Desafios atuais da governabilidade na Argentina

    No dia 26 de fevereiro deste ano, foi confirmado no Brasil o primeiro caso de contaminação pela Covid-19 na América Latina. Até essa data, Alberto Fernández e Cristina Kirchner tinham sido empossados como presidente e vice-presidente (pela coalizão Frente de Todos), respectivamente, há cerca de dois meses, 10/12/2019.

    Quando ambos assumiram, a taxa de desemprego era de 9,8%, a maior nos últimos 12 anos, e a inflação acumulada era de 48,3%. Estes e outros índices econômico-sociais revelavam uma tendência de recessão econômica e uma crescente insatisfação por parte da população argentina. 

    A partir do primeiro caso confirmado da Covid-19 na Argentina, em março de 2020, a atenção à pandemia tornou-se centro de debate público no país. Contudo, no decorrer das semanas, a pandemia passou a dividir as manchetes de jornais com outras questões, sendo que aqui serão destacadas três.

    O presidente Alberto Fernandez enfrenta múltiplos desafios para construir a governabilidade na Argentina.

    No âmbito das relações externas, a dívida pública externa do país e a condução da política exterior regional. Ambas tiveram ampla repercussão na mídia nacional e exercem influência considerável no pacote de soluções para a amenização da crise econômica que o país enfrenta.

    No plano interno, existe uma desconfiança por parte da oposição e dos oficialistas anti-kirchneristas na capacidade operativa do Judiciário sem interferências do governo, o que, atrelado a outros pontos de dissidência com esses setores, poderá resultar na deterioração, logo no início, de algo que era apontado por Fernández como um dos principais objetivos políticos de sua gestão: o fim da “grieta”.

    Os desarranjos econômicos e sociais argentinos que geram atenção urgente foram herdados, em parte, do governo anterior, de Mauricio Macri (2015-2019). A dívida pública externa foi uma das primeiras questões econômicas a ser enfrentada pelo governo de Fernández, e parcela de seu montante foi contraído na gestão macrista.

    Em 2018, por exemplo, foi tomado um empréstimo stand-by de aproximadamente U$57 bilhões junto ao FMI, sendo, historicamente, a maior concessão de crédito já realizada por essa instituição financeira, e o que marcou um retorno da vinculação argentina ao Fundo, após 12 anos do cancelamento junto à instituição, em 2006.

    A gestão de Fernández começou, então, com uma dívida junto ao Fundo de U$44 bilhões (a maior entre os organismos internacionais), renunciou ao desembolso do restante do empréstimo e iniciou negociações com a instituição acerca das mudanças dos prazos e das taxas de juros.

    Ademais, cerca de 78% da dívida pública era em moeda estrangeira e o prazo do pagamento de parte da dívida externa venceria no primeiro semestre deste ano, pagamento este que Fernández percebia como inviável desde a data em que assumiu a presidência, em 10 de dezembro de 2019, afirmando que a Argentina se encontrava em um “default virtual”.

    No final de agosto deste ano, Martín Guzmán, ministro da Economia, ao lado de Cristina e Fernández, anunciou que havia sido alcançada uma reestruturação de 99% da dívida externa argentina, após negociações com credores privados.

    O próximo passo será a renegociação da dívida junto ao FMI. Até o presente momento, a postura do Fundo foi favorável à negociação com os credores privados, dado o reconhecimento da insustentabilidade da dívida pública do país, conforme consta em informe da equipe técnica da instituição após uma visita a Buenos Aires, em fevereiro deste ano, além de declarações da diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, inclinadas a uma perspectiva dialoguista.

    Seria de se esperar que o debate acerca da dívida externa na Argentina se fundamentasse a partir de uma perspectiva de maior coesão nacional, especialmente, devido à crise econômica, política e social que os argentinos enfrentaram entre 2001 e 2002.

    Os processos contra a vice-presidente Cristina Kirchner estão no centro da crise política argentina.

    Durante a crise, a dívida externa figurou como um dos principais elementos, quando da cessação de envio de remessas pelo FMI à Argentina, sendo que a política da conversibilidade (paridade de 1 peso para um 1 dólar) era sustentada primordialmente pelos empréstimos do Fundo, e quando da declaração, pelo presidente Adolfo Rodríguez Saá, em dezembro de 2001, da maior moratória da história argentina. Contudo, observa-se que a maioria (senão todos) dos debates acerca da política e da economia do país estão envoltos no que o jornalista argentino Jorge Lanata denominou, em 2013, de “grieta”, uma divisão política e social entre kirchneristas, correligionários da ex-presidente Cristina Kirchner, e anti-kirchneristas.

    À época de sua candidatura à presidência, Fernández, que havia ocupado o cargo de chefe de Gabinete durante toda a presidência de Néstor Kirchner e em parte da de Cristina Kirchner, afirmou que trabalharia para pôr fim à “grieta”. O indicador imediato nesse sentido era a coalizão Frente de Todos, reunindo distintos setores, apesar de Fernández dividir a candidatura com Cristina, esta como vice-presidente na fórmula presidencial. Após a vitória da coalizão, contudo, está evidente que o fim da “grieta” dificilmente será alcançado, sendo seu “calcanhar de Aquiles” atual a questão dos processos judiciais aos quais Cristina responde. 

