Intérpretes do Brasil – Abolicionistas

    O abolicionismo no Brasil foi um movimento, existente na segunda metade do século XIX, em defesa da abolição da escravidão e de reformas sociais e econômicas voltadas à superação das consequências negativas do escravismo para o desenvolvimento produtivo e a integração nacional. As diversas leis abolicionistas, como a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e, finalmente, a Lei Áurea (1888), bem como a abolição da escravidão no Ceará e no Amazonas em 1884, foram estimuladas pela mobilização abolicionista.

    De perfil sobretudo urbano, o abolicionismo, como afirma o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889, “foi a primeira campanha de dimensões nacionais com participação popular” (p. 211). Pessoas de diferentes condições sociais se envolveram nas campanhas abolicionistas, destacando-se Joaquim Nabuco (1849-1910), filho de influentes políticos e grandes proprietários rurais de Pernambuco, e Luís Gama (1830-1882), André Rebouças (1838-1898) e José do Patrocínio (1853-1905), oriundos das camadas pobres e escravizadas da sociedade. Da mesma forma, havia partidários tanto da Monarquia quanto da República entre os abolicionistas.

    Foram criadas várias associações e publicações em defesa do abolicionismo, e a organização de comícios e conferências promovia valores e conceitos emancipadores na sociedade. O endosso do Exército e das forças policiais, que se negaram publicamente a capturar negros fugitivos, foi crucial, e assinalou a centralidade dessas instituições de Estado na construção de um Brasil mais fraterno. Cumpre mencionar, especificamente, o pai do ex-presidente Getúlio Vargas, o general Manoel do Nascimento Vargas, herói da Guerra do Paraguai e líder da campanha abolicionista em São Borja. Também é de se enfatizar o apoio oferecido pelo Imperador Dom Pedro II e pela sua filha, a Princesa Isabel, à causa abolicionista. Ambos cercaram-se de alguns dos seus principais representantes, como André Rebouças e José do Patrocínio, e apoiaram a proposta do primeiro de criar um fundo de indenização para os negros libertos, com o fito de realizar uma reforma agrária que distribuísse terras incultas aos ex-escravos e favorecesse o povoamento do interior do País.

    O abolicionismo, além de ser uma corrente de organização política, também produziu uma interpretação de Brasil, consubstanciada no livro O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, publicado em 1883 e de imediato sucesso editorial.

    Luis Gama representava o abolicionismo de origem humilde nascido diretamente da escravidão.

    Segundo Nabuco, a escravidão era a base e o princípio de todo o edifício nacional brasileiro, em suas múltiplas dimensões – política, econômica, social, moral e cultural. Entre as consequências funestas por identificadas, ele apontou o atraso das forças produtivas nacionais, com uma indústria quase inexistente e uma lavoura rudimentar; a desvalorização do trabalho manual, sobretudo no campo; a mentalidade rentista dos proprietários, avessa às iniciativas industriais e de melhorias agrícolas, preferindo o ganho imediato, mas limitado, com a exploração extrema e infecunda da força de trabalho e dos recursos naturais; o abandono e a desantropização da maior parte do território; a falta de articulação do interior com as capitais e com o litoral; a alienação do comércio aos estrangeiros; o inchamento de uma máquina pública ineficaz; a pobreza, a ignorância e o embrutecimento da maior parte da população, tanto dos cativos quanto dos não-cativos. Ele afirmava que, a continuidade da escravidão resultaria, mais cedo ou mais tarde, no desmembramento do país, dada a falta de estrutura econômica e social para sustentar a continentalidade brasileira baixo um mesmo poder nacional.

    O abolicionismo, portanto, não seria simplesmente um movimento pela alforria dos escravos, mas pela reconstrução e regeneração do Brasil “sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade” (p. 9)[1], elevando as condições materiais de vida para toda a população, inclusive os brancos e mestiços livres, porém marginalizados na ordem escravista.

