Diogo Oliveira
Biólogo, antropólogo, indigenista especializado na Funai.
Neste fim de agosto de 2021, o STF retomou a discussão sobre a demarcação de terras indígenas, tendo como base na disputa judicial entre a União e a etnia xokleng contra o estado de Santa Catarina, em nome da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, na região do Alto Vale do Itajaí. A reserva indígena foi criada em 1926, com 40 mil hectares, mas reduzida para 14 mil, em 1954. Em 1979 começou a ser construída a Barragem Norte, para contenção de cheias do rio Itajaí, e 20 anos depois, como compensação pelos impactos causados, foram realizadas obras de infraestrutura e prestados serviços públicos aos índios. Daí surgiu a proposta de reconstituição de área com dimensão próxima da original, com 37 mil hectares, a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em 1999. Atualmente vivem na área indígena cerca de duas mil pessoas, organizadas em oito aldeias, entre indígenas, mestiços e não indígenas, além de haver índios que vivem na cidade ou em pequenos sítios fora das aldeias.[i] Na área de ampliação vivem cerca de 500 famílias de pequenos agricultores, que pelo texto constitucional devem ser removidas de lá e não têm direito a indenização pelos imóveis.
O caso dos xokleng representa uma centena de situações semelhantes ao redor do País, nos quais, em muitos deles não houve nenhuma garantia de acesso à terra para os indígenas, nem mesmo do mínimo para a subsistência. Esta é a situação de indígenas guarani, xavante, kaiowa, entre outros, conhecida há muitas décadas pelo Estado brasileiro, e a de “ressurgências étnicas”, formadas a partir da “etnogênese” de grupos autoidentificados enquanto indígenas. Para a resolução dessas disputas fundiárias é necessária muita cautela e diálogo entre as partes envolvidas, para fazer a mediação e a pactuação entre os direitos. Do contrário, serão provocados traumas e ressentimentos que causarão um mal-estar no conjunto na sociedade local e nacional.
O clima de confusão política que o Brasil atravessa e as incertezas globais no início do terceiro milênio deixam turvo o horizonte para um debate democrático e maduro com vistas a solucionar de forma prática essas questões. A interferência internacional na pauta ambiental e indígena dá visibilidade aos acontecimentos, porém é ruim no sentido de trazer para a escala geopolítica um assunto eminentemente interno ao Brasil, que tem, além deste, um conjunto de dilemas para resolver consigo mesmo.
O Caso Xokleng
Os xokleng são indígenas do tronco étnico Jê, que viviam de caça e coleta pelo alto das serras, circulando um amplo território que ia desde o sul da serra paranaense até o nordeste gaúcho. A partir de meados do século XIX, ao longo desta trajetória passaram a encontrar com frequência as famílias dos pioneiros colonos catarinenses, com as quais travavam sangrentos conflitos. Desta forma, os indígenas viviam sob ameaça permanente das ações dos bugreiros, que eram pequenas tropas especializadas em proteger as colônias e em perseguir e matar os índios. A guerra entre colonos e botocudos durou 62 anos, entre 1852 e 1914, até que os indígenas aceitaram se deixar pacificar, por intermédio de um sertanista do Serviço de Proteção ao Índio, Eduardo Hoerhann, e dos anciãos xokleng, Antônio Caxias Popó e Vacla Pathé.[ii]
Foi a pacificação que garantiu o reconhecimento pelo governo catarinense da área original, de 40 mil hectares, com a construção do Posto Indígena Duque de Caxias, em 1926, onde os índios passaram a viver. Essa área foi reduzida em 1954 e afetada pela construção da barragem, em 1979, o que inviabilizou também o polo industrial que surgia em José Boiteux naquele período. O alagamento causado pela barragem forçou a mudança das aldeias para as encostas dos morros e retirou a área de baixada plana, que era usada para produção agrícola e moradia. Desde então, as casas foram atingidas por várias enchentes e algumas áreas dos morros estão em risco de deslizamento.
Os descendentes atuais dos xokleng, em parte, são funcionários públicos de saúde e educação que atendem às próprias aldeias, aposentados e pensionistas, vivem de pequenos serviços ou trabalham nos frigoríficos da região. Inclusive, compartilham a área da reserva com mestiços e não indígenas em função dos casamentos, e uma grande parte deles é evangélico. Entre os anos 1940 e 1990, viveu junto dos indígenas um grupo autointitulado cafuzo, remanescentes dos rebeldes na Guerra do Contestado (1912-1916), que foram reassentados em outra localidade.[iii] Também neste período, vários índios guarani e caingangues foram transferidos para a reserva junto dos xokleng. Nas vilas de agricultores há áreas de reflorestamento e serrarias, granjas, tanques de peixes, plantações de fumo, hortaliças e alguma agricultura de subsistência, além de uma parte deles ser assalariada nas mesmas empresas que empregam os índios.
É necessário encontrar espaços para que uma parte dos moradores da área indígena atual sejam reassentados, inclusive em função do crescimento demográfico. Ao mesmo tempo, há um impasse para ser sanado com os demais moradores locais, com os municípios e o estado de Santa Catarina. Foi o governo estadual quem emitiu o título originário da colônia Harmonia, em 1897, e formou a cidade de Ibirama; assim como emitiu o título originário da reserva indígena, em 1926, e depois o reduziu, em 1954. A área indígena declarada em 1999 abarca, por exemplo, 50% da superfície do município de Vitor Meirelles e 40% de José Boiteux, que foram emancipados nos anos 1960.[iv] Inclusive, a região como um todo foi impactada pela construção da barragem, entre 1979 e 1992, com a desestruturação da economia e a perda do parque industrial[v]. Em pleno 2021, uma modificação desta grandeza na estrutura fundiária e administrativa do País não é algo simples de ser executado, portanto, carece de um profundo e amplo debate com a sociedade sobre a melhor forma de proceder.
