Resenha Estratégica – Vol. 17 | nº 47 | 26 de novembro de 2020
Silvia Palacios e Lorenzo Carrasco
“Aqueles de nós que vestimos o uniforme militar sabemos que as mudanças transcendentais exigem vontades coletivas que trabalhem para um único objetivo e grandes ideais nacionais, como os promovidos pela sua administração, e nos quais prevalece um único propósito: o México! Por isso, endossamos o compromisso de continuar contribuindo para a segurança nacional, interna e pública. O compromisso de continuar trabalhando nos projetos prioritários do seu governo, em prol do bem-estar da população.
“Por isso, é importante ressaltar que, em coordenação com a Marinha e de acordo com as atribuições que a sua lei orgânica lhe confere, é a quarta missão estabelecida na lei orgânica do Exército e da Força Aérea, que apoia a nossa participação em projetos prioritários, uma vez que obriga o seguinte, passo a citar, ‘realizar ações cívicas e sociais que favoreçam o progresso do país’.”
Essas palavras foram dirigidas ao presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, pelo secretário (ministro) de Defesa Nacional, general Luis Crescencio Sandoval González, no último dia 20 de novembro, na cerimônia de comemoração dos 110 anos da Revolução Mexicana, para reiterar a importância da participação das Forças Armadas em programas de infraestrutura vitais e urgentes, necessários para se enfrentarem os desafios econômicos impostos pela pandemia de Covid-19. Com isso, o militar reafirmou as raízes históricas singulares que originaram as Forças Armadas nacionais, as quais as legitimam para o exercício da segurança interna e externa, da defesa da soberania nacional e da garantia do bem-estar da população.
“No cumprimento dessa missão” – reiterou o general Sandoval – “nunca deixamos de lado as outras, pelo que, em conjunto, o Exército, a Marinha e a Força Aérea defendem a integridade, a independência e a soberania da nação com uma cobertura militar e naval permanente em todo o território nacional. Nós, que fazemos parte das Forças Armadas, somos oriundos de populações de todo o território nacional e esta é uma prova cabal de que a nossa instituição nasceu do povo, se alimenta do povo e trabalha para o povo; não há como essa realidade possa mudar.”
Respondendo aos meios de comunicação que têm especulado sobre supostos planos das Forças Armadas para dominar o poder político nacional, o secretário de Defesa foi taxativo: “A instituição armada nunca buscou nem buscará destaque, porque a nossa essência é servir ao país… Assim, é evidente que não ansiamos por nenhum poder, porque a nossa razão de ser está longe de pretensões políticas ou outras… Com essa subordinação ao poder civil, cumprimos as missões gerais que nos são atribuídas e trabalhamos em projetos prioritários que visam ao desenvolvimento do nosso país, sem que isto signifique perder a nossa natureza ou razão de ser.”
E concluiu com uma declaração de lealdade à Presidência da República: “A nossa lealdade institucional é infalível; 107 anos de institucionalidade desde o nascimento das
atuais Forças Armadas da nação, falam por si mesmos. Sobretudo, esses 107 anos de lealdade institucional jogam luz sobre o pilar que representamos para a estabilidade e o desenvolvimento do país.”
É evidente que essas declarações da mais alta autoridade militar do país foram necessárias, em função dos ataques internos e externos ao papel das Forças Armadas para a estabilidade institucional, frente à enorme crise atual. Um desses ataques diretos à sua credibilidade foi a prisão arbitrária do general Salvador Cienfuegos, ex-secretário de
Defesa do governo anterior, pela Agência Antidrogas (DEA) dos EUA. Em realidade, tratava-se de uma tentativa de armadilha para que López Obrador a incluísse como parte de suas denúncias de corrupção contra o governo de Enrique Peña Nieto (2012-18) e, consequentemente, se indispusesse com os militares.
Mas o mandatário esquivou-se da trampa, defendendo a honra das Forças Armadas e exigindo a apresentação de provas irrefutáveis contra Cienfuegos ou a sua liberdade imediata. Com isto, AMLO passou por cima dos acordos de segurança com órgãos de inteligência estadunidenses, em especial, a própria DEA, principal suspeita de ter arquitetado a operação, cujo propósito evidente era reparar o terreno para colocar o controle da segurança interna do México nas mãos dos EUA, de acordo com os desígnios do Comando Norte das Forças Armadas estadunidenses. A atitude do presidente e a posterior libertação de Cienfuegos fizeram com que as Forças Armadas mexicanas cerrassem fileiras ao seu redor, em defesa da soberania.
O que receiam os “antimilitares”
Há alguns meses, as elites oligárquicas internacionais voltaram a questionar o papel das Forças Armadas ibero-americanas na formulação de políticas de estabilidade econômica, especialmente, durante a emergência sanitária causada pela pandemia de Covid-19 (Resenha Estratégica, 23/09/2020).
Este é o pano de fundo do artigo publicado no Los Angeles Times de 21 de novembro, escrito por seus correspondentes na Cidade do México, Kate Linthicum e Patrick McDonneld, um irado protesto contra a proximidade de López Obrador com as Forças
Armadas. Mc Donneld tem evidentes vínculos aos círculos de segurança estadunidenses.
Antes de ser chefe do escritório do jornal no México, esteve em Beirute, cobrindo os conflitos na Síria, Iraque, Líbia, Líbano e Turquia.
O artigo começa lamentando que, como candidato, López Obrador tenha atacado as Forças Armadas e “a máfia do poder”, mas, na Presidência, teria mudado de ideia e adotado “os mesmos líderes militares que havia atacado antes”.
