A volta do Presidente Lula ao poder foi um grande alívio para o mundo. A ascensão de um novo líder em um país da importância do Brasil agradar simultaneamente dois países em posições opostas no espectro geopolítico global, como é o caso de Estados Unidos e China, para não falar de União Europeia e Rússia, é algo muito raro de acontecer. No entanto, no caso do Presidente Lula, foi o que ocorreu.
Para a administração democrata chefiada pelo presidente Joe Biden, a eleição de Lula para um terceiro mandato foi vista com um sentimento de alívio e esperança. Primeiro porque tirou do poder, no Brasil, um aliado subserviente do ex-presidente Donald Trump que, apesar de derrotado nas urnas, permanece como uma força política ameaçadora nos Estados Unidos. Segundo porque a agenda do presidente Lula vai ao encontro de uma das mais importantes bandeiras de campanha do Presidente Biden, que é a questão ambiental. O mesmo vale para a União Europeia, assombrada pela ascensão de forças de extrema-direita, de quem Bolsonaro é aliado, que ameaçam varrer do mapa a social-democracia europeia que vem dominando o continente europeu desde o final da Segunda Guerra Mundial. No caso da União Europeia, a ascensão de Lula também foi importante pelo alinhamento com o bloco europeu em relação às questões ambientais.
Já para a China, a eleição do Presidente Lula representou o fim de uma dor de cabeça, haja vista as atitudes hostis do governo Bolsonaro em relação ao governo chinês, o que motivou, mais de uma vez, reclamações formais e informais referentes a manifestações grosseiras e desrespeitosas em relação à China do ex-presidente brasileiro e de vários de seus ministros à época. A eleição de um novo presidente que, diferentemente do anterior, é um entusiasta do BRICS, associação de grandes países em desenvolvimento liderada pela China, recentemente ampliado com vários países da África e do Oriente Médio, obviamente agradou o governo chinês. O mesmo se diga em relação à Rússia, que tem no BRICS e no chamado Sul Global seus principais aliados na luta para evitar o isolamento político e econômico que os Estados Unidos tentam impor-lhe depois do início da guerra na Ucrânia.
Foi na América Latina, porém, onde a eleição do Presidente Lula gerou menos entusiasmo, seja pela forte polarização entre forças políticas na região, seja porque na própria esquerda já não se vê a unidade que existiu nos dois primeiros mandatos de Lula, quando ocorreu, na região, a chamada “onda rosa”, haja vista, por exemplo, as posições frequentemente divergentes entre os governos de Gabriel Boric, no Chile, de Gustavo Petro, na Colômbia, de Nicolás Maduro, na Venezuela, de Daniel Ortega, na Nicaragua e do próprio Lula, no Brasil.
É exatamente por aí que começam os desafios da política externa neste terceiro governo Lula. Como reconquistar a influência e a reputação global do Brasil, destruída no governo Bolsonaro, se o Brasil tem dificuldade de exercer a liderança em seu próprio continente onde, historicamente, sempre teve um papel importante como mediador de conflitos?
A ida do presidente Lula às reuniões da Caricom (Comunidade do Caribe) e da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) nos dias 28 e 29 de fevereiro é um sinal claro de que o governo brasileiro está ciente desse desafio, pois além de debater questões de interesse comum aos demais países da região, como integração econômica, coordenação de política externa, desenvolvimento humano e social, mudança climática, segurança alimentar e relação comercial, também se reuniu com o presidente Nicolás Maduro, da Venezuela.
Mas os desafios da política externa brasileira não param por aí. O mundo de 2024 é muito diferente daquele de 2003 a 2010, tanto ao nível interno quanto internacional. Ao nível internacional, o Brasil dos dois primeiros governos Lula (2003-2010) conseguiu se equilibrar entre o Norte e o Sul Global, promovendo, nas palavras do ex-chanceler Celso Amorim, uma política externa ativa e altiva, voltada prioritariamente para os países em desenvolvimento, nomeadamente na América Latina, África e Oriente Médio e, ao mesmo, aprofundar os laços de confiança com a China e com os Estados Unidos de George W. Bush, com quem Lula estabeleceu, inclusive, uma relação pessoal de amizade. Naquele período, embora já houvesse uma disputa latente entre Estados Unidos e China, as relações entre os dois países, nos planos diplomático, comercial e geopolítico poderia ser considerada ainda de cooperação se comparada ao que ocorre hoje.