A tese do marco temporal e sua aplicação em campo
Neste julgamento, o STF irá decidir a validade dos atos do governo estadual para a criação e a posterior redução da reserva dos xokleng, em 1926 e 1954, bem como do Ministério da Justiça para retomar a dimensão original, em 1999. Portanto vão decidir se existe um prazo para que a União passe a reclamar essas terras de volta e as atribuir integralmente para o usufruto exclusivo dos índios. Para ter uma noção da retroação da medida neste caso, em 1954, Getúlio cometeu o suicídio e Juscelino Kubitschek ainda não sabia que assinaria o decreto para a construção de Brasília; em 1926 foi reduzido o uso de balsas de acesso à Ilha de Santa Catarina, em função da construção da ponte Hercílio Luz como travessia para o centro de Florianópolis. É para evitar estes tipos de mal-entendidos que se pretende estabelecer um “marco temporal” na Constituição de 1988, para a anulação dos títulos dos imóveis instalados em áreas reconhecidas como sendo de ocupação tradicional indígena e destinadas à sua posse permanente e usufruto exclusivo. Dificilmente esta será uma solução, mas ao menos é uma iniciativa para o debate.
A proposta em discussão visa estabelecer um limite entre dois direitos:
i) direito de propriedade, que é cláusula pétrea prevista no Art. 5º da constituição de 1988, quanto às garantias individuais, e sujeito a cumprir sua função social e à “desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro”; e
ii) direito originário indígena de posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas, descritas no artigo 231 como aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
A mediação entre esses direitos fica mais complexa em função do acréscimo feito pelo constituinte no parágrafo 6º do mesmo artigo 231, que gera a impossibilidade de pagamento de indenização aos atuais ocupantes, nos seguintes termos:
“São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.“
Além de discutir o limite entre os títulos e o direito originário indígena, existe no caso concreto uma necessidade urgente de atribuição de terras mais adequadas para o reassentamento de famílias em vulnerabilidade que hoje vivem nas aldeias xokleng. Para fazer isso de uma maneira democrática e justa, é necessário diálogo entre os entes federados, com a participação dos indígenas e dos agricultores. É possível selecionar locais dentro do perímetro delimitado para a desapropriação por interesse social, que é prevista constitucionalmente e possibilita o pagamento de indenização e uma política de reassentamento. Inclusive, ao reconhecer a possibilidade de permanência de ocupantes não indígenas na área demarcada, é necessário discutir em quais termos, condições e limites é possível acontecer o usufruto compartilhado em terras indígenas. Isto naturalmente deve acontecer de forma integrada ao planejamento regional, estadual e nacional de crescimento econômico e desenvolvimento sustentável.
A tese do “marco temporal” foi extraída do julgamento pelo STF em um caso semelhante, o da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, na fronteira da Guiana com o estado de Roraima. Ela diz que, para a União anular e extinguir os títulos de terras reivindicadas por indígenas, é necessário que estas estivessem sendo ocupadas por eles em 1988, salvo renitente esbulho registrado por meio de contencioso jurídico. Acontece que, até 1988, os indígenas eram tutelados e não poderiam ingressar em juízo de forma autônoma. Na verdade, a decisão dispôs um conjunto de regras sobre as terras indígenas brasileiras, por exemplo, o veto às ampliações, a prioridade das unidades de conservação, a instalação de infraestrutura pública, a autonomia para o funcionamento do plano nacional de defesa, a proibição do arrendamento e do garimpo praticados pelos indígenas, o usufruto exclusivo das comunidades, a imprescritibilidade dos direitos dos índios sobre as terras. Isto significa que esta decisão do STF pode deliberar sobre mais assuntos referentes as áreas indígenas em todo o Brasil, uma vez que foi solicitada pela corte a “repercussão geral”, com vistas a juntar todos os casos judiciais semelhantes no País.
A partir da decisão do STF em 2009, foi executada a desocupação de Raposa Serra do Sol e de algumas outras terras indígenas pelo País, todas com o uso de forças de segurança pública. Como exemplo, temos as situações da TI Marãiwatsédé, dos índios xavantes, na antiga fazenda Suiá-Missu em Mato Grosso; e da TI Kayabi, no Pará, ambas em 2012. Nesta última, o fechamento de balsas de garimpo, exploradas pelos próprios indígenas mundurucu, levou ao confronto no qual um deles morreu baleado pela Polícia Federal.[vi] Ou seja, estes tipos de operações são especialmente difíceis de serem executadas em qualquer tipo de terreno, portanto, espera-se parcimônia em quaisquer decisões que forem tomadas pela corte e nas ações que forem realizadas a partir delas.
A presença indígena na construção da integridade territorial do Brasil
No final do século XV, um conjunto de bulas do papa Alexandre VI concedeu o direito de “aquisição originária” sobre terras ainda por descobrir aos reinos de Portugal e Espanha.[vii] Isto permitiu que as nações ibéricas tomassem posse das terras d’além mar por meio da conquista; a posse originária é o princípio que embasa o usucapião nas leis brasileiras. Quer dizer, é o reconhecimento da propriedade de direito a partir da comprovação da posse de fato.[viii] Aos ameríndios era reservado o direito de viver nas terras públicas, sobre as quais já tinham a posse e eram os “senhores naturais”, para participar do empreendimento colonial sob cuidados das ordens religiosas.
A “tese do indigenato” é apresentada como fundamentação da origem prístina da tutela jurídica aos indígenas. Ela se apoia em um alvará régio de 1680, que resolvia uma arenga entre posseiros e índios no antigo estado do Maranhão e Grão-Pará. Esta decisão entendeu que os indígenas deveriam permanecer na posse sobre as terras da Coroa, o que sempre foi a lógica na ocupação brasileira. Por princípio religioso e geopolítico, os nativos das colônias também eram, oficialmente, filhos de Deus, súditos da Coroa, cidadãos portugueses e força de trabalho, portanto, tinham direito de casamento e propriedade.
