Intérpretes do Brasil – Manoel Bomfim

    Este é o décimo de uma série de artigos de Felipe Quintas sobre os intérpretes do Brasil. O Instituto Bonifácio promoverá, a partir da série, o curso Intérpretes do Brasil, a ser ministrado pelo próprio Felipe Quintas.

    Manoel Bomfim (Aracaju, 1868 – Rio de Janeiro, 1932) foi um dos maiores pensadores sociais brasileiros. Médico de formação, ocupou importantes cargos políticos, como o de diretor interino da Instrução Pública do Rio de Janeiro, em 1905, o de Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, em 1906, e o de deputado estadual, cargo para o qual foi eleito em 1907 e por meio do qual defendeu o fortalecimento da educação pública.

    Ele também se notabilizou no campo das ciências humanas e sociais pela sua vasta obra pedagógica, historiográfica e sociológica acerca da formação nacional brasileira e das questões e dos problemas relativos ao Brasil e à América Latina no contexto da modernidade capitalista.

    Bomfim foi um dos principais pensadores nacionalistas e latino-americanistas brasileiros. O conjunto da sua obra orienta-se pela preocupação em esclarecer e desfazer as interpretações distorcidas sobre o Brasil e a América Latina em geral, que, fundamentadas em interesses estranhos e até mesmo hostis aos países ibero-americanos, negam o potencial civilizatório e emancipatório contido na história e na sociedade desses países. Seu intuito básico é, assim, o de descolonizar o imaginário brasileiro e latino-americano, libertando-o de falsas assunções criadas com o objetivo de legitimar a dominação externa do Brasil e dos demais países latino-americanos.

    Em seu livro “América Latina: Males de Origem” (2008 [1903]), provavelmente sua obra mais conhecida, Bomfim contesta as teses, então em voga, acerca da inferioridade racial e cultural dos povos latino-americanos como chave explicativa para o atraso desses países. A mestiçagem, o catolicismo e o sincretismo singularizar-nos-iam positivamente no processo civilizatório, em vez de constituírem chagas indeléveis.

    Manoel Bomfim valorizou a mestiçagem, o catolicismo e o sincretismo no processo civilizatório brasileiro.

    Para ele, a explicação dos nossos males deveria ser procurada na organização política, social e econômica imposta aos países latino-americanos pelos seus grupos dominantes. Bomfim cunhou, então, a expressão “parasitismo social” para explicar a prática desses grupos, introduzida, segundo ele, pela colonização ibérica. O parasitismo social seria, pois, a espoliação e a extorsão sistemática das maiorias pela minoria oligárquica, em proveito dessa última e dos países colonizadores estrangeiros aos quais ela se vincula.

    Seriam três as manifestações gerais do parasitismo social: “o enfraquecimento do parasitado; as violências que se exercem sobre ele, para que preste uns tantos serviços ao parasita – além do encargo capital de nutri-lo; finalmente, a adaptação do parasitado às condições de vida que lhe são impostas” (2008 [1903]: p. 81). O parasitismo, portanto, significava a alienação do parasitado, para que ele viva em função de interesses que lhe são hostis, e não dos seus próprios.

    Nesse sentido, o parasitismo seria um fenômeno multidimensional, envolvendo aspectos econômicos – a imposição da escravidão e da servidão para direcionar ao exterior as riquezas internas; políticos – a criação de instituições político-administrativas de cunho meramente repressivo e extrativo, “com o pensamento exclusivo de sugar toda a riqueza e produção colonial” (ibid: p. 100); socioculturais – a desagregação, a violência e a ignorância como características dos modos de vida. Todo um sistema, portanto, convergiria para a manutenção da ordem colonial e o impedimento da formação de uma organização e de uma direção propriamente nacionais.

    Por efeito da hereditariedade social, ou seja, a transmissão de caracteres distintivos a uma coletividade, o parasitismo teria sido espargido às nações latino-americanas após as suas respectivas independências. Desse modo, a soberania nacional, em seus aspectos substantivos, teria sido empeçada pelo persistente legado colonial ibérico, e os novos países teriam sido mantidos em condição semelhante a que existia enquanto eram colônias.

    No Brasil em particular, o parasitismo social teria sido manifestado, particularmente, no que Bomfim chama de “bragantismo”, isto é, a dominação da decadente e corrupta Casa de Bragança, dinastia portuguesa desde o fim da União Ibérica, em 1640.

    Em seu livro “O Brasil na História – Deturpação das tradições e degradação política” (2013 [1930]), Bomfim analisa como o bragantismo teria reprimido o verdadeiro nacionalismo brasileiro e, pela liderança de Dom João VI e seu filho, Pedro I, direcionado a Independência aos interesses lusitanos e estabelecido uma interpretação histórica negadora do caráter brasileiro e não-lusitano da formação do Brasil, e desmerecedora dos esforços autóctones de construção nacional.

