Este é o nono de uma série de artigos de Felipe Quintas sobre os intérpretes do Brasil. O Instituto Bonifácio promoverá, a partir da série, o curso Intérpretes do Brasil, a ser ministrado pelo próprio Felipe Quintas.
Francisco José de Oliveira Vianna (Saquarema, 20 de junho de 1883 — Niterói, 28 de março de 1951) foi um dos maiores juristas e sociólogos brasileiros. Seu pensamento nacionalista e proto-trabalhista marcou época durante a Era Vargas e foi uma das maiores influências do presidente Ernesto Geisel[1].
Oliveira Vianna postula a necessidade de compreender as instituições políticas por meio da caracterização histórico-social brasileira. Em sua concepção, semelhante à de Tobias Barreto e Alberto Torres, haveria um descompasso entre o Brasil legal, das leis formais escritas, e o Brasil real, das leis informais e costumeiras. O primeiro, de caráter importado e instituído por uma elite letrada e alienada do próprio país – que ele chama de “marginalista” por se situar à margem do próprio País – seria um fator estranho à realidade vivida pelo que ele alcunha de povo-massa, em tudo diferente da elucubrada por essa elite.
As ciências sociais deveriam, então, mergulhar na realidade profunda do País, na cultura e nos modos de vida da população, para, enfim, lançar os fundamentos de uma política autenticamente nacional, capaz de atender aos legítimos reclamos de liberdade e civilização. Caberiam às ciências sociais, pois, estabelecer “uma concepção do Estado brasileiro, enquadrado dentro do Brasil. Isto é, dentro da sua estrutura e da sua realidade social – dentro do Brasil como ele é, tal como o modelaram quatro séculos e meio de história e de civilização” (IPB[2], p. 410 – itálico do autor).
Segundo Oliveira Vianna, o Brasil, embora dotado de unidade política, não conheceria uma uniformidade social. Com efeito, são três os tipos regionais principais por ele identificados: o sertanejo, habitante dos sertões nortistas; o matuto, habitante das matas do centro-sul; o gaúcho, habitante dos pampas do extremo-sul. Esses três tipos sociais comporiam três histórias distintas, porém ligadas entre si na unidade política e territorial brasileira.
Em comum entre eles seria o caráter rural, traço básico da formação social brasileira desde o que o autor chama de século I da nossa história (século XVI). O “temperamento fundamentalmente rural” (PMB[3], p. 80), próprio dos brasileiros, expressaria a tendência centrífuga e dispersiva da ocupação ibérica, particularmente lusitana, no continente americano, onde a nobreza colonial, ao contrário da metropolitana, teria se assentado no interior rural, e não nas cidades. Durante quatro séculos, a população brasileira se moldou em bases rurais. As atividades pastoris, os engenhos de açúcar, a mineração do ouro e as fazendas de café foram as principais atividades que, nesse longo intervalo de tempo, ficaram os homens ao meio rural.
Não se depreenda disso, contudo, que Oliveira Vianna tenha explicado a vocação rural do brasileiro pelo puro interesse econômico. Para ele, o ruralismo era um dado básico da identidade psicossocial e afetiva dos brasileiros. Em suas palavras: “É, pois, erro, e grande erro, dizer-se que o que os (os brasileiros – FMQ) atrai para o campo, e aí os prende, é apenas e simplesmente um fito comercial, ambição material de explorar industrialmente a terra. Também, e principalmente, os prendem e fixam no campo as belezas e as doçuras da vida rural, bem como a importância social decorrente da posse de grandes propriedades agrícolas.” (PMB, p. 80).
Segundo o autor, a formação rurícola do Brasil foi baseada no latifúndio, centro de gravitação autóctone antes e depois da Independência. Como tal, constituiu-se elemento delineador da sociedade brasileira, inclusive etnicamente. Antes mesmo de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna aponta que a miscigenação, em suas diferentes modalidades, teria sido resultado do padrão de convivência estabelecido nos domínios rurais. Como Oliveira Vianna afirma, “sentimos, sempre, poderosa, a influência conformadora do latifúndio; este é, na realidade, o grande medalhador da sociedade e do temperamento nacional” (PMB, p. 105).