A bula papal Veritas ipsa, de 1537, condenou a escravização dos indígenas e dos africanos, reconhecendo-lhes direitos comuns, como casar e constituir família, adquirir bens (propriedade), tempo livre nos dias santos.[ix] Como não era permitido, ao menos legalmente, submeter os índios à escravidão, sua educação e serviços ficaram sob gerência das missões católicas. A concepção portuguesa de reconhecer os povos das colônias como nacionais e de permitir casamentos que lhes inseriam nas redes de parentesco dos nativos foi determinante para o sucesso da sua permanência no Brasil. Ou seja, a lógica que operou por princípio era a dos portugueses se integrarem aos nativos, tornando-se parentes dos indígenas, enquanto estes eram tratados como cidadãos e trabalhadores da Coroa, não como escravos. Foram estas estratégias que garantiram a resistência às constantes invasões francesas, inglesas, holandesas e espanholas durante o período colonial, que tem entre as suas batalhas mais emblemáticas as de Guararapes, em 1648 e 1649.[x]
As cercas ao Brasil impostas pelo Tratado de Tordesilhas foram rasgadas pelas marchas dos bandeirantes, muitos de origem judaica, juntando fileira em infantarias formadas por mestiços mamelucos paulistas e indígenas, entre os séculos XVI e XVIII. As bandeiras concorriam com o trabalho da Igreja católica, instalando povoações e fortificações militares nas fronteiras,[xi] e integrando-se aos indígenas.[xii] A formação territorial do País aconteceu pelo princípio da posse de fato, chamada no direito internacional de “uti possidetis, ita possideatis” (assim com possuis, continuará a possuir). As colônias espanholas em geral reconheciam o uti possidetis juris, ou seja, o direito de propriedade. Na arbitragem entre Portugal e Espanha no Tratado de Madri, em 1750, foi decidido a favor do direito pela posse, defendido por Alexandre de Gusmão, favorecendo os portugueses e estabelecendo aproximadamente os limites da base física do Brasil. A partir de 1757, com a criação do Diretório dos Índios, o trabalho do conjunto nacional para se integrar aos nativos e na proteção das fronteiras passa a ser considerado um assunto de Estado. Boa parte das ordens religiosas foram desmontadas e as terras consideradas “vacantes”, isto é, passíveis de serem expropriadas por meio da posse por “guerra justa”, especialmente a partir da carta régia de 1808, que extinguiu qualquer tipo de proteção especial aos índios.
No século XIX, as antigas colônias espanholas acabaram se fragmentando em pequenas repúblicas, sob a pressão do financiamento de diversos caudilhos locais pela Coroa britânica. A chamada “lenda negra” era uma doutrina responsável por macular o passado do processo de conquista ibérica nas Américas e comover a opinião pública na Europa e nos Estados Unidos, uma vez que os indígenas lutavam ao lado da Coroa espanhola. Livros e artigos dos padres jesuítas, descrevendo cenas de horror e violência ocorridas durante a conquista, pela ação dos bandeirantes e pela colonização, foram reproduzidos em diversas línguas nas gráficas em Amsterdã, Paris, Londres e Nova Iorque. Foi neste período, mais de 300 anos após o descobrimento, que as cortes e cientistas modernos das metrópoles criaram a categoria racial de “latinos” para se referir ao povo mestiço das colônias espanhola e portuguesa, acometidos culturalmente pela “lenda negra” da “medieval” tradição ibérica.[xiii]
A disputa militar, política e religiosa entre padres jesuítas e judeus bandeirantes forçou também a construção de uma “lenda negra brasileira”, marcada pela leitura histórica com carga negativa e preconceituosa relacionada às bandeiras. A historiadora Anita Novinsky ao longo de sua trajetória deixou uma vasta produção relacionada a presença de judeus, cristão-novos, no bandeirantismo. Ela considera a difamação e a criação da “lenda negra brasileira” sobre a trajetória do bandeirantismo uma manifestação de antissemitismo, para macular a participação judaica na construção do Brasil. Apoiada na revisão criteriosa da bibliografia colonial realizada por Jaime Cortesão, a autora ressalta os confrontos entre padres católicos e judeus naquele período, inclusive no campo religioso, o que intensificou no século XIX a reprodução de uma versão parcial dos fatos históricos para insultar o movimento das bandeiras.[xiv]
No Brasil, os indígenas, que tinham por tradição lutar pela Coroa portuguesa contra os espanhóis, mantiveram-se ao lado dos brasileiros nas batalhas para a expulsão dos portugueses durante a Guerra da Independência. A Independência brasileira foi conquistada graças à atuação diplomática da imperatriz Maria Leopoldina e da articulação política e econômica regional feita pelo Patriarca José Bonifácio, e seu irmão, Martim Francisco, ministro da Fazenda. Bonifácio chegou a propor a proteção aos indígenas na primeira Constituição, em 1823.[xv] Contudo, a Lei Maior imperial outorgada por Dom Pedro I, após o fechamento forçado da Assembleia Constituinte e o exílio de Bonifácio e seus irmãos, não fez qualquer menção ao assunto dos índios. Com as turbulências dos processos de independência na América Espanhola, a primeira lei maior conferiu modelagem liberal ao Estado, com separação de poderes e um Executivo forte e centralizado. O Império brasileiro independente tinha todas as contradições de ser uma monarquia parlamentarista, tropical, e inspirada por ideias avançadas inclusive para os padrões europeus da época.[xvi]
A partir de 1822 teve início o chamado “período da posse”, quando José Bonifácio extinguiu as sesmarias e ratificou nas leis brasileiras que as pessoas eram donas das terras que possuíam. Distribuir títulos de terra pelo reconhecimento possessório foi uma forma de equilibrar as forças políticas e econômicas regionais e sustentar a integridade territorial do Brasil, além da expansão do Exército e da criação da Marinha. Seguiu-se uma epopeia após a Independência, com a eclosão de quatro guerras civis simultâneas, no Grão-Pará (Cabanagem), na Bahia (Sabinada), no Maranhão (Balaiada) e no Rio Grande do Sul (Farrapos). Em meio a esse espírito de época foi feita a Lei de Terras de 1850, o primeiro marco da regularização da propriedade no País, que previu a reserva de terras devolutas, pertencentes à Coroa, para a “colonização dos indígenas”.
Seguindo esta trajetória, a Constituição republicana de 1891 não fez referência específica quanto a temática indígena e manteve os princípios instituídos em 1850 quanto a posse e propriedade de terras. A partir da República, o direito originário para a emissão de títulos sobre terras devolutas foi transferido definitivamente aos estados. Isso permitiu que Santa Catarina negociasse com a sociedade colonizadora Harmonia (Ibirama), em 1897, e também que ele criasse o Posto Indígena Duque de Caxias, reservado aos xokleng, em 1926. Neste sentido, a proteção especial aos indígenas só foi acolhida constitucionalmente em 1934, no período Vargas, que mais tarde, em 1936, decretou que as terras ocupadas pelos indígenas não poderiam ser tratadas como se fossem devolutas.
