A economia americana teve um desempenho extraordinariamente bem-sucedido em 2023, mas isso não se reflete no humor dos eleitores americanos. Isso pode ser fatal para a pretensão de Joe Biden se reeleger para um novo mandato na eleição presidencial que ocorrerá em novembro próximo. O que pode explicar essa dissonância entre os fatos e como as pessoas percebem a realidade? Vamos primeiro aos fatos.
Conforme se verifica nos gráficos acima, publicados pela revista The Economist (16/2), por todos os principais parâmetros que medem o desempenho da economia é evidente que o desempenho da economia americana, em 2023, foi extraordinariamente positivo. Vejamos: A inflação que em 2022 havia subido 9% em relação ao ano anterior foi elevada em apenas 3% em 2023. Além disso, como afirmou Paul Krugman em artigo para o New York Times (13/2), “a inflação despencou – ao longo dos últimos seis meses, a medida preferida da Reserva Federal para a inflação subjacente tem estado ligeiramente abaixo da taxa alvo de 2%”. O preço da gasolina, que havia ultrapassado os US$ 5/galão também caiu no último ano para um pouco mais de US$ 3/galão, embora ainda permaneça mais elevado do que em 2020, quando estava na casa de US$ 2/galão. A taxa de desemprego, depois de chegar a quase 15%, em 2021, caiu para a casa dos 3%, o menor nível nos últimos 23 anos e não distante no nível mais baixo dos últimos 50 anos. A renda média semanal, em preços constantes de 2023, está próxima de US$ 1.200. Embora ligeiramente abaixo do nível pré-pandemia, está em seu maior nível desde 2007. O índice S&P 500, composto por quinhentos ativos cotados nas bolsas de NYSE ou NASDAQ, está em 5.106 (1941-43 = 10), também o maior valor desde o início dos anos 2000. E, não menos importante, o PIB dos Estados Unidos cresceu em 2023, 3,1%. Em resumo, o quadro econômico dos Estados Unidos está muito bom.
O excelente desempenho econômico não se reflete, contudo, no humor do cidadão comum. Segundo o respeitado Índice de Sentimento do Consumidor da Universidade de Michigan, um indicador da confiança do consumidor publicado mensalmente pela Universidade de Michigan, cujo valor é normalizado para ter um número de 100 no primeiro trimestre de 1966, o índice atual está 80, bem acima dos cerca de 55 de 2008 e 2011, no auge da crise financeira de 2008, e dos 50, em meados de 2022, mas abaixo da maior parte dos anos desde 2000 e ainda bem próximo do valor observado no auge da crise da Covid-19, em 2021.
É preciso observar que o índice atual, na casa dos 80, vem apresentando sensível melhora desde 2022. Como afirma Paul Krugman no já mencionado artigo do NYT, “Todos os principais levantamentos sobre o sentimento do consumidor dizem que os americanos estão, de fato, conscientes de que a economia está melhorando. A venerável pesquisa de Michigan diz que o sentimento do consumidor disparou nos últimos meses. Outra pesquisa de longa data, do Conference Board, diz que a avaliação dos consumidores sobre a “situação atual” voltou aproximadamente ao ponto em que estava no início de 2018. E um novo participante, Civiqs, também mostra uma melhoria substancial desde 2022, que se acelerou nos últimos meses”.
A recente melhora do índice, entretanto, não esconde o fato de que a percepção do cidadão comum em relação à economia continua fundamentalmente pessimista, o que pode ser um grande problema para Biden, se levarmos em conta que a economia sempre teve um grande peso nas decisões dos eleitores. Quem não se lembra da famosa frase “É a economia, idiota”, tradução livre da máxima norte-americana “The economy, stupid”, dita por James Carville, então estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra o então presidente George H. W. Bush?. Mas o que poderia explicar essa avalição pessimista da economia por parte dos eleitores quando os números dizem o contrário?
