EUA: apaga-se o “farol na colina”

Resenha Estratégica – Vol. 17 | nº 44 | 04 de novembro de 2020  

Independentemente do resultado, ainda incerto no momento em que esta nota era escrita, as eleições presidenciais de 2020 assinalam, de forma inequívoca, o esgotamento da imagem dos EUA como a nação vanguardista e “excepcional” do mundo ocidental, o “farol na colina” que servia de referência para as demais que almejassem atingir um elevado patamar civilizatório.

Em um cenário que mais lembra uma proverbial república bananeira ou algum caricato Estado disfuncional da África Subsaariana, um processo eleitoral marcado por acusações mútuas de fraude, contestação antecipada do desfecho e episódios de violência, o vencedor do pleito governará uma sociedade profundamente dividida e sem um objetivo comum, com reduzida disposição para diálogo e propensa a novos surtos de violência.

Mas nada disso surpreende. De fato, trata-se do epílogo de um longo processo de decomposição interna do projeto hegemônico implementado pelo Establishment estadunidense no pós-guerra, cujo ponto de inflexão foi o abandono unilateral do “sistema de Bretton Woods”, em 1971, que retirou a “âncora” de relativa estabilidade do sistema financeiro internacional e abriu o caminho para a entrópica “globalização” financeira. O resultado foi a conversão de uma pujante economia industrial em uma economia “pós-industrial” de serviços, inclinada à especulação financeira, incapaz de sustentar a longo prazo os salários dignos que eram o orgulho da classe média estadunidense, e cujo principal produto tem sido o aprofundamento das desigualdades sociais, inclusive, em escala internacional.

Por uma ironia plena de graves riscos, a situação se desdobra em um momento no qual o mundo necessita com urgência de um novo sistema financeiro voltado para o fomento da economia real e do desenvolvimento, em um marco global cooperativo e não hegemônico, que os EUA não terão opções diferentes de aceitar ou rechaçar – de forma violenta e potencialmente devastadora para todo o mundo.

Churchill, Roosevelt e Stalin na Conferência de Teerã (1943), memória de um tempo em que os Estados Unidos eram parte da solução dos conflitos mundiais.

Em um oportuno artigo publicado em 5 de novembro no sítio Strategic Culture Foundation, Philip Giraldi, ex-analista da CIA e um dos mais argutos observadores do cenário atual de seu país, se mostra pessimista:

(…) A ironia é que a crise de confiança que está assediando os EUA reflete, em parte, um declínio bastante real e grandemente autoimposto, do lugar do país no mundo, devido à insistência em manter uma hegemonia global. Ele ocorre em um momento em que o império está entrando em uma fase de crescente irrelevância, que muitos dos atores-chave envolvidos são incapazes de reconhecer ou não se dispõem a fazê-lo, sem distinção da sua filiação política. Isto significa que os EUA estão encerrados em um padrão de comportamento que é incapaz de mudança. É uma nação que se tornou adicta à guerra por nenhuma boa razão, e esta adicção não lhe trouxe nem segurança nem prosperidade.

E conclui, de forma sombria:

Quem quer que seja o novo presidente, herdará a tenebrosa presunção de que ele é o “líder do mundo livre”. Já passou da hora de uma discussão séria sobre o lugar adequado dos EUA no mundo, mas isto irá requerer uma mudança completa no Establishment do país e um desafio à visão do “excepcionalismo”, de que os EUA devem dominar como uma “força para o bem”. Desafortunadamente, não há no horizonte nenhum político que seja capaz e tenha disposição para assumir a liderança de tal empreitada.

Como observou Lorenzo Carrasco, na edição de 30 de setembro desta Resenha: “Isso significa que os dias da hegemonia estadunidense estão contados, sem que isto signifique o surgimento de um novo poder hegemônico global, em termos econômicos ou militares. E é aí que reside a característica fundamental do embate eleitoral de novembro… de que forma os Estados Unidos enfrentarão essa realidade? De que forma essa, sem dúvida, grande nação se inserirá no contexto de uma nova ordem mundial cooperativa, na qual a igualdade do direito das nações ao pleno desenvolvimento econômico e social deve ser o imperativo da coexistência global?”

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