EUA: quem tem medo da nova lei de segurança nacional do México?

Cidade do México, capital do país.

Silvia Palacios e Lorenzo Carrasco

A aprovação pelo Congresso Nacional do México de uma nova Lei de Segurança Nacional, que tem como um dos itens principais a regulamentação da atuação de agentes estrangeiros no território nacional, provocou uma irada reação de alguns setores do poder estadunidense.

A aprovação emergencial da lei, em 15 de dezembro, foi uma resposta institucional à prisão arbitrária do general Salvador Cienfuegos, ex-secretário de Defesa Nacional mexicano, no aeroporto internacional de Los Angeles, EUA, em outubro, acusado sem qualquer prova de envolvimento com o narcotráfico pela Agência Antidrogas estadunidense (Drug Enforcement Agency – DEA).

A nova legislação busca coibir a atuação da DEA e outros órgãos de inteligência e segurança estadunidenses, que atuam indiscriminadamente à margem das autoridades mexicanas, no combate ao narcotráfico, real ou pretextado. A nova lei exige apenas o compartilhamento de informações com as autoridades federais, que devem monitorar continuamente as suas atividades, além de retirar a imunidade diplomática dos agentes estrangeiros.

Tal limitação efetiva da soberania mexicana consolidou-se a partir da implantação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), em 1994, que subordinou o país à agenda da “Nova Ordem Mundial” encabeçada pelos EUA.

Com o NAFTA, o México tornou-se um virtual apêndice estadunidense, não só na área econômica, mas também, cada vez mais, nas questões de segurança, com os agentes de órgãos federais como a DEA, FBI e ATF (Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos), atuando sem restrições dentro do país, em evidente comprometimento da soberania e de suas instituições nacionais.

Essa reação institucional ocasionou uma onda de protestos de representantes do Establishment oligárquico estadunidense, encabeçada pelos jornais New York Times e Wall Street Journal. Este último, o porta-voz predileto dos interesses financeiros de Wall Street, publicou em sua edição de 16 de dezembro, um dia após a aprovação da lei, um insidioso artigo assinado pelo seu editor para a América Latina, Santiago Pérez, e o correspondente para a América Latina, José Córdoba, afirmando que “o partido governante do presidente Andrés Manuel López Obrador promoveu uma nova lei que restringe o papel dos agentes estrangeiros no México, medida que os Estados Unidos acreditam que paralisará os esforços bilaterais para acabar os poderosos cartéis de drogas ”.

Outro trecho do artigo afirma que a lei foi uma reação à “impactante detenção do general Salvador Cienfuegos”, que “levou López Obrador a questionar o papel da DEA, qualificando-a de agência desonesta que espezinha a soberania nacional”. Os autores responsabilizam diretamente as Forças Armadas, pelo que consideram uma lei severa e contrária aos desígnios de Washington: “A prisão do general Cienfuegos despertou paixões nacionalistas antiamericanas nas Forças Armadas.”

No mesmo dia, o NYT afirmou que, “na condição de anonimato, um alto funcionário estadunidense garantiu ao jornal que a legislação paralisará as investigações em andamento, destacando, ao mesmo tempo, que ‘a violência e o fluxo de drogas para o norte dos Estados Unidos podem aumentar’”.

Um princípio de supranacionalidade

Porém, incomparavelmente mais enfática e significativa foi a reação do procurador-geral William P. Barr, que, em um incomum comunicado de imprensa emitido pelo seu gabinete em 11 de dezembro, quando o projeto ainda estava em discussão, afirmou: “Estamos preocupados com que a legislação que tramita no Congresso Nacional [mexicano] dificulte a cooperação entre os nossos países.” E, sem disfarçar a irritação, acrescentou: “A aprovação dessa legislação só pode beneficiar as violentas organizações criminosas transnacionais e outros criminosos contra os quais lutamos juntos.”

Sem surpresa, Barr tem um longo histórico de envolvimento nas operações clandestinas do aparato de segurança estadunidense, desde pelo menos o final da década de 1980, quando ocupou pela primeira vez um cargo no Gabinete do Procurador-Geral, na presidência de George H.W. Bush (1989-1993). Na época, ele era chefe do Gabinete de Assessoria Jurídica e adjunto do procurador-geral Richard Thornburgh, autor intelectual de um princípio intervencionista que justificava a detenção de líderes estrangeiros sem autorização dos respectivos Estados, em violação aberta de todos os princípios de soberania e não-intervenção que regem o Direito Internacional, o qual ficou conhecido como “Doutrina Thornburgh”.

Com esse princípio de supranacionalidade, o governo de Bush pai justificou as invasões do Panamá, em dezembro de 1989, para capturar o líder panamenho Manuel Noriega, e a Guerra do Golfo contra o Iraque, em 1990-91. Entre 1991 e 1993, Barr atuou como procurador-geral, período em que aconselhou Bush a conceder o perdão presidencial a alguns funcionários do governo envolvidos nas operações clandestinas do chamado caso Irã-Contras.