A incorporação das terras indígenas no patrimônio nacional foi uma medida varguista tomada em função da disputa internacional por recursos naturais brasileiros desde os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha nazista havia adotado a estratégia diplomática de declarar os indígenas brasileiros como “arianos honorários” do Terceiro Reich, o que obteve como resposta a criação do National Indian Institute pelos EUA, em 1941. Estas histórias, junto do projeto de Nelson Rockefeller nos anos 1940 para fazer a “segunda marcha para oeste americana” dentro da Amazônia, explorando petróleo e gás, e trazendo missionários protestantes para cuidar dos indígenas, está descrito em detalhes no livro clássico de Gerard Colby e Charlote Dennet, Seja feita a vossa vontade, publicado em 1996.[xvii] Inclusive, é com este movimento que, entre 1910 a 1950, tem início o pentecostalismo brasileiro.[xviii]
No pós-guerra, a Constituição de 1946 confirmou que fosse respeitada a posse dos “silvícolas” onde se achassem permanentemente localizados, com a condição de que não se transferissem e que fossem incorporados à comunhão nacional. Assim, resta por avaliar se, nessas circunstâncias, foi válido o ato do governo estadual para reduzir a reserva em 1954. Contudo, foi somente com a Constituição de 1967, sob o governo militar e no ambiente da Guerra Fria, que as terras indígenas foram declaradas patrimônio da União, como oficialmente são até os dias de hoje. Assim, a propriedade da área indígena no momento em que ela foi desmembrada era do estado de Santa Catarina, contudo, eram os índios que detinham a posse e, portanto, as terras não poderiam ter sido tratadas como devolutas. Por este motivo, oficialmente é o patrimônio público brasileiro que, há 22 anos, reclama de volta o domínio da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em favor do direito originário de posse, instituído em 1988, para os dois mil xoklengs contemporâneos e os futuros. Por outro lado, temos a validade da criação estadual da cidade de Ibirama, em 1897; o posterior desmembramento dos municípios, em meados dos anos 1950/60; e as 500 famílias de pequenos agricultores, que atualmente residem em parte desta mesma área.
Foi nesse sentido que o constituinte de 1988 inovou ao criar no Art. 231 a figura dos “direitos originários”, imprescritíveis, sobre as terras que os índios tradicionalmente ocupam e destinadas à sua posse permanente.[xix] Determinou também que essas terras são inalienáveis e indisponíveis, e de usufruto exclusivo, “ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar”. Assim, cabe naturalmente ao Poder Legislativo estabelecer regras sobre a interpretação do tema, lapso que vem sendo cumprido por decisões precárias do Judiciário nas últimas três décadas, como é o caso dos xokleng. O fato consolidado é o desafio de determinar a extensão, o alcance e as formas de aplicabilidade do dispositivo constitucional indígena na complexa malha fundiária do País, considerando as situações concretas caso a caso.
O “novo indigenismo” e a “indústria da conservação”
As mudanças de ideias vindas nos anos 1990 trouxeram uma alteração no paradigma indigenista, associado aos avanços na antropologia, que mudou a política de integração da sociedade nacional aos índios. O prisma que marcou esta mudança no indigenismo foi o da autoafirmação das diferenças étnicas e culturais, que posteriormente se transformou no “protagonismo” dos próprios índios.[xx] Os desdobramentos fundiários desses 33 anos da nova política indigenista produziram pouco mais de uma centena de situações semelhantes ao Caso Xokleng, com todas as suas circunstâncias. As situações mais sensíveis são aquelas que envolvem a disputa direta pela posse de terras, junto das contradições e deformidades da sobrevivência em comum entre os indígenas e seus vizinhos.
Se considerarmos os avanços sociais produzidos no Brasil nas últimas décadas, é notável que mais de 40% da população indígena no País viva na situação de pobreza, sem acesso à saúde e educação básicas.[xxi] Obviamente que o fato de muitos indígenas se encontrarem sem o acesso à terra, a plataforma básica de subsistência, impacta nos números da pobreza em suas comunidades. Assim, é o caso de considerar cautelosamente até que ponto este novo paradigma indigenista pode ter causado, como efeito colateral indesejado, a baixa inclusão dos índios, de forma horizontal, nos benefícios do exercício da cidadania plena brasileira.
É necessário avaliar cuidadosamente os resultados da mudança de uma doutrina indigenista focada na proteção e no “integracionismo”, realizada por cinco séculos, para o “novo indigenismo”, surgido nos últimos 30 anos. Estas categorias operam entre a lógica do “país oficial”, que previu a “integração dos indígenas à sociedade nacional”, e o fenômeno no “país real”, profundo, que teve desde o início o casamento entre os portugueses e as índias, e também com mulheres portuguesas enviadas para se casarem com os índios. Neste sentido, a reflexão antropológica deve considerar também o sentido inverso de agência, considerando as maneiras pelas quais os europeus, e mais tarde os brasileiros, integraram-se às sociedades indígenas ao longo do processo de construção do Brasil. Isto deixou marcas evidentes nos hábitos, na alimentação, na língua, no parentesco, na organização política e social, na toponímia, em tudo que existe no País. Assim, é importante refletir sobre a origem desta fratura da sociedade brasileira e concentrar esforços em sua reparação no momento presente, com a participação e inclusão da diversidade de pensamento entre os indígenas ao conjunto da sociedade.
Com as sucessivas reestruturações no órgão indigenista estatal, a Funai (Fundação Nacional do Índio), em 1996 e 2009, o cuidado com os indígenas, que historicamente havia sido tratado por missões religiosas e pelo Exército brasileiro, passou a dispor mais abertamente da contribuição de empresas de terceiro setor, organizações da sociedade civil, e da prestação dos serviços de governos estaduais e municipais. Foi criado um subsistema de saúde para a atenção diferenciada aos indígenas, além de políticas de escolarização com a formação de professores de indígenas bilíngues e acesso à formação em terceiro grau. Esse conjunto de ações permitiu a reversão no declínio das taxas de crescimento demográfico entre os índios e valorização de sua presença na sociedade brasileira e na comunidade internacional.
