De acordo com projeções recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI), os Estados Unidos continuam a ser a maior economia do Planeta, respondendo por 26,3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, a maior proporção em quase 20 anos. De acordo com as mesmas projeções a participação da Europa caiu 1,4% desde 2018 e a do Japão, 2,1%. A dos EUA por sua vez cresceu 2,3 pontos percentuais. A participação da China também aumentou no mesmo período, mas reduziu seu tamanho relativo em relação aos Estados Unidos de 67% para 64%.
O período em análise coincide com o da pandemia de Covid-19, da guerra comercial contra a China, iniciada por Trump, em 2018 e continuada por Biden, e da retomada da política industrial nos Estados Unidos, com subsídios bilionários para a indústria de semicondutores, para a chamada economia verde e renovação da infraestrutura do país e, por último, mas não menos importante, a guerra na Ucrânia. Coincide também com um aumento sem precedentes do déficit público dos Estados Unidos. Segundo o Wall Street Journal (16/2), “A dívida federal detida pelo público deverá aumentar de um recorde de 26 bilhões de dólares em 2023 para 48 bilhões de dólares em 2034”.
Tudo leva a crer que tais fatores estejam de alguma forma relacionados com a manutenção da primazia global dos Estados Unidos. Vejamos.
Durante os três anos da pandemia, os Estados Unidos injetaram vários trilhões de dólares na sua economia. Em 2020, no augue da pandemia, o Congresso aprovou gastos de mais de US$ 3 trilhões em medidas que incluíram cheques enviados à população e bilhões de dólares para ajudar pequenas empresas e negócios. Quando Biden assumiu a presidência em 2021, anunciou o Plano Build Back Better com o objetivo de fazer os maiores investimentos públicos nacionais em programas sociais, infraestruturais e ambientais desde a década de 1930 no valor de US$ 3,5 trilhões de dólares, posteriormente reduzido pelo Congresso dos Estados Unidos para US$ 2,2 trilhões.
Posteriormente, em 2022, o governo Biden conseguiu aprovar a Lei de Redução da Inflação (IRA) que autoriza US$ 891 bilhões em gastos totais – incluindo US$ 783 bilhões em energia e mudanças climáticas e três anos de subsídios da Lei de Cuidados Acessíveis. Desse total, só o pacote de subsídios verdes abocanhou US$ 369 bilhões, conforme informa a revista The Economist (24/4).
Ainda em 2022, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei dos Chips e Ciência (CHIPS and Science ACT), que autorizou cerca de US$ 280 bilhões em novos financiamentos para impulsionar a pesquisa doméstica e a fabricação de semicondutores no Estados Unidos, para os quais destina US$ 52,7 bilhões. A lei inclui 39 bilhões de dólares em subsídios para o fabrico de chips em solo americano, juntamente com 25% de créditos fiscais de investimento para custos de fabrico de equipamento, e 13 bilhões de dólares para pesquisa de semicondutores e formação de mão de obra, com o duplo objetivo de fortalecer a resiliência da cadeia de abastecimento americana e combater a China. Também investe US$ 174 bilhões no ecossistema geral de pesquisa do setor público em ciência e tecnologia, avanço de voos espaciais tripulados, computação quântica, ciência de materiais, biotecnologia, física experimental, segurança de pesquisa, considerações sociais e éticas, força de trabalho esforços de desenvolvimento e diversidade, equidade e inclusão na NASA, NSF, DOE, EDA e NIST.
De acordo com o Financial Times (25/4), “Com recentes doações multibilionárias à Intel, TSMC, Samsung e Micron, o governo dos EUA já gastou mais da metade dos seus 38 bilhões de dólares em incentivos da Lei dos Chips. Ao fazê-lo, gerou um boom de investimento inesperado. As empresas de chips e parceiros da cadeia de fornecimento anunciaram investimentos, totalizando US$ 327 bilhões nos próximos 10 anos, de acordo com cálculos da Associação da Indústria de Semicondutores. As estatísticas dos EUA mostram um impressionante aumento de 15 vezes na construção de instalações de produção de dispositivos informáticos e eletrônicos.”
Segundo informou em 14 de abril o South China Morning Post, de Hong Kong, a mais recente conquista dos EUA foi ter convencido o maior fabricante mundial de semicondutores, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Co (TSMC), a iniciar a produção de seus chips mais avançados nos Estados Unidos. O novo compromisso da TSMC significa que pretende começar a produzir os seus mais recentes chips de 2 nanômetros, e outros mais avançados no futuro, numa nova fábrica a ser instalada em Phoenix, Arizona. Para isso recebeu uma doação de US$ 6,6 bilhões do governo americano sob o guarda-chuva da Lei dos Chips. A nova fábrica vai significativamente além da fábrica atual, também localizada no Arizona, que produzirá chips menos avançados, mas mais comerciais. Alguns dias depois, foi a vez da sul-coreana Samsung receber US$ 6,4 bilhões para construir fábricas no Texas, conforme informou a revista Economist (35/4).