O episódio envolveu uma complexa trama coordenada pela CIA (Agência Central de Inteligência) e a DEA, para promover a entrega de armas ao Irã (submetido a um embargo desde 1979) e aos insurgentes Contras nicaraguenses, em troca de drogas ilícitas fornecidas pelos cartéis colombianos e mexicanos, entre 1985 e 1986, durante o governo de Ronald Reagan (1981-1989). Entre os perdoados, estavam o ex-secretário de Defesa Caspar Weinberger, o ex-conselheiro de Segurança Nacional Robert McFarlane e o ex-secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos Elliot Abrams, um iracundo “neoconservador” também continua em evidência, como representante especial do Departamento de Estado (leia-se provocador-mor) para o Irã e a Venezuela.

A investigação da operação Irã-Contras explicitou um antigo e peculiar modo de financiamento das atividades clandestinas do aparato de inteligência e “segurança nacional” estadunidense, cujas origens remontam à criação da CIA, em 1947, e que lhe proporcionam uma considerável independência dos orçamentos oficiais e da supervisão do Congresso. Em suma, foi uma troca de drogas por armas, em prol de vendas clandestinas de armas ao Irã e aos Contras, em rebelião contra o regime sandinista na Nicarágua. Na ocasião, Bush era vice-presidente de Reagan e encarregado de “supervisionar” as operações de inteligência. O próprio Barr foi recrutado pela a CIA ainda em seus dias de estudante, na década de 1970.

Em um ensaio intitulado “A invasão estadunidense do Panamá: uma avaliação do ponto de vista do Direito Internacional”, publicado na revista mexicana Benengeli (primeiro trimestre de 1991), o renomado jurista alemão Friedrich August von der Heydte denuncia que a invasão e a prisão do presidente Manuel Noriega, além de “violar todos os conceitos do Direito Internacional”, foi motivada por razões políticas: “Parece óbvio, além disso, que o general Noriega tinha amplo conhecimento dos serviços de inteligência e também de atividades simplesmente ilegais – como o caso Irã-Contras – de vários presidentes dos Estados Unidos.

Em suma, a intenção era substituir um acessório inconveniente – especialmente, em relação às atividades anteriores do presidente Bush – por pessoas menos informadas e mais dóceis à frente do governo panamenho.”

(Von der Heydte é autor dos livros Guerra irregular moderna e O nascimento do Estado nacional soberano, ambos publicados no Brasil, respectivamente, pela Editora Biblioteca do Exército e pela Capax Dei Editora.)

Verdades inconvenientes da luta contra o narcotráfico

Em 5 de março último, o sítio noticioso argentino Infobae publicou uma reportagem sobre um dos episódios mais dramáticos da zona de sombras entre a luta contra o narcotráfico e a atuação clandestina das agências estadunidenses, o assassinato, no México, do agente da DEA Enrique “Kiki” Camarena, em 1985. Segundo a nota:

“35 anos após o assassinato do agente da DEA designado para o México, Enrique “Kiki” Camarena, o jornal estadunidense USA Today assegurou, em um artigo de Brad Heath, que as autoridades estadunidenses estão investigando novas evidências que indicam que o agente foi traído por um oficial da DEA e um agente da Agência Central de Inteligência (CIA), em conluio com traficantes de drogas. (…) As autoridades federais voltaram a investigar as testemunhas que apontaram que funcionários estadunidenses recorreram a alguns membros do Cartel de Guadalajara, para ajudar a armar e equipar ilegalmente os rebeldes que lutavam contra o governo sandinista na Nicarágua, caso que ficou conhecido como Irã-Contras.”

Segundo a reportagem, “o resultado foi uma mistura obscura de tráfico de drogas, corrupção e luta contra o crime em Guadalajara, Jalisco”.

Esse tipo de operações secretas promíscuas com cartéis de drogas tornou-se lugar comum, como atestam, mais recentemente, as operações Velozes e Furiosas, conjunto de ações realizadas entre 2006 e 2011 pela DEA, cuja participação foi admitida por seu então diretor Michele Leonhart, e pela ATF, que, sem o conhecimento do governo mexicano, permitia a entrada ilegal de armas para abastecer os cartéis mexicanos de drogas.

Por conseguinte, a nova Lei de Segurança Nacional mexicana pode restabelecer, não só a soberania do país sobre os agentes de segurança estrangeiros, mas também ajudar a combater acordos espúrios destes com os narcotraficantes, os quais proporcionam um meio oportuno de manter os enormes fluxos de lavagem de dinheiro das drogas em instituições financeiras de Wall Street, Londres e nos paraísos fiscais ao redor do mundo. Em troca, os cartéis de drogas têm acesso a armamentos pesados que lhes dão o poder de fogo para enfrentar as forças de segurança do Estado mexicano, engajadas em uma insana tarefa de enxugamento de gelo.

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