    A tradição nacional – entendendo-se a tradição como “passado vivo, orientador, e que aí está, no coração de todos nós, com exceção daqueles que, de fato, não são Brasil, nem coisa nenhuma” (Bomfim, 2013 [1930], p. 193) – englobaria, para Bomfim, todo um legado de formação autônoma do país e do povo, cuja deturpação atenderia a propósitos estrangeiros de dominação, isto é, de parasitismo social.

    Grande historiador, Manoel Bomfim não compreendeu, porém, o papel da Monarquia na manutenção da unidade do Brasil.

    Bomfim polemiza abertamente contra Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, considerado por ele como o historiador que consagrou a visão do bragantismo sobre a história brasileira e a converteu em versão oficial da história brasileira. Segundo Bomfim, a distorção do sentido histórico brasileiro promovido pela influência portuguesa seria um dos males de origem do Brasil que, ignorante da sua própria história, desconheceria, igualmente, sua verdadeira identidade, adotando aquela formulada pelos Bragança no interesse da conservação dos seus privilégios, próprios de uma aristocracia decaída e desprovida de patriotismo.

    Segundo a historiografia bragantista, o Brasil deveria sua unidade à ação centralizadora da Coroa portuguesa, à implantação da monarquia como forma de governo quando da Independência e à coroação antecipada de Pedro II em 1840. O Brasil seria, então, nada mais do que a “América portuguesa”, desprovido de singularidade e eternamente vinculado ao projeto colonial da dinastia de Bragança.

    No entanto, de acordo com Bomfim, essa tese diminuiria toda uma tradição de esforços nativos de construção e unificação nacionais, levados a cabo por paulistas e pernambucanos desde os tempos coloniais. O Brasil, tendo sido iniciado pelo pioneiro empreendedorismo ultramarino português, logo viu surgir, em seu seio, um povo novo, resultante da mistura entre portugueses, ameríndios e africanos, sem ser nenhum deles. A expansão das fronteiras para além de Tordesilhas e a expulsão dos invasores franceses e holandeses teria se dado pela coragem e bravura do povo brasileiro, não pela Coroa portuguesa, cuja atuação no Brasil teria sido, para ele, meramente confiscatória e espoliativa, ou seja, parasitária.

    O Brasil teria, assim, modelado e defendido a América do Sul, pois, livre da barreira representada pela Cordilheira dos Andes, penetrou a massa continental a partir do Atlântico, bem como impediu que os europeus não-ibéricos ocupassem porções maiores do continente e alijassem as populações sul-americanas do seu espaço. Nesse processo de espraiamento do povo brasileiro pela plataforma continental sul-americana, teria se formado, desde os tempos da colonização, uma tendência à unidade nacional, amparada em “uma bem entendida e livre solidariedade de interesses gerais” entre as províncias (ibid: p. 160).

    Mais ainda, teria se formado, segundo Bomfim, um espírito democrático entre os brasileiros que, naturalmente, levaria, após a emancipação em relação a Portugal, a uma forma republicana e federativa de organização política, com a representação parlamentar das diferentes regiões, de modo que se constituísse uma política verdadeiramente nacional, voltada ao atendimento das questões internas. A unidade nacional assentar-se-ia, então, no equilíbrio de poder inter-regional e, portanto, na efetiva nacionalização das instituições.

    Em sua avaliação, não haveria o risco de o Brasil repetir a balcanização ocorrida na América hispânica, pois, no momento em que as Cortes portuguesas manifestam a vontade de fragmentar o Brasil, “as juntas provinciais, não obstante serem instituições locais, manifestam-se, todas, partidárias de um Brasil unido e, por toda parte, tratam as tropas constitucionais como inimigas […]. Naquele momento, todo movimento de independência seria ostensivamente oposto à política das cortes para com o Brasil: seria para uma união explícita” (ibid: p. 157). 

    Tal intento foi levado a cabo pelos movimentos que Bomfim considera realmente ter sido independentistas, como a Revolução Pernambucana, em 1817, e a Confederação do Equador, em 1824. A Assembleia Constituinte de 1823, dissolvida por D. Pedro I, teria sido, segundo ele, um momento de afirmação do federalismo e dos interesses pátrios no bojo da Monarquia.

    Contudo, esses movimentos e iniciativas teriam sido abortados pela ação colonizadora da Coroa, que, em seu centralismo arbitrário, teria sufocado os verdadeiros impulsos da brasilidade e imposto uma organização política artificial, desvinculada da terra e do povo brasileiros, com o fito, unicamente, de atender aos propósitos bragantinos de manutenção do Brasil à órbita portuguesa mesmo após a sua Independência formal.

    A ação de D. Pedro I, então, teria obstaculizado essa unidade espontânea ao subjugar as províncias a uma centralização deletéria e incompatível com o caráter nacional que despontava em seu ímpeto de soberania. Ao corromper a nova nação com as instituições de um Portugal decaído, o Império atentou contra a unidade nacional, mantida unicamente pela solidez dos laços de solidariedade existentes desde tempos pretéritos. Afirma Bomfim: “Foi a monarquia, agravada na centralização, que pôs em perigo a tradicional unidade do Brasil” (ibid: p. 160).