Por outro lado, no que tange à questão fundiária, esse período trouxe muitas inseguranças e desafios para cumprir o acesso efetivo à terra pelos indígenas conforme o que o dispositivo constitucional previu. Vivemos um contexto no qual 13% do território brasileiro é reconhecido como terra indígena, patrimônio da União, porém apenas 65% dessas áreas estão em posse dos índios, como é o caso dos xokleng, que ocupam 41% da terra reconhecida. A situação em geral é mais grave fora do bioma amazônico, onde muitos grupos ficaram sem acesso algum à terra e deixaram de ser incluídos como parte do projeto nacional, nem mesmo enquanto força de trabalho, em função da mecanização rural.
A partir da Eco-92 e o crescimento da nova onda ecologista, com a criação do Fundo Global do Meio Ambiente (GEF), teve início o Programa Piloto do G7 para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). Entre 1992 e 2009, Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão, Reino Unido, Holanda, União Europeia investiram oficialmente 463 milhões de dólares, administrados pelo Banco Mundial, para construir uma rede de ONGs, articuladas com os governos estaduais na Amazônia e na Mata Atlântica, executando 28 projetos.[xxii] Até 2005, o programa havia demarcado 92 terras indígenas, identificado outras 60 e deixados encaminhados mais 43 pedidos de reconhecimento.[xxiii] Essa iniciativa permitiu avanços significativos na consolidação da demarcação de terras indígenas, sobretudo na Amazônia e na faixa de fronteira, porém deixou brechas quanto a sua extensão e aplicabilidade no restante da malha fundiária do País.[xxiv] Além disso, há um lapso regulatório por lei específica quanto ao licenciamento ambiental e aos limites entre o usufruto exclusivo e o compartilhado nos casos de “relevante interesse público da União”.
O Brasil em meio a este processo se tornou um gigantesco mercado para a chamada “indústria da conservação”, como chamou o antropólogo-diretor da seção amazônica da ONG The Nature Conservacy International, David Cleary.[xxv] Esta nova modalidade moderna de indústria integra uma densa e complexa rede já globalizada de ONGs, governos nacionais, relações diplomáticas, órgãos multilaterais, legislação internacional, colaboradores remunerados e voluntários. Uma grande quantidade de recursos jorra das veias de órgãos multinacionais para uma indústria paradoxal, instalada em países como o Brasil, o Equador, a Indonésia, a Nova Guiné, porém dominada por entidades de investidores em países avançados da América do Norte e Europa Ocidental.
Foi desta forma que as terras destinadas à posse dos indígenas acabaram entrando no circuito econômico internacional da conservação, ao passo em que um conjunto de ações do indigenismo executado pelo Estado passou a ser transferido para um nicho bastante específico de empresas especializadas. Esse processo promoveu, na prática, uma transição, por procuração, da tutela aos indígenas e as suas terras, que outrora pertenceu à Igreja, a Coroa portuguesa e ao Estado brasileiro, para o mercado da indústria da conservação, com fiscalização pelo Ministério Público Federal (MPF). É nesta mesma esteira que temos visto os leilões e concessões de Unidades de Conversação sendo realizados desde janeiro de 2021.[xxvi]
A transferência das atribuições do poder público federal referentes aos indígenas para empresas de terceiro setor teve início na saúde, enquanto a educação passou para as redes estaduais, os programas de assistência social e documentação civil passaram para os municípios. Este compartilhamento veio acompanhado do avanço no sucateamento e no esvaziamento de poder da Funai. Na medida em que a instituição foi reduzindo a sua capacidade administrativa e de presença física nas terras indígenas, um conjunto de ações estratégicas, como a elaboração de planos de gestão ambiental, das demarcações e da execução do licenciamento ambiental, passou a setores terceirizados, com apoio das universidades, e por vezes no circuito da indústria da conservação.
O funcionamento da autarquia indigenista foi convertido para o formato próximo ao de uma agência reguladora, porém com uma grande carga de atribuições executivas e especialmente jurídicas. Os levantamentos sobre o órgão indigenista indicam a necessidade de recomposição da força de trabalho, especialmente nas pontas, próximo das comunidades interessadas.[xxvii] A junção entre i) o desmonte da estrutura pública de proteção aos índios; ii) a mercantilização do meio ambiente; e iii) a expansão irregular da fronteira agrícola, mineral e demográfica; acabou produzindo um processo que resultou no índice de quase a metade da população indígena no País estar vivendo em situação de pobreza e exclusão, o que se agravou nas últimas décadas. Ironicamente, quanto maior o espaço alcançado para o “protagonismo indígena” no mercado político e econômico da “indústria da conservação”, maiores foram também as situações de violência dentro das localidades de fato com as quais o “novo indigenismo” deve lidar.
A crise brasileira e as relações internacionais sobre a temática indígena
No Brasil, a pobreza não é uma exclusividade dos índios; a civilização brasileira passa por um momento de turbulência. Na situação em que o País se encontra, por exemplo, em 2020, 126 milhões de brasileiros necessitaram o auxílio emergencial, o que significa 60% da população. Por todo o País, mais da metade das residências não tem saneamento, a população carece de educação básica, o parque industrial se reduziu, a matriz energética é insuficiente e instável, e não completamos a integração territorial de infraestrutura e abastecimento. A economia segue em um processo acelerado de “reprimarização”, enquanto atravessamos uma desvalorização cambial e o aumento da inflação sem consumo, com o empobrecimento e a redução da qualidade de vida se abatendo sobre os brasileiros. Além disso, atravessamos uma desorientação político-ideológica, as incertezas da pandemia de covid-19 e um conflito permanente instalado entre as instituições republicanas.
Nas últimas semanas, por exemplo, foram queimadas as estátuas do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, e a do descobridor Pedro Álvares Cabral, no Rio de Janeiro, tratados como “genocidas”, “senhores de escravos” e outras impropriedades históricas. Cabral, por exemplo, foi um soldado, fez duas viagens, uma ao Brasil e outra à Índia, nunca colonizou nada, nem escravizou ninguém e teve boas relações com os indígenas brasileiros. A sensação de frustração com o presente e de impotência quanto ao futuro leva os grupos desorientados a se voltarem contra o seu próprio passado, como se isso oferecesse a saída para construir o destino comum. Estes episódios contemporâneos denotam um ar neocolonialista na entrada do terceiro milênio, semelhante ao espírito do século XIX, com o reforço na disseminação da “lenda negra” brasileira por todos os meios de comunicação, educação e cultura disponíveis, concomitante da criação de leis e tratados internacionais a favor do interesse das metrópoles. Esse destempero reveste o contexto dessas manifestações com o clima de uma contestação à própria existência do Brasil.