O latifúndio, unidade social e econômica autossuficiente sob o comando absoluto do pater famílias, isolava as pessoas, absorvia-as na vida familiar sob o jugo senhorial, e impedia a formação de uma autêntica solidariedade nacional. O Brasil, sendo uma unidade política, não era uma unidade social, devido, em grande parte, à ação dispersiva do latifúndio. A ordem privada latifundiária teria inibido a criação de instituições públicas de solidariedade social, de âmbito nacional. A única solidariedade existente seria a do clã, pois os vínculos concretos entre os brasileiros seriam vividos e experimentados somente no âmbito familiar, sobretudo das famílias da nobreza fazendeira. O homem sem latifúndio e sem parentesco aristocrático só poderia encontrar algum amparo na tutela do fazendeiro, pois não havia instituição social que o protegesse. Estaria, portanto, permanentemente à mercê do arbítrio patriarcal.
Nesse sentido, o autoritarismo, no Brasil, não seria da ordem pública e estatal, mas da ordem privada e familiar. A ameaça à integridade física e à independência moral dos indivíduos não partiria do Leviatã absolutista, como na Europa, mas das oligarquias rurais, de cunho local. A fonte de opressão, portanto, não seria o Estado, mas a própria sociedade civil.
A partir dessa consideração, Oliveira Vianna critica o ímpeto mimético das elites marginalistas brasileiras, que, deslumbradas com a organização institucional de outros países, abstraíam seus conteúdos histórico-sociais específicos e irredutíveis à realidade brasileira. Ele enfatiza os perigos de importar, para o Brasil, as instituições descentralizadoras políticas anglo-saxãs, que tanto fascinavam as classes cultas do nosso País, desejosas de vê-las florescer no meio social e cultural brasileiro, em tudo diferente daquele onde foram criadas. Oliveira Vianna assinala, muito corretamente, que a transplantação de instituições exóticas incorreria em efeitos bastante diferentes, até mesmo contrários, aos que sucediam em seus países de origem.
Naqueles países, onde se formou uma poderosa e articulada classe média rural, capaz de se projetar nacionalmente e de defender e representar a si própria, o Parlamentarismo e o Federalismo, respectivamente, canalizariam os interesses desse expressivo grupo social e o defenderia contra os possíveis abusos do Poder Executivo central. O sentimento de liberdade civil, lastreado em um certo nível de democracia rural, seria uma realidade social no mundo anglo-saxão, e encontraria sua expressão política nas instituições de cada um desses países.
No Brasil, ao contrário, onde essa classe média praticamente inexistia e a liberdade civil nada mais era do que uma fórmula jurídica, alheia à realidade latifundiária e patriarcal de facto, a adoção das instituições políticas anglo-saxãs, ao fortalecer ainda mais o poder das oligarquias locais, reforçaria o poder despótico delas e aprofundaria os problemas existentes desde a colônia.
Oliveira Vianna, critica, então, o idealismo das Constituições de 1824 – que estabeleceu partidos de base nacional ao modelo anglo-saxão sem haver correspondência nos grupos sociais realmente existentes – e de 1891 – cujo federalismo enfraqueceu ainda mais o Poder Central, o único que poderia fazer frente aos clãs rurais e proteger a massa despossuída.
Em ambas as Constituições, a prática do sufrágio, importada de latitudes distantes, expandiu o domínio dos clãs ao âmbito eleitoral, institucionalizando o seu arbítrio. As oligarquias locais tornaram-se, também, oligarquias eleitorais, formando uma democracia de fachada, “para inglês ver”, e desvirtuando o sentido original da representação política. Essa característica foi premente, sobretudo, na Constituição federalista de 1891, pois a instituição do Poder Moderador, prevista na de 1824, assim como a atuação das lideranças saquaremas do Império – favoráveis ao exercício de uma autoridade nacional central – refreavam os impulsos descentralizadores das oligarquias.
