Euclides da Cunha (Cantagalo, 1866 – Rio de Janeiro, 1909), renomado escritor e jornalista brasileiro, foi um dos mais profícuos intérpretes da nossa nacionalidade. Formado em Engenharia Militar pela Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, pensou o Brasil em seu conjunto, pela articulação entre geografia, história, demografia e sociologia.
Euclides inquietou-se com o abandono e o esquecimento da maior parte da extensão territorial e dos grupos humanos em nosso País e, analisando-os de forma pioneira, trouxe o Brasil profundo aos debates públicos e intelectuais, contribuindo para a sofisticação da Questão Nacional e para a formulação e implementação de políticas estratégicas integradoras e socializadoras nas décadas seguintes.
A preocupação de integração nacional e social está presente em sua obra-magna, Os Sertões (1902)[1], fruto de sua participação na Campanha de Canudos enquanto correspondente do jornal Estado de São Paulo.
Ele não se limita a narrar jornalisticamente os fatos, mas insere-os em uma investigação acerca das condições geográficas e antropológicas do Brasil sertanejo. As três partes do livro – A Terra, O Homem, e A Luta – compõem uma unidade, cuja complexidade é elaborada ao longo da leitura.
Apenas na última parte ele descreve os combates propriamente ditos, cujo entendimento só poderia ser feito pela compreensão do perfil antropológico de homem existente nos sertões, bem como da sua organização psicossocial. Euclides é categórico: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Mesmo “desgracioso, desengonçado, torto” e possuindo “um caráter de humildade deprimente”, ele guarda, dentro de si, “energias adormecidas”, cujo despertar o transfigura e lhe confere uma altivez e uma robustez inesperadas (p. 207-8).
Essa força é o que o sustenta ante as intempéries da natureza hostil, sobretudo nas secas. Sua miséria, que o faz considerar a vida um “exílio insuportável” e invejar os mortos, e até mesmo a comemorar o falecimento das crianças (p. 243), era, por outro lado, o repositório de uma determinação sustentada pela mais profunda fé, tanto mais viçosa quanto mais flagelada era sua condição material.
Seu “misticismo feroz e extravagante”, transbordando, em grupo, em “psicose coletiva”, seria o combustível do heroísmo peculiar aos sertões. Um heroísmo abnegado e messiânico, e, por isso mesmo, resistente e devoto, capaz de operar grandes esforços comuns de cooperação e luta sob a liderança de apóstolos ascéticos, como Antônio Conselheiro, cuja existência Euclides afirma que há muito se considerava superada nos meios cultos das civilizações litorâneas. “Um heresiarca do século II em plena Idade Moderna”, assim Euclides classifica o Conselheiro (p. 278).
Esse homem, por sua vez, não existiria em abstrato, em lugar algum, mas no enraizamento em um meio geográfico específico, que fornecia as condições físicas para a sua existência social bem como de cenário para os conflitos descritos. Esse meio, duro, seco e ríspido, modelaria um tipo de homem equivalente. Como Euclides afirmou: “o martírio do homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. Nasce do martírio secular da Terra…” (p. 147). A geografia prefiguraria o ser humano e, portanto, a história.
Desse modo, Os Sertões não é simplesmente um relato, mas uma interpretação de Brasil. Um Brasil que não se limitaria ao litoral opulento e ao tipo “neurastênico” de homem que ali vive, que, com os olhos postos para a Europa e virado de costas para o continente, afetava ares de civilização, tanto mais artificial quanto importada.
Euclides revela às elites políticas e intelectuais litorâneas, então, um Brasil por elas desconhecido, de sertanejos malnutridos e iletrados e, por isso mesmo, fortes e místicos. Um Brasil indiferente às últimas modas europeias, enraizado em chão de pedra e marcado pela miséria e pelo sofrimento. Um Brasil alheio à República recém-fundada e que não era representado pelos ideais e pelos valores encarnados nas instituições, mas inexistentes na vida das massas famélicas dos rincões esquecidos.
