin lançou uma invasão à Ucrânia para eliminar a ameaça que viu da Otan.
Há quem sustente que Putin invadiria a Ucrânia de qualquer jeito e que os Estados Unidos e a Otan apenas lhe propiciaram a oportunidade. É uma hipótese que, infelizmente, não há como comprovar. O que podemos afirmar com certeza é que, nesse jogo, não há inocentes.
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