A guerra comercial desencadeada por Trump representa um risco global, mas a depender de como evolua nos próximos meses pode vir a se transformar em uma disputa entre Estados Unidos e China. A decisão do governo Trump de pausar as tarifas recíprocas por 90 dias, mas elevar para 145% a taxação sobre a China é um sinal de que as coisas podem caminhar nessa direção. De qualquer modo, mesmo que a nova política comercial dos Estados Unidos vise todos os seus parceiros comerciais, não resta dúvida de que a China continuará a ser seu o alvo principal, até porque é o mais importante parceiro comercial dos Estados Unidos e o país em relação ao qual o déficit comercial dos Estados Unidos é mais acentuado. O comércio de mercadorias entre as duas potências econômicas, em 2024, somou cerca de US$ 582 bilhões. A China exportou US$ 438,9 bilhões em mercadorias para os EUA, enquanto importou US$ 143,5 bilhões em produtos norte-americanos, gerando um superávit a favor da China de US$ 295,4 bilhões.
Isso não quer dizer, contudo, que a China será a único país afetado pela nova política comercial protecionista dos Estados Unidos. Na verdade, o grande temor de países cujas taxas recíprocas impostas pelos EUA são mais baixas, como o Brasil, que foi taxado em 10% (além dos 25% sobre aço, alumínio), mais do que as tarifas em si, é o risco de uma recessão global que pode ser provocada pela guerra comercial, pois afetaria negativamente não apenas as exportações para os EUA, mas para todo o resto do mundo.
Como afirmou o economista Roberto Padovani, economista-chefe do BV, para a Folha de S. Paulo (09/04/2025), “Tudo sugere que a gente está num cenário de disputa política, geopolítica, uma disputa pesada. Não tem nenhuma consideração econômica nessas decisões e isso deve conduzir o mundo a um quadro de estagflação, menos crescimento com mais inflação, não é por outro motivo que além da imprevisibilidade dos mercados reagem tão mal.” Ainda segundo o economista, “Esses movimentos todos são essencialmente políticos, eles não têm nenhuma lógica econômica, nem da parte dos Estados Unidos, nem da parte da China, o que aumenta a imprevisibilidade. O que a gente sabe, olhando a história econômica, é que guerras comerciais são bloqueios às exportações, às importações, portanto impactam a produção local, não favorecem as condições de consumo nos vários países.”
Organizações multilaterais, como o FMI e Banco Mundial, já reduziram suas previsões de expansão global em decorrência da guerra comercial. Conforme noticiou o jornal Valor Econômico (25/4/2025), “Com tarifas dos EUA, FMI reduz previsão de expansão global em 2025 de 3,3% para 2,8%.” Nem todos os países e setores econômicos serão afetados com a mesma intensidade. De acordo com o próprio FMI a crise nos mercados tem um impacto desproporcional sobre países mais vulneráveis. Conforme destacou matéria do jornal Valor Econômico (22/04/2025), o “chefe do Departamento dos Mercados de Capitais do Fundo ressaltou que os spreads soberanos de países emergentes subiram.” Ainda segundo a matéria, “caso a economia global de fato desacelere, conforme as previsões, acarretará queda dos preços das commodities e aumentará ainda mais o impacto para muitas nações em desenvolvimento.”
Já a disputa Estados Unidos e China é um capítulo à parte. “Guerras comerciais são boas e fáceis de vencer” postou Trump em 2018. Mas a China tem se mostrado um osso duro de roer para Trump. Escaldados com a guerra comercial iniciada por Trump, em 2018, e continuada por Biden na gestão seguinte, os chineses estão muito melhor preparados para enfrentar os Estados Unidos nessa nova guerra comercial que Trump começou em seu segundo mandato.
Nos últimos anos, a China tomou importantes medidas com o objetivo de fortalecer seu mercado interno de modo a deixar sua economia menos dependente das exportações. Acelerou seu desenvolvimento tecnológico, sobretudo na produção de semicondutores, para depender menos de fornecedores norte-americanos de insumos de alta tecnologia. Diversificou o destino de suas exportações, aumentou o número de parceiros comerciais, fortaleceu os laços econômicos e comerciais com países da Ásia, dos BRICS e do chamado Sul Global.
A China reorientou seu investimento direto estrangeiro para outras regiões do globo além dos Estados Unidos e da União Europeia, construindo fábricas no México, no Brasil, no Leste Europeu e no Sudeste Asiático. Criou uma rede monetária alternativa ao dólar para fazer seus próprios negócios com o resto do mundo. Fez acordos de trocas de moedas com muitos parceiros comerciais de forma a depender menos do dólar e do sistema bancário norte-americano para realizar suas transações comerciais. Criou o CIPS – Cross-Border Interbank Payment – o sistema chinês de compensações internacionais em renminbi, com a finalidade de reduzir a dependência do sistema hegemônico SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e vem promovendo a internacionalização do yuan, a moeda chinesa.
