O mundo em 2024

    Desde tempos imemoriais, que antecedem o próprio Egito e a Grécia antiga, para não falar da China dos imperadores míticos, o desejo de prever o futuro tem sido um desejo irrefreável do ser humano, sobretudo daqueles que se lançam em grandes aventuras e empreitadas. O que mudou com o tempo foram apenas os métodos, à medida em que a ciência foi jogando luz sobre as zonas de sombra antes dominadas por conhecimentos empíricos, crenças e superstições. No passado, reis e guerreiros recorriam aos sacerdotes, sacerdotisas, adivinhos e pitonisas para tentar vislumbrar o que o destino lhes reservava em suas empreitadas de conquista, até que, como relatado por Hegel na famosa conversa entre Napoleão e Goethe, o destino deu lugar à política para determinar o futuro dos homens.

    Não é por acaso, portanto, que todo início de ano o ritual se repete e se fazem previsões sobre quase tudo, da quantidade de chuvas às colheitas de grãos, da produção de aço às vendas de cervejas, de quanto a economia de cada país vai crescer, de quanto vai ter inflação, as taxas de juros e as taxas de câmbio, de quantas guerras podem começar e quantas podem acabar, de quem vai se dar bem, de quem vai se dar mal. Afinal de contas, a maior parte das grandes decisões dependem das expectativas quanto ao futuro e quem fizer o melhor julgamento corre menos risco de errar.

    O problema é que tanto no passado, como hoje, “prever” o futuro é uma tarefa impossível dado o elevado grau de incerteza associado tanto aos fenômenos naturais, quanto ao comportamento humano, sujeito ao livre-arbítrio. Estava errado Poincaré quando afirmou que o acaso é apenas o resultado de nossa ignorância. Diferentemente do risco, que é algo estatisticamente calculável, a incerteza é algo radical e inerentemente incalculável. Diante da dificuldade de lidar com a incerteza, o que os estrategistas fazem é adotar procedimentos heurísticos e modelos estatísticos que reduzem arbitrariamente a incerteza a risco para lidar, mesmo que precariamente, com o futuro.

    A experiência comprova, entretanto, que tais modelos somente funcionam como instrumentos de predição quando situações passadas se reproduzem mais ou menos da mesma forma no futuro. Quando isso não ocorre, como é bastante usual, os modelos falham miseravelmente, como ficou evidente na crise de 2008 e em tantas outras ocasiões. Se voltarmos um ano e olharmos as previsões para 2023, notaremos que havia um razoável consenso de que a economia americana, pressionada pelo baixo desemprego e por uma demanda aquecida teria que subir os juros para controlar a inflação e que a probabilidade de um pouso turbulento era de 70% (100% para a Bloomberg), que o mundo estava na iminência da recessão, da estagflação e uma possível crise financeira, que a Ucrânia colocaria a Rússia nas cordas com os novos armamentos fornecidos pelos Estados Unidos, que Trump era carta fora do baralho nas eleições americanas e que a economia chinesa poderia capotar sob o peso da crise imobiliária e de endividamento.

    A realidade, contudo, foi outra. No caso da economia americana e mundial ocorreu praticamente o oposto. Diferentemente do que previam os modelos, apesar do baixo desemprego e da pressão dos salários, a inflação caiu mais que o esperado e, apesar dos juros elevados, evitou-se uma recessão. As previsões catastrofistas em relação à China não se concretizaram e o país fechou o ano batendo a meta de crescimento de 5%. Tampouco as dificuldades do setor imobiliário chinês desencadearam a sempre esperada e nunca ocorrida crise de crédito. A tão decantada ofensiva de primavera da Ucrânia mostrou-se um retumbante fracasso e Trump segue firme na disputa eleitoral americana e, graças aos erros e dificuldades de Biden, sobretudo em política externa, política de migração e segurança e pode até vir a ganhar a eleição em novembro se de fato conseguir concorrer.

    Diante disso é conveniente vestirmos as sandálias da humildade antes de adentrarmos nesse recinto sagrado onde nada está escrito a priori, o futuro.