Dessa maneira, tais Constituições, particularmente a de 1891, acentuaram a desorganização e a desintegração nacionais existente desde a colônia. Consequentemente, as liberdades civis estabelecidas textualmente não encontravam condições de se tornarem efetivas, pois as instituições políticas asseguravam o mandonismo dos clãs rurais. As elites marginalistas, pensando instituir no Brasil a liberdade à inglesa, na verdade reforçaram o poder oligárquico bem brasileiro e por elas ignorado.
Nas condições brasileiras, somente um Estado forte e centralizado poderia fazer frente às oligarquias rurais e assegurar, à massa despossuída, o pleno gozo das liberdades civis. Segundo nosso autor, “o poder central, o grande opressor das liberdades locais e individuais nos povos europeus, exerce aqui uma função inteiramente oposta. Em vez de atacá-las, é ele quem defende essas mesmas liberdades contra os caudilhos territoriais, que as agridem. Estes é que, de posse do poder local, ou apenas com a sua capangagem, ameaçam as cidades, as aldeias, as famílias, com as suas brutezas, as suas vinditas, os seus cercos, os seus saqueios, os seus massacres. O poder central sempre intervém para garantir os cidadãos na integridade dos seus direitos, no gozo das suas liberdades, na inviolabilidade do seu domicílio ou da sua pessoa” (PMB, p. 372-373).
Oliveira Vianna defende, por conseguinte, a organização de um poder central enérgico a fim de instituir as bases e os fundamentos da construção nacional unitária, ainda por ser feita. Apenas o Estado, enquanto centro coordenador supremo da sociedade, poderia fazer convergir os elementos historicamente dispersos da brasilidade em uma força nacional unificada e autoconsciente. Somente a ação política nacionalmente organizada poderia quebrar o domínio privado do patriciado rural e fundar as instituições públicas necessárias à realização prática da cidadania.
Em suas palavras: “trata-se de dar, ao nosso agregado nacional, massa, forma, fibra, nervo, ossatura, caráter. Problema, pois, de condensação, de concentração, de unificação, de síntese. Problema, portanto, cuja solução só seria possível pela ação consciente da força organizada. Quer dizer: pela instituição de um Estado centralizado, com um governo nacional poderoso, dominador, unitário, incontrastável, provido de capacidades bastantes para realizar, na sua plenitude, os seus dois grandes objetivos capitais: a consolidação da nacionalidade e a organização da sua ordem legal.” (PMB, p. 404 – itálico do autor).
Inspirado por esse ideário, Oliveira Vianna apoiou a Revolução de 1930 e sua continuação, o Estado Novo, que, no seu entender, visavam, justamente, erigir a obra política por ele almejada. Em 1932, foi designado para as comissões técnicas do recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Permaneceu como consultor jurídico e “assessor técnico em economia social” até 1940. Nesse ano, foi nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, cargo que exerceu até o seu falecimento.
No Ministério do Trabalho, foi um dos principais mentores da legislação trabalhista então criada. Combinando pensamento e prática, defendeu, nessa época, a organização corporativista da política e da economia nacionais, em oposição ao liberalismo. O corporativismo, ao organizar as instituições conforme a representação de classe e vincular as diferentes classes entre si em um mesmo projeto nacional conduzido pelo Estado, aproximaria o Brasil legal do Brasil real. Seria, portanto, a base de uma verdadeira política nacional, ajustada à realidade brasileira. Por outro lado, o liberalismo, baseado no individualismo, deixaria campo livre ao egoísmo oligárquico, sendo, assim, incapaz de proporcionar as respostas às questões e aos desafios coletivos da época.
Em sua passagem pela administração pública brasileira, Oliveira Vianna entendeu que, tão perigosas quanto os clãs rurais já denunciados por ele, eram os grupos industriais privados emergentes: “nenhuma classe menos preparada, psicologicamente ou culturologicamente, como a dos nossos capitães da indústria, para a prática e realização do Estado moderno” (POPD, p. 56). Oliveira Vianna defendeu, então, que caberia ao Estado organizar, de forma compulsória, a classe industrial, tanto para disciplinar e racionalizar a produção quanto para educa-la “nos hábitos da cooperação e da solidariedade corporativa” (POPD, p. 68). Por ter assumido essa pauta no Ministério do Trabalho, sofreu a oposição aberta dos industriais paulistas, o que resultou na sua saída do Ministério em 1940[4].
