No princípio era o indiferenciado. Entre os antigos gregos era o Kaos, o Indiscernível, a divindade primordial, quem precedia a ordem do todo, que conforma e consolida a harmonia cósmica. No Brasil, o silêncio precede o ser. Há setenta anos, como uma medusa das pernas, Ghiggia transformava o Brasil em pedra, em silêncio rochoso e frio.
No maior estádio do mundo, nosso Coliseu carioca e carnavalesco, duzentas mil estátuas silenciavam-se diante do inacreditável. O maior silêncio de todos os tempos, plasmado como chaga perene na alma brasileira, dizimava a esperança e o vigor de toda uma Nação.
O craque uruguaio disseminava um tipo estranho de varíola sobre a tribo nacional. De acordo com uma antiga lenda, um menino chamado Edson, aos nove anos, pelo rádio, ouvia a tragédia do Maracanaço.
Não é, contudo, sobre o Maracanaço que eu gostaria de escrever. Não! Eu quero falar do mar onde todos os rios desaguam. Eu quero falar do gênio brasileiro, do Bonifácio da biomecânica humana, do Pedro Américo dos gestos de lirismos, do Castro Alves da capacidade do corpo – Pelé. Sócrates, o agravo filósofo ateniense, foi digno de um Platão. É uma pena que entre nós não haja um Camões, um Homero, para escrever a epopeia que foi Pelé. Grandes homens demandam grandes escritores. Se tivesse de fazer uma revisão atualizada do Dicionário de Língua Brasileira, Luiz Maria da Silva Pinto, talharia cada palavra do nosso léxico em exaltação ao Rei. Se estivesse vivo, Affonso Celso escolheria um único motivo para nos ufanarmos de nosso país – Edson Arantes do Nascimento. Sérgio Buarque, se fosse bom anatomista, teria considerado que o verdadeiro brasileiro é cordial, entretanto, com triplo coração – TRICORDIANO, TRICORDIAL!
Depois de Pelé, a passionalidade do brasileiro emana de três corações! Há exatos 80 anos, os brasileiros não sabiam, mas estavam vivendo os últimos minutos do segundo tempo da pré-história do país. O brasileiro sairia da indigência decrépita e anêmica do vira-lata, colocaria para escanteio a pálida tristeza dos retirantes de Portinari e, com a borracha da amnésia absoluta, apagaria o triste retrato brasileiro, arquitetado pela pena de Paulo Prado. A paçoca com osteoporose, a tradução fiel da autoestima verde-amarela, seria curada.
Como um Hipócrates da bola, um Juliano Moreira da artilharia, Pelé curaria a alma moribunda do povo brasileiro. Que fique claro: Pelé é o Fídias e o Niemayer, o escultor e o arquiteto do estandarte metafísico de nosso ser! E tudo começou, amigos, no ano de 1958! Vossa Majestade, vocês sabem, existia apenas desde os últimos 17 anos. Para a eternidade, pouco mais de uma década e meia não passa de um piscar de olhos; para um homem eterno, augusto e majestoso, a adolescência é o prelúdio de sinfonia sua existencial. E foi na Suécia, caro leitor, que o jovem Pelé resgatou o convalescido espírito de nacionalidade. Como um Nepomuceno, o peito do jovem camisa 10 tratou a bola com melodia e, com um arco dissonante, um sonoro chapéu humilhante, a sinfonia labiríntica do drible se consumava. Faltava o arremate. A finalização foi estrondosa, reluzente e perfumada de pólvora – era um canhão triunfal explodindo de bravura na batalha do Avaí.
Sentindo o CO2 que emanava do tiro mortal, da arquibancada, uma jovem sueca, exclamava: Criolo, você está roubando o nosso futuro! Com madeixas loiras e trançadas, a jovem moira da Suécia conhecia o destino: os suecos jamais teriam um Pelé! Entre o ativismo mal-educado da jovem e a precocidade do gênio brasileiro havia um abismo ontológico! Cada povo com a sua majestade! A nossa é o Pelé! Da Vila Belmiro ao Villa-Lobos, Pelé fazia do Brasil um país rico, vigoroso, forte, diverso, vívido, bronzeado, mulato, cafuzo, amazônico, carioca, alagoano e, acima de tudo, com um enorme e resplandecente futuro! Repito: cada povo merece a sua Majestade! Era apenas o prelúdio da obra do craque, do gênio, do faraônico homem que palpitava com Três Corações. Um lindo gol, o gol do 3 a 1, o gol que pavimentava o caminho para a glória da Seleção e, ao mesmo tempo, inventava o sentido do ser da nação brasileira – no final: 5 a 2 para o Brasil! Éramos, pela primeira vez, os melhores do mundo.