Após a eleição de Trump, em 2016, e, principalmente de Biden, em 2020, à presidência dos Estados Unidos, o quadro mudou radicalmente. De simples concorrente ou competidor, os Estados Unidos passaram a ver a China como a principal ameaça para seus interesses no mundo e como um bode expiatório conveniente para justificar seus problemas econômicos internos, em que uma parte não desprezível da classe média não tem dinheiro para ir ao supermercado. Depois da guerra comercial contra a China, iniciada por Trump e mantida no governo seguinte, Biden passou a liderar um movimento de retomada da influência americana no mundo, negligenciada por Trump, tendo como eixo a criação de uma grande coalisão global contra a China.
Nesse novo quadro, o espaço para a manutenção de uma política de equilíbrio entre as duas potências praticamente desapareceu e o Brasil tem sido chamado a tomar uma posição mais clara em relação a de que lado realmente está. Trata-se de uma situação complexa para o Brasil, pois, se de um lado, os Estados Unidos são o principal investidor externo no país e um parceiro comercial importante, sobretudo para a exportação brasileira de produtos manufaturados, a China não só é a principal parceira comercial do Brasil, para onde o país destina cerca de 30% de todas as suas exportações e algo próximo de 80% de suas exportações agrícolas, como também tem sido uma fonte importante de investimento direto estrangeiro no país. Entre 2005 e 2022, as empresas chinesas investiram no Brasil mais de US$ 70 bilhões, em cerca de 250 projetos, conforme levantamento do Conselho Empresarial Brasil-China.
No plano geopolítico, os interesses internacionais do Brasil estão mais alinhados com os da China e o bloco do BRICS, do que com os dos Estados Unidos e dos países do G7. Temas como reforma das instituições multilaterais globais, combate à fome, desenvolvimento, meio ambiente, dentre outros, aproximam-nos muito mais da China e do chamado Sul Global do que dos Estados Unidos e demais países ricos. Se isso, de um lado, leva-nos a aprofundar cada vez mais nossos laços de cooperação com a China e os países do BRICS, por outro lado, cria espaço para que os críticos apontem o Brasil como uma força auxiliar da China na disputa com os Estados Unidos, jogando dúvidas sobre a capacidade do Brasil de manter uma política externa “ativa e altiva”, equidistante das duas principais potências globais, como proposto por Amorim nos dois primeiros governos Lula.
Trata-se, evidentemente, de um desafio importante que o Brasil só pode superar se se aferrar mais do que nunca aos princípios que demarcaram sua política externa desde os tempos do Barão do Rio Branco, quais sejam, Soberania, Autonomia, Desenvolvimento Nacional e Não-intervenção. Qualquer coisa menos que isso poderá nos empurrar para direções que não atendam ao interesse nacional.
No plano regional, mais do que nunca, o Brasil precisa orientar sua política externa para posições mais pragmáticas, deixando que os problemas internos dos nossos vizinhos sejam resolvidos por eles próprios, mesmo porque, qualquer tentativa de se posicionar a favor ou contra as forças políticas em disputa na região, além de ineficazes, como mostrou a eleição recente da Argentina, deixa-nos com problemas difíceis de resolver quando nossas apostas não se confirmam. Além do mais, para que possamos cumprir o papel mediador, para o qual, historicamente, a política externa brasileira está vocacionada, não podemos parecer como parte do problema, mas como parte da solução, o que exige que nos mantenhamos fiéis aos principais historicamente norteadores de nossa política externa, nomeadamente no que diz respeito à não-intervenção em questões internas de nossos vizinhos.
Nesse aspecto, o exemplo da China em sua política externa para a região serve de alerta, pois desde a época da ditadura do General Pinochet, no Chile, e do próprio regime militar no Brasil, os chineses procuram estabelecer relações de cooperação com todos os países da região em todas as áreas independentemente da orientação política e ideológica dos governos.