Para a deliberação da Suprema Corte sobre o Caso Xokleng, chamado pela grande mídia de “julgamento indígena do século”, foi montado um acampamento com seis mil indígenas na Esplanada dos Ministérios, realizado com a arrecadação de doações pelos próprios índios, seus apoiadores espontâneos, e financiado por embaixadas como a da Noruega, a da França, da Alemanha e dos EUA, entre outras. São esses países centrais do primeiro mundo que sustentam a própria rede de investimentos na indústria da conservação. Tal episódio acontece durante a passagem pelo Brasil de uma comitiva da ONG Internacional Progressista (Progressive International), liderada por políticos de diversas partes do mundo, que deseja parar a construção de uma ferrovia, a Ferrogrão, que liga o Mato Grosso a um porto no rio Tapajós, no Pará. A ferrovia é estratégica para o Brasil, porque permite acessar o mercado de alimentos europeu e baratear os custos em logística para aumentar a oferta dentro do País, o que é ruim para países como a França, que tem o seu setor agrícola amplamente subsidiado.[xxviii]
A intervenção da “Internacional Progressista” acontece, oficialmente, a pedido de uma ONG, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que pretende exercer o papel de tutela sob uma espécie de “conselho representante” jurídico e político em nome dos indígenas brasileiros. A mesma APIB, por exemplo, em março de 2021 solicitou o direito de tratar diretamente com o presidente norte-americano Joe Biden sobre as negociações bilaterais entre Brasil e EUA relacionadas à Amazônia, descartando a institucionalidade da diplomacia e do governo brasileiros.[xxix] Nesse mesmo período, a ONG Amazon Watch criou campanhas internacionais a favor da “soberania indígena” e o mesmo grupo de atores da indústria da conservação denunciou o Estado brasileiro no Tribunal de Haia pelo crime de “genocídio”.
Cartazes da campanha de “ação solidária para a soberania indígena” organizada pela ONG Amazon Watch, em Nova Iorque e na Califórnia, divulgadas pelo perfil de sua rede social no Twitter.
Note-se, por exemplo, a reunião realizada em junho de 2019, na Alemanha, em que representantes da mesma ONG, a APIB, sentaram-se com a assembleia de acionistas de grandes corporações financeiras para solicitar boicotes e sanções à economia brasileira. A principal avalista da proposta foi a BlackRock, atualmente a maior gestora de investimentos do mundo, criada em 1988 e sediada em Nova Iorque. A gestora é conhecida por ser o mais forte entre os chamados “fundos abutres”, especializados na desvalorização dos ativos de capital produtivo nacional em países pobres, adquirindo-os por baixo valor de mercado. Essas aquisições acabam incidindo sobre as dívidas soberanas dos Estados nacionais e promovendo a emergência destes fundos abutres como sujeito jurídico internacional, enquanto credores majoritários de países endividados. Vemos atualmente a atuação desses “gestores de investimentos” na negociação da dívida da Argentina com o FMI e o Banco Mundial. Essas situações jogam ainda mais os temas que são eminentemente internos ao Brasil, especificamente com relação aos indígenas, em um cenário de interesses econômicos e corporativos transnacionais, com consequências diplomáticas e geopolíticas.[xxx]
O envolvimento internacional no tema indígena brasileiro vem desde os primeiros atos papais que deram origem ao País. Ele passou pela consolidação das fronteiras e as tentativas de invasão no período colonial, pela celebração do Tratado de Madri, pelas guerras da independência do século XIX, pelos ajustes nas fronteiras, pelas disputas envolvendo a Segunda Guerra Mundial, pelas longas décadas de Guerra Fria, pela abertura democrática. É desta forma que estão presentes hoje os órgãos multilaterais e as agências de inteligência que operam conjuntamente das embaixadas dos respectivos países, além dos fundos abutres especuladores de mercado.
O último conflito de fronteiras brasileiro levado para arbitragem internacional foi a chamada Questão do Pirara, no atual estado de Roraima. Ela teve início em 1838, quando um geógrafo alemão e um missionário britânico resolveram tomar posse de um posto de fronteira desarmado. Inspirada pelo separatismo da Cabanagem e sob pretexto de cuidado religioso com os índios, a Coroa britânica reivindicou uma porção territorial que lhe dava acesso à bacia Amazônica e também monopolizava a entrada da bacia do rio Essequibo, na divisa com a Venezuela.[xxxi] O caso foi arbitrado pela Coroa italiana em 1904, dando ganho de causa à Inglaterra pelo princípio uti possidetis, mas reintegrando parte do território ao Brasil[xxxii]. É uma coincidência interessante que a região da disputa no Pirara seja exatamente parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, julgada pelo STF em 2009. Isto, certamente, levantou muitos ânimos em segmentos da sociedade brasileira no que tange à soberania nacional e à integridade do território, especialmente dos setores militares e do agronegócio, em função da remoção da infraestrutura para a produção de arroz irrigado de 17 fazendas existentes dentro da área demarcada como terra indígena, cujos proprietários foram forçados a abandonar, sem direito à indenização.
A Constituição brasileira não prevê em nenhum momento a “soberania indígena”. O que está em discussão pela Suprema Corte é a extensão do “direito originário” dos índios de ter posse permanente de terras dentro do território brasileiro. Como vimos, ele decorre da aquisição originária dada à Coroa portuguesa pela Igreja católica, posteriormente transmitida ao Estado brasileiro, aos governos estaduais e à União, extensível, desde o primeiro momento, a todos os cidadãos brasileiros. O direito de posse e de propriedade é inclusive disciplinado pelo Estatuto da Terra, de 1964, anterior ao Estatuto do Índio de 1973. Devido à complexidade do assunto, cabe de fato ao Congresso dispor de lei complementar para ressalvar as questões de relevante interesse público da União, considerando a necessidade de desapropriações de terras por interesse social, conforme o texto constitucional, a favor dos indígenas.