Uma possível explicação para esse fato é dada por Paul Krugman no já mencionado artigo quando chama atenção para a disparidade de avaliação entre eleitores democratas e republicanos, dando a entender que a extrema polarização política que hoje existe nos Estados Unidos, como no resto do mundo, atualmente pesa muito mais do que a análise objetiva dos fatos por parte dos eleitores. Segundo Krugman, “de acordo com dados do Michigan, os republicanos classificam a economia atual como sendo pior do que a economia de junho de 2009, quando o desemprego era de 9,5%, ou de junho de 1980, quando a inflação era superior a 14%. As percepções dos democratas comportam-se de forma muito diferente. Não se trata apenas de verem a economia de Biden de forma muito mais favorável do que os republicanos; a sua avaliação responde às condições de uma forma que a dos republicanos não o faz.”.
Ou seja, as preferências políticas e ideológicas são o fator dominante para a formação da opinião das pessoas, não importa o que os fatos digam. Trata-se, na verdade, de um fenômeno global, pelo menos no Ocidente, em que os adversários políticos foram rebaixados para a categoria de inimigos e já não se trata apenas de derrotá-los no campo das ideias, mas de destruí-los, fisicamente, se possível.
Há, ainda, uma outra leitura possível, não necessariamente contrária à leitura anterior, e que diz respeito mais à desilusão das pessoas com a marcha do capitalismo globalizado. Quando se observa o que se passa hoje no chamado Ocidente – leia-se Estados Unidos, Europa e Japão – é forçoso reconhecer que o sentimento que prevalece entre a maior parte das pessoas é de pessimismo e descrença em relação ao futuro.
Isso certamente tem a ver com os efeitos da hiper globalização sobre o funcionamento da economia capitalista. Se, principalmente no período que medeia o fim da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, quando o governo Nixon acabou com o sistema de paridade fixa das taxas de câmbio estabelecido no acordo de Bretton Woods e, posteriormente, o governo Reagan deu asas ao neoliberalismo, desregulando o sistema financeiro, havia, nos Estados Unidos e na Europa, um sentimento de otimismo quanto ao futuro, que se expressava no sistema de regulação fordista americano e no estado de bem-estar social europeu, nos quais uma parte expressiva dos lucros se traduzia em melhores condições de vida para os trabalhadores, com o avanço da globalização tudo isso mudou.
O sentimento que se tornou dominante entre os trabalhadores do Ocidente foi de pessimismo, ressentimento em relação aos muito ricos e descrença em relação ao futuro. Com o avanço da globalização, as redes de proteção proporcionadas pelos sistemas fordista de regulação e de bem-estar social foram rompidas, o nível de concentração do capital e da renda alcançou patamares inéditos e a desigualdade social se aprofundou, fazendo com que, mesmo nos países muito ricos a miséria e a pobreza passassem a conviver com a opulência e a extravagância dos milionários, a ponto de, por exemplo, nos Estados Unidos, quase 50% da população não ter garantia de renda que lhes permita atender, com segurança, suas necessidades básicas como alimentação e moradia.
Daí para líderes populistas da direita galvanizarem, em todo o mundo, esse sentimento de pessimismo prevalecente na população, e jogar a culpa dos problemas e da perda de status, sobretudo da classe média, nos trabalhadores migrantes e na China, que quis o destino, estivesse experimentando um movimento no sentido oposto no mesmo período, desviando, assim, o foco das reais causas dos problemas, foi apenas um passo.
Isso explica, em grande parte, porque tais lideranças populistas de direita não tiveram dificuldades de obter apoio financeiro e espaço na mídia para divulgar suas teses xenofóbicas e conservadoras. Obviamente também contribui para isso certa cegueira situacional da esquerda que se deixou enredar em pautas que afrontavam esses mesmos sentimentos conservadores prevalecentes na chamada baixa classe média, na qual valores ligados à família e à religião passaram a ter cada vez mais importância diante desse sentimento geral de abandono por parte do Estado frente ao avanço da globalização.