No nível interno, há um problema que compromete gravemente nossa imagem internacional e, portanto, nossa capacidade de retomar o protagonismo almejado pelo Presidente Lula. Trata-se da questão da segurança. O domínio crescente do crime organizado em inúmeras cidades e regiões do país, além dos principais portos e aeroportos, afeta nossa imagem internacional e nossos interesses de diferentes maneiras.
O Brasil tem sido cada vez mais considerado, inclusive por parceiros externos muito próximos, como um país de alto risco e emitem frequentes alertas para seus cidadãos que queiram viajar para o País. Como observou Matias Spector, em artigo recente na Foreign Affairs (28/02/2024), “Com uma média de 110 assassinatos por dia, a taxa de homicídios no Brasil é uma das mais altas do mundo. O país abriga 17 das 50 cidades mais mortíferas do mundo”. Isso não só é um enorme desincentivo para receber investimentos externos, pois além de desestimular executivos e técnicos estrangeiros a se mudar para o país, também aumenta os custos operacionais das empresas com medidas de segurança, levando-as a investir em locais considerados mais seguros.
Mas o maior problema talvez nem seja este. Na questão ambiental, por exemplo, que tem sido um calcanhar de Aquiles para o Brasil em suas relações com Estados Unidos e União Europeia, a presença do crime organizado na região da Amazônia tem piorado a imagem do País. Isso para não falar do problema do narcotráfico amplamente dominado por essas facções criminosas que não só agravam o problema interno de segurança, como também afeta as relações internacionais do País, pois essas organizações criminosas estendem sua influência nefasta não apenas para os países vizinhos, como também para o resto do mundo.
Matéria do jornal O Estado de S. Paulo, de 29/02/2024, assinada por Ítalo Lo Re, informa que “hoje, o PCC lucra cerca de US$ 1 bilhão (quase R$ 5 bilhões) anual, em especial com a venda de cocaína para Ásia, África e Europa. “É um negócio ilícito com lucratividade muito alta e risco muito baixo. Quando se perde, se perde a droga, e dificilmente se prende alguém”, afirmou Gakiya [promotor público de São Paulo, responsável pelo combate ao crime organizado]”. Ainda segundo a matéria, “Apuração da Operação Sharks, do Ministério Público paulista, indicou que o PCC destinou, só em 2020, cerca de R$ 1,2 bilhão para fornecedores do Paraguai. O montante foi enviado por meio de doleiros, pagos para fazer esse tipo transação, e teve como objetivo custear as compras para abastecer o tráfico interno de cocaína do PCC. Hoje, o Brasil é o segundo maior mercado consumidor”.
Destaca ainda a matéria que “O tráfico internacional de drogas tem sido o principal foco da organização ao longo da última de suas três décadas de existência. Investigações indicam que o PCC paga de US$ 1,2 mil a US$ 1,4 mil (entre R$ 6 mil e R$ 7 mil) pelo quilo de cocaína para países vizinhos, como Colômbia e Bolívia. Na Europa, revende, em média, por € 35 mil, em envios que ocorrem principalmente por meio dos portos brasileiros, como o de Santos (…) Mas o lucro pode ser ainda maior, a depender do destinatário final. “Na França, chegou a € 80 mil o quilo de cocaína no início do ano. Se for para a Ásia, por exemplo, pode chegar a US$ 100 mil dólares, ou até US$ 150 mil dólares no Japão”, disse Gakiya. A alta lucratividade, afirma ele, tem colocado o Primeiro Comando da Capital na mira inclusive de órgãos internacionais”.
Como um país onde o Estado não é capaz de controlar seu próprio território, cedendo o controle de partes importantes de suas principais cidades e regiões para o crime organizado, que estende sua influência inclusive sobre instituições públicas, pode se apresentar ao mundo como confiável, capaz de contribuir de forma significativa para a solução dos grandes desafios globais que o mundo enfrenta? Moral da história: ou o Brasil resolve seus problemas internos e regionais ou terá dificuldade de realizar a ambição do Presidente Lula de recolocar o país como um ator internacional de peso.