Excesso de capacidade da China ou protecionismo do Ocidente?

    Uma nova onda de medidas protecionistas está sendo posta em prática contra as exportações da China, em todo o mundo, sob o argumento de que o excesso de capacidade de produção está levando as empresas chinesas a venderem seus produtos no exterior com grandes descontos, prejudicando os fabricantes locais.

    Os dois setores mais visados são o de produção de automóveis elétricos e o siderúrgico. Fala-se, inclusive, em “Choque da China 2.0” em alusão ao início dos anos 2000, quando houve uma suposta invasão de produtos baratos chineses em todo o mundo após sua adesão na OMC. Só que desta vez não são produtos baratos, mas produtos sofisticados e de alta tecnologia, como é o caso dos carros elétricos, nos quais os chineses se tornaram mestres em termos de performance, design e acabamento interior e, obviamente, em preço.

    No caso do setor siderúrgico o argumento é que a crise do setor imobiliário na China, que consome 25% da produção mundial de aço, deixou os fabricantes de aço chineses com muitos estoques que estariam sendo vendidos no exterior com grandes descontos, prejudicando assim os concorrentes locais. Vários países abriram procedimentos para verificar a existência de dumping e poder, assim, sobretaxar o aço chinês. Ocorre que se os procedimentos para a verificação de dumping no caso do aço chinês fossem os mesmos utilizados para outras empresas do Ocidente é pouco provável que fosse encontrada alguma margem de dumping que justificasse as sobretaxas. Mas não é este o caso.

    Quando a China foi aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, teve que se submeter a uma série de regras discriminatórias por não ser considerada, erroneamente, uma economia de mercado. Dentre essas regras, há uma que prevê que a verificação de margem de dumping em países não considerados economia de mercado utilize como referência não os preços normais praticados no país investigado, mas sim os preços de terceiros mercados. É obvio que a enorme escala de produção chinesa e a forte competição interna tornam seus produtos mais competitivos tanto na própria China como no exterior. Mas a utilização de preços de terceiros mercados sempre irá identificar margem de dumping, ainda que na realidade não exista.

    Na verdade, com a virtual falência da OMC promovida pelos Estados Unidos, muitos países, sobretudo os próprios Estados Unidos estão pouco se lixando para as normas da OMC. Tanto que o presidente Biden, em um comício de campanha, no mês de abril, já disse vai pedir que a sobretaxa sobre o aço chinês seja triplicada independentemente de qualquer verificação. Infelizmente o comércio mundial, depois de Trump, virou terra de ninguém onde quem pode mais chora menos.

    O caso do setor automobilístico é bem mais complicado, uma vez que os argumentos utilizados para demonstrar que há excesso de capacidade chinesa na produção de carros elétricos são para lá de questionáveis, a começar pelo próprio conceito de excesso de capacidade, ainda mais na produção de um produto, o carro elétrico, que mal chegou ao mercado mundial e cuja demanda deve se multiplicar por várias vezes nos próximos anos.

    Conforme observou o jornal Global Times (27/4), “De acordo com cálculos da Agência Internacional de Energia, para atingir o objetivo da neutralidade do carbono, as vendas globais de veículos de novas energias precisam atingir aproximadamente 45 milhões de unidades até 2030, 4,5 vezes mais do que em 2022. Isto mostra que a procura global é real e não existe “excesso de capacidade”.

    Segundo a narrativa criada, novamente pelos Estados Unidos, para justificar o argumento de excesso de capacidade de produção de carros elétricos na China, a crise no setor imobiliário chinês, que responde por cerca de ¼ do seu PIB, teria levado o governo a estimular os investimentos na indústria manufatureira e as exportações para garantir a meta de crescimento do PIB de 5% definida pelo governo. Se de fato o governo chinês fez isso, não há, obviamente, nada de errado, haja vista que os próprios Estados Unidos estão oferecendo centenas de bilhões de dólares para empresas nacionais e estrangeiras transferirem para o seu território a produção de semicondutores, painéis solares, hidrogênio verde e tudo o mais que se relacione com alta tecnologia e transição energética.

    Mas voltando ao caso dos carros elétricos, o que de fato ocorre na China é que diante da perspectiva de um rápido crescimento da demanda interna, há uma competição intensa para fabricar veículos elétricos no país. A quantidade de carros que a China exporta, embora esteja aumentando, é apenas uma pequena fração de seu mercado interno.  Os grandes exportadores mundiais de veículos não são os chineses, que mal chegaram ao mercado, mas as empresas americanas e europeias do setor.

    Segundo o jornal japonês Nikkei Asia (08/5), na Alemanha, os veículos de fabricação chinesa representaram apenas 0,8% dos carros novos matriculados em março, de acordo com a KBA, a Autoridade de Transportes Motorizados da Alemanha.

    Diferentemente da Europa e EUA, onde a indústria automobilística é um gigantesco oligopólio dominado por meia dúzia de empresas, na China existem atualmente mais de 50 fabricantes de carros elétricos em competição feroz entre si. Paradoxalmente, o Ocidente, com seu capitalismo engessado pelo poder exorbitante das grandes corporações se incomoda com o fato de a China praticar o capitalismo concorrencial, a verdadeira economia de mercado, tal como imaginada por Adam Smith e seus seguidores.

    Se houvesse de fato excesso de capacidade não haveria tantas empresas estrangeiras no setor querendo investir na China. Conforme informou o jornal chinês Global Times (27/4), “a montadora alemã BMW Group anunciou seus planos de investir mais 20 bilhões de yuans (US$ 3,12 bilhões) em sua base de produção em Shenyang, província de Liaoning, no nordeste da China, na sexta-feira”. De acordo com o Financial Times, “no final de 2020, a Volkswagen abriu um centro de pesquisa e desenvolvimento na província de Anhui e detém uma participação importante na Guoxuan, uma empresa chinesa de baterias”. No 18° Salão do Automóvel de Pequim, inaugurado em 25/4 havia mais de 1.500 empresas expositoras, 278 modelos de novos carros elétricos e 117 modelos de estreia mundial. Em artigo recente publicado na Carta Brasil-China (Ed. 37. abril 2024), Haixu Qiu afirma que a Chinese Academy of Sciences prevê que a frota de veículos elétricos da China chegará a 200 milhões de carros até 2035.

    Como lembrou Zhang Xiang, diretor do Centro de Pesquisa de Cooperação Internacional Automotiva Digital do Fórum Mundial de Economia Digital (Global Times, 27/4), “Os EUA exportam 80% dos seus chips e são um grande exportador de aviões, automóveis, computadores, soja e produtos agrícolas para a China. Estará esta ‘capacidade excessiva’ de acordo com a lógica dos EUA?” Na verdade, a alegação de “excesso de capacidade”, no caso dos veículos elétricos chineses, não é uma conclusão definida pelo mercado, mas uma narrativa criada pelos concorrentes ocidentais que temem que a concorrência chinesa os obrigue a reduzir seus preços, como de fato já vem ocorrendo.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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