Não posso escrever sobre todos os (mais) de mil gols do Craque! Eu teria de ser um Santo Tomas de Aquino e, certamente, os gols de Pelé conformariam uma Suma Teológica da artilharia. Como torcedor, contudo, nesta singela e esquálida homenagem, não posso deixar de registrar um outro gol. Reza a lenda que, num belo dia, no estádio do Maracanã, o nosso Rei inventou o gol de placa! Não temos um único, escasso e mísero tape do gol! De tão brilhante, pelo rastro de luz e reflexo deixado pela arrancada, o gol exigiu das testemunhas uma placa – uma espécie de ‘’epístola de Pero Vaz de Caminha’’ do golaço. Era o documento que atestava a veracidade do impossível.
O gol de placa foi feito contra o meu Fluminense. Da geral, uma das testemunhas, um velho índio, entoava: Este homem é como eu, ele é meu irmão, é o arquétipo fundador do brasileiro. Pasmem: Era o Último Tamoio. Os imortais cronistas diziam que os torcedores mortos saiam de suas tumbas para assistir as partidas do Fluminense. É verossímil. O Último Tamoio ressuscitou, saltou da tela e, banhado em tinta, no meio do povo, viu e explodiu com a multidão, que assistia a obra inefável do Rei Eterno. Pelé tinha apenas 20 anos! Depois de inventar o Brasil, Pelé encontrou tempo para inventar o gol de placa!
Como um Raposo Tavares, o jovem de 20 anos expandia o território do gramado. Tal como um Bandeirante, Pelé inventava um novo espaço, desafiava a imaginação cartográfica da razão, entortava o tratado de Tordesilhas da limitação humana. Num ato de conquista, o trovão Negro paralisava a multidão: o Gênio vencia com bravura todos os seus espartanos marcadores!
Depois de vencer a tudo, depois de fintar a todos, só restava a conclusão – era o ato final para o gol de placa, o ‘’big bang’’, explosão criadora do golaço! Castilho não poderia evitar o milagre maravilhoso! Um Pedro Álvares do Nascimento Pelé atravessava um atlântico de obstáculos e inventava um novo mundo! O Craque inventou o Brasil e o Gol de Placa!
E foi assim, amigo leitor, que a NOSSA MAJESTADE inventou a alma nacional. Foi assim, da renda infinita dos gols de Pelé, que negros, índios, brancos, tamoios, camisas 10, suburbanos, loucos, poetas, geraldinos, suassunas, gênios do barroco mineiro, patrocínios, bonifácios, arquibaldos, seringueiros, gamas, tenentistas, silvas, pixinguinhas, positivistas, abolicionistas, gênios da ciência, pintores, revolucionários, darcys, machados e carnavalescos se conjugaram em uma mesma epifania da identidade – a identidade brasileira.
O gol de placa estrondosamente reverberante, de exasperados de decibéis ressoantes, na miríade em euforia, paralisa nas cadeiras numeradas intelectuais de Harvard e antropólogos de ONG’s que, atônitos, permanecem emudecidos. A arrogância colonizante dos estrangeiros só pode ser derrotada pela alegria vibrante e carnavalesca do Povo Brasileiro. Eis a diferença entre um Brasileiro e um brasilianista! Pelé é o Brasileiro Primordial, o Índio da estética romântica, o ídolo de todas as arquibancadas – Pelé é o inventor do Brasil!
Como um Mathias Aires suburbano, dedico este humilde e roto texto à Vossa Majestade, Pelé!
Feliz Aniversário, Pelé! Parabéns pelos 80 anos! Que Deus lhe dê muita saúde e força! O povo brasileiro te ama! Obrigado por tudo!
Lindo texto para nós brasileiros nos orgulharmos do nosso País! parabéns
Fantástico! Pelé e sua singela homenagem!
Parabéns e vida longa ao Rei!
Belo texto e uma justa homenagem para o maior jogador de futebol de todos os tempos. Craque que eu tive o prazer de ver jogar várias vezes.
Parabéns ao Pelé e ao Teixeira Mendes.
O artigo, em si, é uma obra-prima à altura da majestade do nosso grande artista da bola e da brasilidade. Parabéns ao Teixeira Mendes pelo primoroso texto.