    A vice-presidente responde a processos judiciais, sendo grande parte associados à matéria de corrupção. Quando assumiu o cargo, houve movimentação de opositores alertando que Cristina poderia se beneficiar injustamente do seu posto, uma vez que, na Argentina, quem assume o cargo de vice-presidente da República também assume o de presidente do Senado. Desde então, houve acusações, especialmente pela oposição, de tentativas do governo de contornar os processos aos quais Cristina responde. O estopim foi Fernández ter apresentado, em julho deste ano, um projeto de lei de Reforma Judicial, que até o momento foi aprovado no Senado. Enquanto a oposição aponta que, em meio à pandemia, esse projeto não deveria ser prioridade e que, portanto, a “pressa” em apresentá-lo e o seu conteúdo configuram uma tentativa de beneficiar Cristina, Fernández afirma que o projeto é uma forma de evitar a corrupção no meio jurídico e as perseguições judiciais, como a que, segundo ele, ocorreu com o governo da vice-presidente. 

    Na esfera regional, ocorre uma mudança lenta em direção ao pragmatismo, apesar de até o presente momento o resultado líquido ter sido uma busca por Fernández em alinhar-se a líderes com os quais possui compatibilidade político-ideológica. Antes de ser empossado, Fernández repudiou as movimentações políticas na Bolívia, que culminaram na renúncia, em novembro de 2019, do então presidente Evo Morales. No dia 12 de dezembro, Evo Morales chegou à Argentina, obteve refúgio, e pouco mais de um mês depois, em festa de comemoração dos 14 anos da sua primeira posse, Evo incluiu Fernández nos seus agradecimentos.

     Quanto aos governos do Chile e do Brasil, Fernández teve desentendimentos diplomáticos que remontam ao final do ano passado. Um dos últimos pontos de conflito com relação a Sebastián Piñera, atual presidente chileno, foi devido a uma videoconferência do Grupo de Puebla, em abril deste ano, com participação de membros da oposição de Piñera, na qual Fernández conclamou a oposição chilena para uma união no país andino, afirmando a necessidade de não deixar que setores conservadores estivessem novamente em postos de poder na América Latina. Dias depois, Piñera acusou Fernández de ingerência na política interna do Chile, apontando a postura do presidente argentino como um empecilho para o progresso da agenda bilateral.

    Em relação ao Brasil, Fernández realizou comparações entre as medidas sanitárias e políticas relacionadas à pandemia na Argentina e no Brasil (comparação também realizada com o Chile e alguns outros países), apontando a ineficácia do governo brasileiro e o alto número de mortes em decorrência da Covid-19, além de também ter dialogado com setores da oposição a Jair Bolsonaro. 

    As dissidências políticas e ideológicas, especialmente com o Brasil, mas também com Paraguai e Uruguai, exerceram influência considerável na esfera comercial multilateral, quando da decisão argentina anunciada, em 24 de abril deste ano, de sua retirada das negociações atuais e futuras do Mercosul, com exceção das já em fase final com a União Europeia (UE) e a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), justificada pela priorização dos dilemas da economia interna.

    Após reuniões com os outros representantes dos países-membros, a Argentina passou a adotar uma postura da necessidade de o bloco ter um ritmo mais lento nas negociações em andamento de acordos de livre comércio com Cingapura, Coreia do Sul, Canadá, Líbano, entre outros países. Contudo, esse é um posicionamento que vai na contramão da posição livre-cambista de Brasil, Paraguai e Uruguai.

    Após declaração de desculpas pelo governo argentino de erros cometidos nas comparações de taxas de mortalidade pela Covid-19 entre Argentina e, dentre outros países incluídos, o Chile, tem ocorrido um avanço tímido nas negociações e tratativas bilaterais, como o comunicado emitido pelo governo chileno, em junho deste ano, de que tinha sido acordado um aprofundamento da cooperação sanitária entre ambos os países.

    Em agosto deste ano, em reunião do embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, com Bolsonaro, para apresentação de suas credenciais, houve uma condução, tanto por parte do Brasil, quanto da Argentina, no sentido de superar as diferenças ideológicas. Cabe ressaltar, por outro lado, que o avanço da agenda bilateral entre China e Argentina (cooperação espacial, 5G e comércio) está se intensificando cada vez mais. Na matéria comercial, tem-se que, de abril a julho deste ano, a China foi o principal sócio comercial (somadas as exportações mais importações) da Argentina, o que indica, uma maior aproximação diplomática entre ambos os países, uma tendência de consolidação e deslocamento do Brasil como o principal parceiro comercial.

    Certamente, a busca de soluções que melhorem os índices econômicos na Argentina ultrapassa diversas esferas e está longe de se efetivar em um curto prazo. Como brevemente explanado, antes da Covid-19, a conjuntura econômico-social argentina já se apresentava como um desafio a ser enfrentado pelo governo recém-empossado, agora, as consequências da pandemia intensificaram os problemas acumulados e trouxeram novos.

    Fernanda Moreira Lins: Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI).

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    2 COMENTÁRIOS

    1. Se ela foi não sei, mas o texto é bastante lúcido e bem escrito. Detalhe suas críticas e ilibado conhecimento, ao invés de criticar e se esconder. Parabenizo o Portal por mais um ótimo texto.

    2. Será que ela já foi a Argentina?
      Sou empresário lá, e o artigo desta me permite o pensamento de que ela não entende nada daquele país.

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