O encontro dos dois Brasis, em tudo contrários um ao outro e irreconciliáveis entre si, não poderia ter se dado, então, sem a mácula da violência. Uma guerra, contudo, sem vitoriosos, pois perderam todos ante a vergonha suprema de um País que, por tanto tempo governado segundo preceitos civilizados europeus e, então recentemente, também norte-americanos, mantinha grande parte da sua população no mais profundo atraso, em condições sociais e psicológicas mais próprias dos albores do Medievo que das monarquias constitucionais europeias e de uma nascente República positivista.
Marcou-o profundamente o triste espetáculo do fanatismo dos excluídos e da brutalidade de um governo e de um Exército em guerra contra o seu próprio povo, do apartamento entre o Brasil profundo e atávico e o Brasil litorâneo e iluminista. O Brasil precisaria ser reformado em suas estruturas para se tornar uma Nação coesa e harmoniosa, inclusive para alcançar a almejada homogeneidade étnica mestiça, até então inexistente. A denúncia social presente em Os Sertões aponta, enfim, o problema a ser sanado pela devida ação política.
Segundo Euclides, “estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (p. 157). Civilização, segundo ele, seria a “evolução social”, isto é, a elevação do patamar de desenvolvimento, de instrução e de afluência de todo o povo. Na Nota Preliminar a Os Sertões, Euclides considera que a civilização inexoravelmente avançaria nos sertões. Contudo, isso não seria obra do acaso, mas resultado da devida organização política para tal fim. A integração nacional e a reconciliação dos dois Brasis em um só Brasil plenamente desenvolvido, foram, pois, o ideário defendido por Euclides ao longo da sua obra.
Em Terra sem História, ensaio publicado no livro póstumo “À Margem da História” (1909), ele analisa o contraste entre a natureza suntuosa e dinâmica da Amazônia e a escassez, dispersão e degradação dos grupos populacionais da região. Propôs, então, a mobilização da engenharia militar brasileira, financiada com as próprias rendas locais, para o desenvolvimento das infraestruturas de transporte e comunicação na Amazônia. O Exército, a quem Euclides tanto devia em termos de formação intelectual, seria, portanto, protagonista da construção da nacionalidade, justamente para extirpar, onde quer que fosse, as deploráveis condições sociais que desembocaram em Canudos. Ele também defendeu uma reforma agrária, a criação de leis trabalhistas e a garantia judicial de que os empregados não seriam aviltados por seus chefes[2].
O pensamento nacional de Euclides, portanto, buscou compreender o Brasil em sua inteireza, desbravando os recônditos intestinais do País a fim de integrá-los às demais regiões. Intérprete da Questão Nacional, alçou-a a um grau superior de abrangência dentro das condições específicas do Brasil. A integração nacional e social seria fundamental para o fortalecimento da soberania brasileira, de modo que os recursos físicos e humanos da Nação fossem desenvolvidos para dentro e em favor de todos. Assim, o litoral e os sertões poderiam compartilhar o mesmo patamar de civilização, em marcos genuinamente brasileiros e a serviço dos brasileiros. Não há mensagem mais pertinente para os tempos atuais, quando o refluxo da globalização torna imperativa a recolocação, no centro da política e dos debates públicos, da Questão Nacional e da reconstrução e do aperfeiçoamento das verdadeiras bases da nacionalidade.
[1] Utiliza-se, para esse artigo, a seguinte edição: CUNHA, Euclides da. Os Sertões – Campanha de Canudos. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial, Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado, 2001.
[2] Para maior aprofundamento sobre o pensamento de Euclides acerca da Amazônia, consultar o artigo que escrevi a respeito: https://bonifacio.net.br/a-amazonia-segundo-euclides-da-cunha/
Excelente e bem fundamentada resenha, na correta ótica da Questão Nacional. Parabéns por mais um ótimo artigo.
Obrigado, Pedro.