E prossegue: Depois que Cienfuegos foi preso, no Aeroporto Internacional de Los Angeles, no mês passado, sob a acusação de tráfico de drogas, o presidente correu para defendê-lo e ameaçou suspender a cooperação de segurança com os EUA, a menos que as acusações fossem retiradas. As autoridades estadunidenses cederam esta semana e devolveram o general aposentado de 72 anos ao México.
Foi um presente sem precedentes para os cada vez mais poderosos militares do país.
Tradicionalmente, os militares têm desempenhado um papel limitado nos assuntos civis, diferenciando o México de grande parte da América Latina, onde golpes e governos militares eram comuns. Com López Obrador, esse muro começou a ruir.
As tropas agora lideram a luta contra a imigração ilegal, a pandemia do coronavírus e o roubo generalizado de combustível nos oleodutos. Eles lideram os maiores projetos de infraestrutura do país e, em breve, controlarão os seus portos e passagens de fronteira.
Mas, talvez, o mais importante é que o presidente, um populista que promete transformar o México em benefício dos pobres, alienou muitos dos atores tradicionais do poder no país, desde a sua elite empresarial até os partidos de oposição que controlam vários estados e mantêm um forte apoio dos sindicatos do setor público. As Forças Armadas estão entre as poucas instituições em que López Obrador, conhecido como AMLO, pode confiar. Ao elevar o seu papel, ele também se tornou mais dependente delas.
Para demonstrar a suposta ameaça representada pelos militares à democracia, o artigo do Los Angeles Times recorre a Maureen Meyer, especialista do Escritório de Washington sobre a América Latina (WOLA, em inglês) em questões de migração, segurança e direitos humanos referentes ao México. Segundo ela, as Forças Armadas “têm tido uma impunidade generalizada por acusações de direitos humanos e, também, por questões de corrupção… Ter Forças Armadas com tanto poder é realmente perigoso”.
O WOLA (Washington Office of Latin America) é uma representante exemplar da máfia que manipula a defesa dos direitos humanos em autênticas guerras irregulares contra as estruturas dos Estados nacionais ibero-americanos, em especial, as Forças Armadas. Tais
campanhas neocoloniais “humanitárias” engajam governos, entidades privadas, ONGs e fundações das elites oligárquicas ocidentais. A organização foi fundada em 1974, por redes do Conselho Mundial de Igrejas nos EUA, como um braço de inteligência informal do Departamento de Estado e muito bem posicionado na mídia. De acordo informações do seu próprio sítio, a entidade foi muito ativa no Congresso e na Casa Branca, a partir do governo de Jimmy Carter (1977-1981), trabalhando em estreita colaboração com as embaixadas estadunidenses nos países do Cone Sul governados por militares, para documentar e produzir dossiês sobre violações dos direitos humanos. Atualmente, recebe financiamentos das fundações Ford, Rockefeller, John D. e Catherine T. MacArthur e Open Society (do megaespeculador George Soros), além do Ministério de Relações Exteriores da Noruega, muito ativo nas causas indígenas e nos processos de paz na Colômbia.
O que preocupa tais redes intervencionistas são os elevados níveis de credibilidade e confiança que as Forças Armadas ibero-americanas mantêm entre as populações dos seus países, os quais podem aumentar ainda mais, devido à crise de confiança nas instituições civis em todo o continente, devido aos impactos da pandemia de Covid-19. Em outras palavras, o jogo que começou durante a presidência de Jimmy Carter está desmoronando. Agora, é cada vez mais evidente que a agenda dos direitos humanos foi manipulada como um aríete para apoiar a implementação de uma ordem econômica neoliberal, na qual o patrimônio estratégico dos Estados nacionais e o controle efetivo sobre partes dos seus territórios ficassem sob o controle de forças econômicas supranacionais, sob as vistas impotentes de Forças Armadas artificialmente convertidas em “obstáculos” à ordem democrática e ao Estado de Direito.
A diretriz geral era a de estabelecer uma ordem de “soberanias limitadas” sobre regiões ricas em matérias-primas estratégicas, minerais e energia. Para o México, essa política foi sintetizada na frase do conselheiro de Segurança Nacional de Carter, Zbigniew Brzezinski, de que “os Estados Unidos não permitiriam um novo Japão ao sul de sua fronteira”. O desastroso Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), com o qual o México abdicou da sua soberania financeira, foi o resultado natural dessa orientação, a qual se pretendia ampliar para que o país fosse formalmente incorporado ao “guardachuva” de segurança estadunidense sob a égide do Comando Norte – esquema rechaçado pelos militares mexicanos.
Essas diretrizes estratégicas se reforçaram com a proclamação da “Nova Ordem Mundial” pelo presidente George H.W. Bush (1989-1993), inaugurando uma sequência infindável de guerras por recursos naturais, no Grande Oriente Médio. Em paralelo, entidades como o Diálogo Interamericano, a Fundação Nacional para a Democracia (NED), a rede de institutos da Sociedade Aberta de Soros e um exército irregular de ONGs internacionais e nacionais, se engajavam nos projetos de neutralização institucional das Forças Armadas, como linha auxiliar da agenda neoliberal e “identitária” – indigenismo, racialismo, ideologia de gênero, direitos reprodutivos etc.
A pandemia, visivelmente, está acelerando o declínio dessa ordem hegemônica, baseada na supremacia militar e política dos Estados Unidos e do sistema financeiro especulativo ocidental, abrindo caminho para uma grande oportunidade de criação de uma ordem mundial cooperativa e uma nova arquitetura financeira favorável à economia real. Uma ordem não-hegemônica, que exige um reposicionamento dos Estados nacionais soberanos e de suas instituições básicas, como as Forças Armadas, no centro da formulação dos respectivos projetos de desenvolvimento. A estes atores cabe, igualmente, promover a retirada de cena das políticas neoliberais, que jamais foram responsáveis pela construção dos alicerces da prosperidade industrial e do bem-estar geral da população.