    Daí a necessidade de um “programa sério de reformas” voltado a erigir “um novo ideal de Estado […] para que delas resulte um povo forte, inteligente, patriota e livre” (p. 101). Nesse Brasil reformado, as instituições políticas estariam a serviço da integração nacional pelo desenvolvimento industrial e agrícola em todas as regiões, da conjunção do trabalho livre com a mecanização e o incremento técnico da produção, da disseminação das letras, da ciência e do conhecimento no conjunto da sociedade, da criação de um mercado interno capaz de alavancar a produção nacional e criar oportunidades de investimentos e inovações tanto no meio rural quanto no urbano.

    Dessa maneira, o abolicionismo considerava que a superação da “obra da escravidão” só seria possível com o desenvolvimento econômico e social do Brasil, arrancando o País da inércia, do retardo e da brutalidade a que o escravismo o havia condenado. A unidade nacional, em termos territoriais e sociais, dependeria do fim da escravidão e da superação de seu legado por meio do desenvolvimento assentado na valorização do trabalho livre.

    José do Patrocínio militou na política, amigo que era da Princesa Isabel, e no jornalismo a favor da causa abolicionista.

    O abolicionismo inscreve-se, assim, em uma tradição política genuinamente brasileira de busca pela construção do desenvolvimento autônomo e da integração social nos marcos da preservação e do fortalecimento da soberania e da unidade nacionais. Iniciada por José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, não à toa reconhecido pelos abolicionistas como seu mentor e patrono, essa tradição foi continuada pelos movimentos sanitarista e tenentista no século XX, culminando na Revolução de 1930, que deu início ao industrialismo e o fez acompanhar de direitos trabalhistas e sociais.  O regime militar, sobretudo a partir de 1967, continuou e aprofundou, em linhas gerais, essa tendência.

    Ainda que tenha sido produzida há quase um século e meio, a contribuição dos abolicionistas permanece atualíssima para a discussão dos rumos do Brasil no século XXI. De um lado, a desindustrialização e o enxugamento da proteção ao trabalho, consequências do neoliberalismo, agravam o subdesenvolvimento e, portanto, muitos dos aspectos que os abolicionistas denunciavam como sendo herança da escravidão. Como eles já defendiam, o que impulsiona o avanço econômico não é a maior exploração sobre a mão de obra, mas o aperfeiçoamento das forças produtivas por meio da parceria entre o Estado e o setor privado. De outro lado, a ofensiva do identitarismo racialista importado dos EUA, ao impor chaves interpretativas e padrões de atuação política exóticos ao Brasil, visa criar conflitos raciais de modo a enfraquecer a coesão social e a unidade nacional. Nada mais estranho aos abolicionistas, para quem o patriotismo era a condição básica para a defesa dos setores mais vulneráveis da sociedade, e, por isso, não limitavam sua agenda política a um grupo étnico específico, mas buscavam construir um Brasil unido e generoso para todos.

    Manuel do Nascimento Vargas, pai de Getúlio, veterano da Guerra do Paraguai, era abolicionista como outros veterano da Guerra, e também militares Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca.

    As forças nacionais e patrióticas, então, podem estar seguras de encontrar, nos abolicionistas, uma interpretação de Brasil e um projeto nacional capazes de fazer do Brasil, segundo Nabuco “o mais belo, rico e fértil território que até hoje nação alguma possuiu” (p. 88), um País forte e solidário, onde todas as vidas importam.

    Referências e recomendações de leitura:

    O Abolicionismo – Joaquim Nabuco. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000127.pdf

    1889 (cap. 12 – Os Abolicionistas) – Laurentino Gomes.  Globo, 2013.

    Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e Um País – André Botelho e Lília Moritz Schwarcz (org.). Companhia das Letras, 2009.


    [1] Para as referências de páginas da obra O Abolicionismo, utilizo a edição disponibilizada online no seguinte endereço: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000127.pdf

    Felipe Maruf Quintas
    Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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