    A maioria das previsões a respeito de 2024, em grande parte influenciada pela tendência de se dar aos acontecimentos recentes um peso maior do que aos mais antigos, apontam para um 2024 sem grandes sustos, dado o relativamente bom desempenho de 2023, com a economia mundial apresentando um ligeiro viés de baixa, que já vinha se anunciando no último trimestre do ano anterior, ao que se deu o nome de “pouso suave” da economia global. Segundo essas previsões, a economia global, em 2024, deverá crescer abaixo do que em 2023, engatando assim o terceiro ano consecutivo de queda, mas sem grandes turbulências.

    Conforme destacou o jornal Valor Econômico (12/01), ao comentar relatório do Banco Mundial sobre as perspectivas para 2024, “A economia global vai desacelerar pelo terceiro ano consecutivo em 2024, pressionada pelas taxas de juros elevadas, inflação alta persistente, forte retração do comércio e menor crescimento da China”. Segundo o mais recente relatório Perspectivas Econômicas Globais, o Banco Mundial prevê uma expansão de 2,4% da economia global neste ano, de 2,6% no ano passado, 3% em 2022 e 6,2% em 2021 — que reflete a forte retomada da recessão de 2020 provocada pela pandemia de covid-19. Segundo o relatório, o desempenho da atividade global no período de cinco anos até 2024 será o mais fraco desde o início da década de 1990, um “marco lamentável” que deixará uma em cada quatro economias em desenvolvimento mais pobre do que antes da pandemia. Além disso, em cerca de 40% dos países mais pobres, o patamar econômico não terá retornado aos níveis de 2019, último ano antes da pandemia”.

    Já a ONU, segundo o mesmo Valor Econômico (04/01), vê desaceleração do crescimento da economia mundial para 2,4% em 2024. Segundo o jornal, “a ONU prevê que o crescimento nos EUA vai desacelerar para 1,4% este ano, ante os 2,5% de 2023, um resultado melhor do que a expansão de 1% projetada em maio. Também prevê uma desaceleração na China, a segunda maior economia do mundo. Por outro lado, a ONU espera assistir a uma recuperação do crescimento econômico na zona do euro depois de uma desaceleração maior que a esperada em 2023. Embora se espere uma recuperação do crescimento em muitas economias em desenvolvimento na África e em outras partes do mundo este ano, a ONU disse que isso ficará muito abaixo dos níveis de atividade previstos antes da pandemia de covid-19”. A ONU espera, ainda, “uma desaceleração ainda maior da inflação neste ano em relação ao pico em três décadas alcançado em 2022. Ela deve cair de 5,7% em 2023 para 3,9%”.

    Dado, contudo, o histórico pouco confiável dessas previsões, e mesmo admitindo que tais cenários possam até ser os mais prováveis, seria conveniente observá-los com um grão de sal, sobretudo porque as incertezas que cercam o mundo em 2024 são tão grandes que é quase certo que as previsões atuais tenham o mesmo destino que as de um ano atrás.

    Se como afirmamos no início, é a política que define o futuro dos homens, há razões de sobra para dormir com um olho aberto, pois, nesse terreno, o mundo está mais do que nunca carregado de incertezas. Como afirmou Dany Rodrik, em artigo no Project Syndicate (06/09/2023), o real 18 inimigo da economia global é a geopolítica, não o protecionismo, pois em maior ou menor grau nunca deixaremos de conviver com ele.

    Categorias com globalização/antiglobalização, liberalismo/neoliberalismo/mercantilismo estatista, estado/mercado, podem ajudar a demarcar campo do debate de ideias, mas explicam pouco o mundo real, onde nada é apenas preto ou branco. O que move o mundo são os interesses de quem detém as rédeas do poder que lançam mão das teorias que melhor lhes convêm no momento. Em nome da democracia se cometem os mais terríveis crimes contra a humanidade e em nome da liberdade do indivíduo se produzem as piores formas de servidão humana.