É também fundamental a integração de dados entre os cadastros fundiários e os ambientais de todo o país, cumprindo integralmente o sofisticado Código Florestal brasileiro, de 2012. Para auxiliar na inclusão indígena e mediar as situações cotidianas próximo das comunidades, o órgão indigenista nacional deve ser fortalecido nas bases, dentro das terras protegidas. Os modos e limites de eventuais casos de usufruto e ocupação compartilhados devem ser discutidos, inclusive no que tange a partição de benefícios, considerando sobretudo a realidade atual, conforme cada caso. A resolução para esses impasses requer diálogo democrático maduro e um projeto que incorpore as demandas indígenas entre as necessidades urgentes do País, com a inclusão produtiva para o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável. A cooperação internacional para a temática indígena e climática é bem-vinda, e deve respeitar os assuntos políticos eminentemente internos ao Brasil, cumprindo as convenções diplomáticas e tratados internacionais.
Ao fim, devido à crise política, econômica e institucional brasileira, somada às incertezas do contexto global e geopolítico, a resolução concreta para inúmeros casos como o dos xokleng e seus vizinhos fica cada vez mais distante. O Brasil necessita de propostas para uma nova pacificação, com o seu passado e o seu presente, com o conjunto do País, para continuar a construção do seu futuro em comum. Assim, poderemos em breve estar construindo estátuas dos anciães indígenas xokleng, Antonio Caxias Popó e Vacla Pathé, e do sertanista, Eduardo Hoerhann, que com todas as vicissitudes, contradições e imponderáveis de sua época, celebraram a paz após uma guerra de 60 anos.
[i] A separação das categorias étnicas dos moradores das aldeias entre “indígenas, mestiços e não indígenas” tomei de empréstimo do TCC do estudante xokleng Neuton Calebe Vaipão Ndili, de 2015.
NDILI, N. C. V. Mudanças socioambientais na comunidade xokleng laklãnõ a partir da construção da barragem norte. TCC em Humanidades, Licenciatura Intercultural Indígena. Florianópolis: UFSC, 2015. 45p.
[ii] BAULER, A. A dialética do contato: colonização, pacificação e resistências dos históricos botocudos (xokleng/laklãnõ) no Vale do Itajaí/SC (1850-1929). Dissertação de Mestrado em História. Dourados: UFGD, 2015. 230p.
HOERHANN, R.C.L.S. O Serviço de Proteção aos Índios e a desintegração cultural dos xokleng (1927 – 1954). Tese em História. Florianópolis, UFSC, 2012. 283p.
[iii] MARTINS, P. Sertão de Azulá! -comunidade cafuza em perspectiva. Florianópolis: NUER/UFSC, 2001. 172p.
[iv] O município de José Boiteux foi emancipado em 1989, mas o processo iniciou em 1958, porém as tentativas de emancipação foram consideradas inconstitucionais, tendo sido a municipalidade reconhecida apenas com os avanços da constituição de 1988.
[v] FRAGA, N.C. Obras por mais de uma década: estudos do processo de construção da barragem norte no município de José Boiteux/SC. Relatório técnico CNPq-UDESC. Florianópolis, 1997.
[vi] ROGRIGUES, A. MPF denuncia delegado federal por morte de índio mundurucu. Agência Brasil, 11/07/2014. Disponível: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-07/mpf-denuncia-delegado-federal-por-morte-de-indio-munduruku
[vii] PONTIN, R.A.L As bulas e tratados dos séculos XV, XVI e XVIII na história do direito brasileiro: seus reflexos na América portuguesa. Caderno Unisal, maio de 2012. pp.175-200.
[viii] LIMA, G.F.B. Evolução histórica da propriedade territorial no Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito. São Paulo: USP, 2002. 304p.
[ix] Estes princípios católicos foram responsáveis por banir a escravidão do Império romano e forçar o desaparecimento dela na Europa no século V, durante a Alta Idade Média, originando o sistema chamado de feudalismo.
[x] PIHEIROS, J.C.F. Estudos históricos, vol. 1. Rio de Janeiro: Inst. Hist. Geog. e Etnog. do Brasil, 1876. 444p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242425
[xi] CASTRO, A.H.F. Uti possidetis, ita possideatis: as fortificações como marcos da formação territorial do Brasil. In: Revista DaCultura, ano XX, nº 34, 2020. pp.34-47.
[xii] Os jesuítas se originaram na contrarreforma católica, no século XVI em resposta ao surgimento do protestantismo luterano. Fundaram a empreendedora e próspera Companhia de Jesus, trazendo o evangelho para as américas. Formaram também missões em China, Japão, Índia, Tibete, Congo, Marrocos, Etiópia. Usavam o princípio da “inculturação”, que era incorporar os modos, hábitos, costumes e a língua dos povos com os quais se integravam, traduzindo a bíblia, ensinando a arte barroca e doutrinando a fé católica. Os dois jesuítas pioneiros no Brasil são Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, que participaram das fundações de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.
[xiii] GULLO OMODEO, M. Madre Patria: desmontando la leyenda negra desde Bartolomé de las Casas hasta el separatismo catalán. Rosario: Espasa, 2021. 452p.
[xiv] Estes movimentos bandeirantes no período colonial foram definidos por Anita Novinski nos seguintes termos: “As Bandeiras foram um levante político, militar e revolucionário, tendo destruído Guairá, Itatim e Tape. Os bandeirantes consideravam-se poderosos, faziam despachos sem autorização, nomeavam Capitães Mor e oficiais de guerra, levantavam bandeira e formavam verdadeiros exércitos, de quatrocentos portugueses e 2000 índios, entrando armados no Paraguai”.
NOVINSKY, A. A “conspiração do silêncio”. Uma história desconhecida sobre os bandeirantes judeus no Brasil. Coloquio: Publicación del Congreso Judío Latinoamericano [Buenos Aires], s/d. Disponível em: https://congresojudio.org/uploads/coloquio/139/coloquio_version_descarga.pdf
[xv] LINO, G.L. O homem que inventou o Brasil: um retrato de José Bonifácio de Andrada e Silva. Rio de Janeiro: Ed. Capax Dei, 2019. 163p.