Segundo o site GSI, “Taiwan produz 92% dos chips mais sofisticados do mundo com 3-5 nanômetros e 80% com 7 nanômetros e menos. Atualmente, os EUA têm uma quota global de 10% na produção de semicondutores, mas dominam a cadeia de valor em 39% (aumentando para 53% juntamente com o Japão, a Europa, a Coreia do Sul e Taiwan). Enquanto os EUA lideram o processo de projeto de circuitos integrados upstream, os Países Baixos e o Japão têm posições fortes na fabricação de circuitos integrados intermediários, bem como em embalagens e testes”. É esse balanço que os Estados Unidos estão tentando mudar a seu favor, mesmo que produzir esses chips mais avançados em território americano venha a custar o dobro do que custa em Taiwan, devido ao custo da mão de obra e outros fatores de custo.
Para países em desenvolvimento só essa diferença de custo de produção já justificaria a “recomendação” de que seria mais sensato produzir commodities e importar os chips, feitos de forma mais eficiente alhures. É a famosa lei das vantagens comparativas, de validade universal, menos para os Estados Unidos…
Outro fator que certamente deve ter contribuído para a expansão da economia americana no período foi o cancelamento das dívidas estudantis, que levava muitos jovens casais americanos a postergarem seus planos de casamento pela impossibilidade de iniciar uma nova vida e adquirir ou alugar um imóvel. Segundo informou o jornal Valor (25/4), “Até fevereiro, Biden cancelou US$ 138 bilhões em dívidas estudantis — e acabou de divulgar planos para cancelar alguns bilhões a mais — o que aumenta diretamente o poder de compra dos devedores.”
A guerra na Ucrânia, por seu turno, deu um enorme impulso à indústria armamentista norte-americana. Desde o início do conflito os Estados Unidos já destinaram cerca de US$ 75 bilhões de ajuda para a Ucrânia. Ocorre que grande parte desse dinheiro não sai dos Estados Unidos pois se trata de compra de armas e munições das próprias empresas americanas para serem enviadas diretamente para a Ucrânia ou para repor estoques de armas e munições enviados pelos Estados Unidos e seus aliados para os ucranianos. Boa parte desses armamentos enviados pela Otan à Ucrânia, diga-se de passagem, são antigos e estão sendo repostos com novas armas com tecnologias no estado da arte. Do novo pacote de ajuda à Ucrânia, Israel e Taiwan, de US$ 95 bilhões aprovado neste mês de abril pelo Congresso dos Estados Unidos, US$ 57 bilhões retornarão a produtores dos EUA na forma de mais compras de armas informa o jornal Valor Econômico em 25/4.
Uma decorrência indireta da guerra foi a melhoria das relações de troca para as exportações americanas, ou seja, os produtos de exportação ficaram mais caros que os de importação, nomeadamente o gás natural que passou a abastecer a Europa devido ao corte no suprimento do gás russo. Se o preço mais alto de energia levou a Alemanha à recessão, com os Estados Unidos ocorreu o oposto.
Finalmente, por que o déficit público dos Estados Unidos está contribuindo para a expansão da economia norte-americana? Pela simples razão de que grande parte dos gastos acima enumerados não estão sendo financiados com impostos, mas pela emissão de dívida pública pelo Tesouro dos Estados Unidos. Donald Trump, na verdade, cortou impostos dos mais ricos e se reeleito certamente o fará de novo, emitindo dívida para cobrir o aumento de gastos. De acordo com o Wall Street Journal (16/2), “A pandemia levou as taxas a zero e provocou um aumento nos empréstimos que se somou a anos de crescente dívida federal. O Departamento do Tesouro intensificou a emissão de títulos para um recorde de US$ 23 trilhões no ano passado.”
Mas o aumento do déficit público não provoca inflação, como afirmam os defensores da austeridade fiscal? Não foi o que aconteceu nos Estados Unidos. A taxa anual de inflação subiu de 3,2% em 2011 para 8,3% em 2022, muito em função do estrangulamento e ruptura das cadeias globais de fornecimento provocado pela pandemia, mas, tão logo o fornecimento foi se normalizando, começou a cair. No último mês de março já estava em 3,12% com um repique para 3,48% em abril. De acordo com o Financial Times (26/2), “A inflação nos EUA subiu para 2,7% no ano até março, outro sinal de que as pressões sobre os preços permanecem teimosamente elevadas, complicando o plano da Reserva Federal de cortar as taxas de juro este ano. Os dados de sexta-feira sobre despesas de consumo pessoal, o indicador preferido do Fed para medir a inflação, superaram as expectativas dos economistas de um ligeiro aumento para 2,6%, ante 2,5% em fevereiro”.
Não há nada que indique, seja Biden ou Trump o próximo presidente dos Estados Unidos, que algo remotamente parecido com austeridade fiscal passe pela cabeça das autoridades americanas. O importante para eles é manter os Estados Unidos como a maior economia do mundo.