    Em 2024, mais da metade da população mundial irá às urnas. É certo que na maioria dos casos os resultados, embora de grande importância local, afetarão pouco os destinos do mundo. Mas pelo menos em um deles será um acontecimento com repercussões mundiais importantes: as eleições norte-americanas. Talvez se pudesse objetar que em questões fundamentais de política externa há um certo consenso bipartidário nos Estados Unidos, de modo que, seja Biden, seja Trump, ou outro qualquer o próximo presidente norte-americano, em questões como a rivalidade estratégica Estados Unidos-China, a nova guerra-não-tão-fria contra a Rússia, a política norte-americana para o Oriente Médio ou as tendências protecionistas, talvez não houvesse grandes mudanças.

    Não é bem assim. Afora o fato de que Trump, é por si mesmo, uma fonte inesgotável de incertezas, devido ao seu comportamento errático, o fato é que, do ponto de vista geopolítico, há entre Trump e Biden, os prováveis candidatos em 2024, diferenças, que para o mal ou para o bem, podem criar cenários globais totalmente divergentes. Temas como a guerra na Ucrânia, o futuro da Otan, a rivalidade com a China, as relações dos Estados Unidos com a União Europeia, isso para não falar de questões internas dos Estados Unidos, como migração, segurança e democracia podem tomar rumos completamente diferentes dependendo do desfecho do pleito norte-americano, gerando consequências imprevisíveis não só nos Estados Unidos, como no resto do mundo.

    Não se pode descartar, por exemplo, que Trump, um confesso admirador de Putin, desse as costas para a Ucrânia, deixando a Europa e a Otan em situação difícil. Até por isso Putin não está com nenhuma pressa para iniciar negociações visando o fim da guerra. Com relação à China, uma eventual volta de Trump ao poder seria uma caixa de surpresa. Trump tanto poderia adotar uma postura totalmente pragmática, procurando acordos comerciais com a China em linha com seu 19 devaneio de fazer a América Grande de Novo, segundo sua filosofia que guerras comerciais são fáceis de vencer, deixando Taiwan à própria sorte, como poderia abandonar a atual política de Uma só China, apoiar abertamente a independência da ilha e provocar um confronto militar que colocaria o mundo à beira de uma Terceira Guerra Mundial, ou, o mais provável, oscilar entre uma e outra posição, tornando a situação geopolítica global ainda mais instável.

    Mas essas seriam questões para 2025. Para 2024, é plausível considerar que, em grande medida, o futuro da economia global será bastante influenciado pelo desempenho das economias americana e, principalmente, chinesa, dado que esta última tem sido responsável por cerca de ¼ do crescimento global. Mas não se pode desconsiderar o que se passará em outros cantos do mundo, como a Europa, o Japão, a Índia, a África e a América Latina. Sobretudo é preciso ficar de olho em como avançará, em 2024, questões como o desacoplamento entre as economias americana e chinesa, o aumento do protecionismo, a reconfiguração das cadeias globais de suprimento.

    Na Inglaterra haverá eleições, mas uma eventual vitória trabalhista não trará grandes mudanças, sequer no relacionamento com a União Europeia. A Índia também irá às urnas, mas é altamente improvável que Narendra Modi e seu Partido do Povo Indiano saia do poder. Na Rússia também haverá eleições, mas parece que o destino de Putin, no momento, depende mais das eleições americanas do que as da própria Rússia. No Brasil, as eleições municipais podem se transformar em um novo round entre direita e esquerda, reproduzindo a polarização de 2022.

    Esta primeira metade dos anos 20 do século XXI está se mostrando extremamente problemática e 2024 tem tudo para ser um ponto de virada, tanto para o bem, quanto para o mal. Podemos assistir tanto um movimento positivo no sentido da recuperação econômica e da estabilização geopolítica quanto um movimento no sentido oposto, com o mundo descambando para uma nova década de conflitos. E isso não dependerá de fenômenos fora do controle humano. Ao contrário, a política será como sempre o fator determinante.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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