Não que a China não vá sofrer com a escalada tarifária iniciada por Trump. Muitas empresas chinesas operam basicamente para abastecer o mercado norte-americano e certamente sofrerão com as tarifas impostas pelos EUA para os produtos chineses. Mas o fato é que se muitas empresas chinesas dependem das exportações para os Estados Unidos, no sentido oposto, os Estados Unidos dependem das importações chinesas de muitos produtos, para os quais não têm produção local nem fornecedores alternativos. Tanto que pressionado pelas próprias empresas norte-americanas Trump isentou temporariamente da tarifa de 145% a importação de smartphones e outros produtos eletrônicos. Segundo noticiou a imprensa, as autoridades norte-americanas também estão considerando isentar das tarifas as importações de autopeças vindas da China por pressão das empresas automobilísticas norte-americanas.
A China nunca se negou a negociar com o governo Trump, mas diferentemente do que Trump afirma para a imprensa, os chineses não estão desesperados para fazer um acordo com os Estados Unidos e estabeleceram suas próprias condições caso os Estados Unidos desejem negociar. O jornal Valor Econômico (24/04/2025) publicou informe da agência de notícias Bloomberg segundo o qual “A China exigiu ontem que os EUA revoguem todas as tarifas unilaterais e afirmou que não há negociações em curso para alcançar um acordo comercial. O país manteve uma postura firme, apesar de o presidente americano Donald Trump ter amenizado as críticas à nação asiática na véspera. “As medidas tarifárias unilaterais foram iniciadas pelos EUA”, disse ontem He Yadong, porta-voz do Ministério do Comércio da China, em um briefing regular à imprensa em Pequim. “Se os EUA realmente querem resolver o problema, deveriam cancelar completamente todas as medidas tarifárias unilaterais contra a China e encontrar uma maneira de resolver as diferenças por meio de um diálogo igualitário.”
Matéria do jornal inglês Financial Times (29/04/2025), cujo título é “Por que os EUA perderão para a China”, assinada pelo respeitado comentarista econômico Martin Wolf, afirma que “ O “dia da libertação” de Donald Trump, com suas supostas “tarifas recíprocas” contra o resto do mundo — sem dúvida, as propostas de política comercial mais excêntricas já feitas —, após uma retirada precipitada sob o fogo dos mercados, transformou-se em uma guerra comercial com a China. Isso pode (ou não) ter sido o que se pretendia desde o início. Então, será que Trump pode vencer essa guerra contra a China? De fato, os EUA, como estão agora após a segunda vinda de Trump, podem esperar ter sucesso em sua rivalidade mais ampla com a China? As respostas são “não”. Isso não ocorre porque a China seja invencível, longe disso. É porque os EUA estão jogando fora todos os ativos de que precisam se quiserem manter seu status no mundo contra uma potência tão grande, capaz e determinada quanto a China.”
Um dos motivos, afirma a matéria, “ é que a China também tem cartas na manga. Muitas potências importantes já realizam mais comércio com a China do que com os EUA: entre elas, Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, Japão e Coreia do Sul. Sim, os EUA são um mercado de exportação mais importante do que a China para muitos países, em parte devido aos déficits comerciais dos quais Trump se queixa. Mas a China também é um mercado significativo para muitos. Além disso, a China é uma fonte de importações essenciais, muitas das quais não podem ser facilmente substituídas. Afinal, as importações são o propósito do comércio.”
Na mesma linha, o Wall Street Journal (01/05/2025) em matéria com título semelhante – Por que a China pode vencer a guerra comercial de Trump – destaca que “ Os republicanos têm menos de 18 meses para virar o jogo, sob pena de naufragarem nas eleições de meio de mandato de 2026”, enquanto os chineses têm o tempo a seu favor. Ainda segundo a matéria, “O tempo também está a favor do Sr. Xi em outros aspectos. O que ainda não foi mencionado aqui é um “estímulo” adicional para a economia chinesa, na forma de transferências fiscais financiadas por dívida para famílias e empresas, a fim de impulsionar o consumo, ou outra expansão do crédito para evitar falências empresariais e financiar mais obras públicas. Esses pacotes de gastos — já estamos na casa das centenas de bilhões de yuans — tornaram-se o principal método de Pequim para alcançar o “crescimento” econômico nos últimos anos. Outro pacote de estímulo parece inevitável se a guerra comercial se prolongar.”