    Mais ainda, segundo Bomfim, a Coroa impôs à nova nação o parasitismo social e a decadência dos quais sofriam o próprio Portugal. As rivalidades separatistas que se sucederam e ganharam vulto durante a Regência teriam sido, segundo Bomfim, consequência da política instilada pelo governo sediado no Rio de Janeiro para enfraquecer a solidariedade interna e fortalecer a asfixiante centralização imperial.

    Nesse sentido, a deturpação das tradições promovida pela historiografia bragantista teve como intento legitimar a degradação política ocorrida pelo desvirtuamento da Independência praticado pela dinastia portuguesa transplantada no Brasil. Desse modo, imprimiu uma visão distorcida da formação nacional, que atribui a uma oligarquia estrangeira e parasitária um papel redentor e aos verdadeiros patriotas, a pecha de separatistas e traidores. Por décadas a fio, os brasileiros teriam compreendido sua própria história não de acordo com os verdadeiros interesses pátrios, mas de acordo com interesses alheios ao Brasil, calcados na manutenção do parasitismo social. Para Bomfim, o reencontro dos brasileiros com o seu próprio país e a afirmação da nossa singularidade nacional não poderia ocorrer sem o esclarecimento do devido processo histórico, que ele se propõe a fazer em sua obra.

    Evidentemente, as teses de Bomfim não encerram a discussão intelectual e política sobre a marcha da história brasileira. Sua contribuição é importante, mas não conclusiva, para alumiar muitas questões. Não está claro, por exemplo, que a unidade nacional brasileira, no momento da Independência, fosse tão firme quanto supõe o autor. Ele passa ao largo da ingerência externa, notadamente anglo-saxã, em muitos movimentos separatistas, como a Confederação do Equador – que tinha, em suas fileiras, um cidadão estadunidense, James H. Rodgers, e contou com o apoio da frota naval daquele país – e a Farroupilha, que contou com a participação dos carbonários Giuseppe e Anita Garibaldi. Em um momento histórico em que era notória e bem sucedida a intervenção fragmentadora da Inglaterra e dos Estados Unidos sobre os países latino-americanos, em que o modelo republicano e federalista era incapaz de assegurar a unidade e a coesão nacionais nos nossos países vizinhos e em que nações de extensão equiparável ao Brasil, como a Rússia, adotavam a forma monárquica de Estado, não seria propriamente um caso de traição à pátria optar pela monarquia como forma de organização política, ao contrário do que defende Bomfim. 

    O debate é amplo e permanece aberto. A importante contribuição de Bomfim é mais uma que pode ser somada para enriquecer a compreensão da história brasileira. Além dos aspectos diretamente abordados pelo autor, a leitura da sua obra, nos dias atuais, suscita outras reflexões. Podemos pensar, por exemplo, em como a revisão histórica promovida pelo identitarismo, ao analisar a formação brasileira pelo prisma dos valores, dos preconceitos e dos interesses dos centros metropolitanos norte-atlânticos, deturpa as tradições brasileiras de mestiçagem e sincretismo e, ao impor critérios alienígenas à organização nacional, legitima, assim, a degradação política contemporânea. Podemos pensar, também, em como a propaganda liberal (ou ultraliberal), ao desmerecer o ciclo nacional-desenvolvimentista ocorrido no Brasil entre 1930 e 1980, que proporcionou ao País o ritmo mais veloz de industrialização ocorrido no mundo nesse período, opera prática semelhante de deturpação das tradições e degradação política, diminuindo o papel histórico do Brasil na comunidade das nações e contribui para tolher os meios político-administrativos da reconstrução econômica de que tanto necessitamos hoje.

    Cabe ressaltar, então, que esse autor, injustamente esquecido, tem o inquestionável mérito de enquadrar a questão nacional como eixo do pensamento social, de modo que a formulação das categorias intelectuais alinhe-se aos ditames da emancipação da nacionalidade em termos especificamente brasileiros. Para ele, somente o nacionalismo, isto é, a defesa e a valorização do que é próprio ao Brasil e dos demais países latino-americanos e, consequentemente, a execução de amplas reformas sociais que elevem o padrão moral e material desses países, poderá desfazer o legado funesto do parasitismo social herdado da colonização.

    Em suas palavras, que resumem o seu pensamento e a sua mensagem: “O nacionalismo, que deve existir para a realidade desta pátria, tem de ser, concretamente, a afirmação das distinções e divergências que nos dão feição nacional. Isso é indispensável para termos uma evolução nossa. Só há pensamento autônomo, e ação de longas eficácias, onde existe feição própria e motivos novos, por serem distintos. Fora daí, perdemos tudo que por nós adquirimos: diminuímo-nos” (ibid: p. 193).

    REFERÊNCIAS:

    BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008 [1903].

    ________________. O Brasil na História: deturpação das tradições e degradação política. 2ª ed. Rio de Janeiro; Topbooks; Belo Horizonte: Puc-Minas, 2013 [1930].

    Felipe Maruf Quintas
    Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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    2 COMENTÁRIOS

      • Quintas é brilhante, um grande pensador político do Brasil. Quero me matricular no curso.
        Ps.: parabéns pelo artigo.

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