Um outro ponto a se ressaltar do programa reformista de Oliveira Vianna foi o apoio sistemático à Marcha para o Oeste, política do governo de Getúlio Vargas voltada à ocupação e ao desenvolvimento do interior do Brasil – responsável, entre outros efeitos, pela criação da cidade de Goiânia em 1933. Para nosso autor, a Marcha para o Oeste era a oportunidade para colonizar os sertões desertos de modo a “organizar a pequena propriedade territorial e o pequeno urbanismo, pondo o conforto da civilização ao alcance das populações rurais” (POPD, p. 95). Assim, formar-se-ia a classe média rural que faltava ao Brasil para alicerçar, na sociedade, o espírito democrático e de solidariedade social existente no mundo anglo-saxão, mas até então desconhecido por nós. Devido à abundância de terras desocupadas, não haveria a necessidade de expropriar os grandes fazendeiros.
Por muito tempo, Oliveira Vianna foi enquadrado erroneamente como “autoritário” e até mesmo “fascista”. A sua simpatia pelo governo de Mussolini, na década de 1930, foi e é bastante explorada pelos críticos. Eles, contudo, esquecem que nosso autor, desde essa época, também manifestou admiração por governos insuspeitos de fascismo, como o de Franklin Roosevelt nos EUA, e o da social-democracia na Suécia[5].
Acima de tudo, esses críticos ignoram que o cerne da visão política de Oliveira Vianna consiste na necessidade de edificação de um Estado nacional conforme padrões e critérios genuinamente brasileiros, independente daqueles aplicados em outros países, com outras histórias, outras sociedades e outras culturas. Somente um Estado amparado na realidade pátria poderia suplantar o poder oligárquico, seja rural ou urbano, e se fazer, de fato, representação institucional da sociedade brasileira, garantindo direitos e liberdades à massa despossuída que, de outro modo, continuaria sujeita aos desmandos de chefetes e “coronéis”.
Como Oliveira Vianna bem entendeu, historicamente, nenhuma democracia digna do nome existiu sem estar apoiada em um Estado forte e superior às vontades particulares dos grupos mais favorecidos. Um Estado, portanto, que não seja liberal, pois o liberalismo, em essência, é a privatização do poder público e do patrimônio nacional, de modo que o arbítrio privado prevaleça sobre o bem comum. Esse Estado, então, não será construído importando modelos alienígenas, mas, tão-somente, pela adequação da ação política ao meio social específico.
A obra desse pensador constitui, pois, um chamado para que o Brasil procure, na sua realidade, as respostas autênticas para as questões que nos são específicas, rejeitando ideologias, como o liberalismo, que, entre nós, nada mais são do que instrumentos de fragilização do poder nacional e de dominação do povo por oligarquias externas e internas.
SUGESTÕES DE LEITURA (obras de Oliveira Vianna):
– Populações Meridionais do Brasil (1920)
– Evolução do Povo Brasileiro (1923)
– O Idealismo da Constituição (1927)
– Problemas de Política Objetiva (1930)
– Instituições Políticas Brasileiras (1949)
– Problemas de Organização e Problemas de Direção (1952)
[1] D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 396
[2] Instituições Políticas Brasileiras. Para esse artigo, utiliza-se a edição publicada pela Editora do Senado Federal em 1999, disponível no seguinte endereço: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1028/211740.pdf
[3] PMB = Populações Meridionais do Brasil. Para esse artigo, utiliza-se a edição publicada pela Editora do Senado Federal em 2005, disponível no seguinte endereço: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1108/743391.pdf
[4] BRASIL JR., Antônio da Silveira. Intelectuais e Statemakers: Oliveira Vianna, Evaristo de Moraes Filho e a ação coletiva no Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21862010000200005
[5] Cf. Problemas de Organização e Problemas de Direção.
Excelente.