Entre o ‘vírus chinês’ e as lições da pandemia

    *Diego Pautasso e Isis Paris Maia

    A combinação de velocidade do ciclo das notícias, a precária formação científica e as abordagens etnocêntricas formam um campo fértil para todo tipo de teoria conspiratória e negacionismo, transitando entre o desconhecimento e seus objetivos políticos subliminares.  Nesse caso, reforça um conjunto de narrativas anti-chinesas convenientes a Washington e seus aliados para lidar com os desafios da potência ascendente, a China.  

    As narrativas envolvem acusações como a do ‘vírus chinês’ surgido na cidade de Wuhan, primeiro pela ingestão humana de morcegos e depois escapado, ou pior, fabricado no Laboratório Nacional de Biossegurança do Instituto de Virologia – desmentidos por estudos publicados nas conceituadas revistas científicas Nature Medicine e  The Lancet[1] e corroborado pelo relatório conjunto independente realizado pela OMS-China.  A insistência em estigmatizar a China sobre a origem do vírus apenas reforça o racismo anti-asiático no Ocidente, além de dificultar a necessária saída coletiva para a pandemia.

    Outro argumento seria que o governo chinês estava ocultando os dados sobre os números de mortes. Segundo os melhores dados que temos, da Our World in Data[2] ligada à Universidade de Oxford, a China teve cerca de 3 mortes por milhão de habitantes e 4.636 mortes totais – o Brasil superou a marca de 4 mil em um dia!  Ironicamente, dos 20 países com mais mortes por milhão de habitantes, 12 são europeus.  Os EUA estão na 18ª posição em mortes por milhão, com mais de 1.848, e um total de mais de 611 mil de cidadãos vitimados pela Covid-19.

    Mesmo os que aceitaram o desempenho do governo chinês no enfrentamento da pandemia, preferiram resumir a explicação ao arbítrio da ditadura que restringiu as liberdades individuais. É o caso do The Washington Post[3], que simplificou as políticas de combate à pandemia ao lock down e este ao autoritarismo.  Nem falta de transparência, nem de acesso à informação, o ocorrido foi que o sistema digital de vigilância e notificação de doenças do país, apesar da novidade da patologia, três dias após a detecção deu início a suas políticas de saúde.  Mesmo sendo uma doença desconhecida, o país coordenou ações de rígida quarentena na cidade de Wuhan (cidade com mais de 11 milhões de habitantes) para suprimir os focos da infecção por meio  de uma ampla mobilização de funcionários de saúde e da construção de novas unidades hospitalares em tempo recorde – reconhecida pela própria OMS pela eficiência. O resultado foi a contenção da disseminação crescente do vírus em pouco mais de um mês.  Em outras palavras, foi a liderança governamental, a coordenação política e os melhores protocolos de saúde que permitiram à China enfrentar a maior pandemia do último século, sem parâmetros do comportamento da doença, com êxito. 

    Enquanto se silenciava este enfrentamento,  reproduziam-se fake news incríveis, como a de que a vacina desenvolvida na China viria com chip, permitindo, através do 5G, criar doenças e controlar os indivíduos.  Ao invés disso, o país oriental liderou o fornecimento de vacinas (Coronavac) e insumos (IFAs) inclusive para outros imunizantes como a britânica de Oxford.  Além disso, a China liderou a produção de equipamentos de proteção individual (EPIs), vacinas e ajuda internacional.  Ou seja, o país forneceu mais de 300 bilhões de máscaras, 3,7 bilhões de equipamentos de proteção, 4,8 bilhões de kits de teste e outros suprimentos anti-epidêmicos para mais de 200 países e regiões, além de uma ajuda de 2 bilhões de dólares a países pobres.  Aliás, cabe lembrar que cerca de ¾ dos insumos farmacêuticos utilizados no Brasil vem da China.

    A questão de fundo é que a pandemia é a ponta de um iceberg mais complexo das mudanças em curso no mundo e aponta algumas lições.  Primeiro, a aceleração das mudanças sistêmicas originadas da 3ª Revolução Industrial, tais como a e-commerce, ensino à distância, home office, serviços de entretenimento de streaming, etc. Segundo, as fragilidades da agenda neoliberal, pois limitou a capacidade de lidar com a pandemia devido ao enfraquecimento da burocracia, da saúde pública e das empresas nacionais em produzir insumos em vários países ocidentais. Por fim, mas não menos importante, a superpotência, os EUA, a quem competiria liderar a cooperação internacional para a superação da pandemia, agiu em sentido contrário. O país sequestrou insumos, priorizou a culpabilização da China pela pandemia, fomentou alarmismo sobre os imunizantes seguros de China e Rússia, atacou a principal organização responsável por lidar com a crise sanitária (OMS) e teve, na melhor das hipóteses, uma gestão negligente para enfrentar a Covid-19.  Tudo isso, associado a um sistema de saúde privado oneroso, provocando um número de mortes incompatível com o nível de desenvolvimento do país – sem que isso causasse comoção na opinião pública.  Enfim, a narrativa do ‘vírus chinês’ não garante mais do que agitação ideológica e confusão política num mundo prenhe de contradições e carente de coordenação.  

    Diego Pautasso – Doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela UFRGS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria.

    Isis Paris Maia – Mestranda em Políticas Públicas pela UFRGS e historiadora.


    [1] Para o artigo da The Lancet, acessar https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)01419-7/fulltext.

    [2] Ver dados disponíveis em https://ourworldindata.org/covid-deaths.

    [3] ver artigo Original disponível em https://www.washingtonpost.com/world/2020/01/27/chinas-coronavirus-lockdown-brought-you-by-authoritarianism.

    Não há posts para exibir

    Deixe um comentário

    Escreva seu comentário!
    Digite seu nome aqui