[xvi] REBELO, A. O Quinto Movimento: propostas para uma construção inacabada. Porto Alegre: Jornal Já, 2021. 252p.
[xvii] COLBY, G. DENNETT, C. Thy will be done: the conquest of the Amazon: Nelson Rockefeller and evangelism in the age of oil. Nova Iorque: HarperCollins, 1996. 960p.
[xviii] MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. 248p.
[xix] Há um conjunto de elaborações sobre o significado e a extensão do “direito originário” dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por vezes elas são contraditórias e complementares, veja-se por exemplo:
SIQUEIRA, R.C.M.; MACHADO, V.F. Direito dos povos indígenas ou direito para os povos indígenas? Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, n. 6, jun./dez. 2009. pp. 15-37.
D’ÁVILA, A.M.L.; MATTOS, K. R. Direito fundamental dos indígenas à terra: do Brasil-Colônia ao Estado Democrático de Direito. Revista de informação legislativa. a. 43, n. 170. Brasília, abr./jun. 2006. pp.221-234.
[xx] STIBICH, I.A. Esforços para a implantação de uma “nova política indigenista” pelas gestões petistas (2003-2016): etnografia de um processo com foco na Fundação Nacional do Índio (Funai). il. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2019. 258p.
[xxi] BRUNO, C. ONU: 38% da população indígena vive na pobreza. O Globo; Agência Brasil, 14/01/2010. Disponível em: https://outline.com/WamaWC
[xxii] CHAVES, C. PPG7: duas décadas de apoio à proteção das florestas brasileiras. Brasília: Min. Meio Ambiente, 29/09/2009. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/noticias/ppg7-duas-decadas-de-apoio-a-protecao-das-florestas-brasileiras
[xxiii] VIERGER, M. Projeto Integrado de proteção às populações e terras indígenas na Amazônia legal – estudo de avaliação. Brasília: PPTAL, 2005. 88p.
[xxiv] Note-se que existe um conjunto de estudos quantitativos sobre os fatores envolvidos com o andamento ou a paralização dos processos de demarcação de terras indígenas.
SOARES, L.B. et al. Fatores explicativos das demarcações de terras indígenas: uma revisão de literatura. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB, São Paulo, n. 96, ago./2021. pp. 1-24.
[xxv] Usei o termo “indústria da conservação” a partir do artigo do antropólogdeo David Cleary, diretor da seção Amazônia da ONG The Nature Conservancy (TNC), em um livro editado pela ONG Instituto Socioambiental (ISA) em 2004, no qual ele apresenta o projeto “Arpa indígena”, uma integração das terras indígenas com outras áreas protegidas, como “a peça que falta” no mercado brasileiro de conservação.
CLEARY, D. Arpa indígena: a peça que falta. Em: Terras Indígenas & Unidades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. Org. Fany Ricardo. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. pp114-118.
[xxvi] Os primeiros parques nacionais também foram criados por Getúlio Vargas, a partir de 1937, no mesmo contexto em que ele decretou que as terras ocupadas pelos indígenas não poderiam ser tratadas como devolutas, um ano antes.
Cf. AMARAL, A.C. Ministério do Meio Ambiente realiza 1º leilão de parques nacionais com proposta de R$ 20 milhões. Folha de São Paulo. São Paulo, 11/01/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2021/01/ministerio-do-meio-ambiente-realiza-1o-leilao-de-parques-nacionais-com-proposta-de-r-20-milhoes.shtml
[xxvii] SANTOS, H. S. Análise da distribuição da força de trabalho da Fundação Nacional do Índio. TCC em gestão pública. Brasília: ENAP, 2018. 91p.
[xxviii] É curiosa a ausência de estudos acadêmicos sobre a competição econômica entre Brasil e França na produção e comércio global de alimentos sendo produzidos nas universidades brasileiras, restando os noticiários dos analistas de mercado e a mídia convencional.
FERNADES, D. Na França, acordo entre UE e Mercosul enfrenta oposição e protestos de agricultores, ambientalistas e até ministros. Paris: BBC, 07/07/2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48845254
[xxix] SANCHES, M. Indígenas pedem linha direta com governo Biden em conversas sobre Amazônia. Washington: BBC, 29/03/2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56559841
[xxx] cf. OBSERVATÓRIO DO CLIMA. Em Bonn, indígenas pedem boicote a commodities brasileiras. Bonn (Alemanha): O Eco, 23/06/2019. Disponível em: https://www.oeco.org.br/noticias/em-bonn-indigenas-pedem-boicote-a-commodities-brasileiras/
SCHMITT, G.B. Os fundos abutres: meros participantes do cenário internacional ou sujeitos perante o direito internacional? Revista de Direito Internacional, v. 12, n. 2, Brasília 2015. pp.288-400.
_______ Os “Abutres” e os “Soberanos”: o surgimento e o papel dos fundos “abutres” no âmbito das dívidas soberanas. Dissertação em Direito. Coimbra: UC, 2014. 128p.
FERNANDES, L.R. Argentina e fundos abutres: as disputas discursivas em torno da dívida. 2018. 102 f. il. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Brasília: UnB, 2018. 103p.
[xxxi] Note-se duas questões, a primeira é de que a Venezuela possui litígio com a Guiana inglesa desde 1899 pela fronteira no Essequibo. Por outro lado, em 2013, com pleno funcionamento das empresas nacionais de infraestrutura, o Brasil pretendia a construção de usinas hidrelétricas na região do Essequibo da Guiana, para a formação de um “arco norte” de hidrelétricas que escoaria energia para abastecimento em outros países pela rede de cooperação amazônica.
GIMENEZ, C.C.; DEL´OLMO, F.S.; MURARO, M.M.R. A soberania nacional e a delimitação de territórios: o conflito da Guiana versus Venezuela e as tratativas pela paz. CERS. Revista Científica Disruptiva, vol. I, n. 1, jan-jun/2020. pp.03-22.
SILVA, R.R.M. O que pretende o Brasil na Guiana Essequibo? Boletim Meridiano 47, vol. 16, n. 147, jan.-fev. 2015. pp. 19 a 26.
[xxxii] GOES FILHO, S.S. As fronteiras do Brasil. Brasília: FUNAG, 2013. 139p.