Depois de muita hesitação, provavelmente por receio dos impactos eleitorais negativos em um ano de eleições presidenciais, a Câmara de Representantes e o Senado dos Estados Unidos aprovaram, com apoio bipartidário, um novo pacote bilionário de ajuda à Ucrânia, Israel e Taiwan. Apenas para a Ucrânia serão US$ 61 bilhões. Na Câmara dos Representantes, o projeto foi aprovado por 311 votos a 112, com o apoio de todos os democratas e cerca de metade dos republicanos. No Senado, onde os democratas têm maioria, o projeto também foi aprovado por meio de procedimento simbólico.
Afora a determinação do governo Biden de que a Rússia não pode vencer essa guerra, que outros fatores pesaram para isso? Por que Trump resolveu, se não apoiar, pelo menos não bombardear a proposta? O que essa ajuda significa em termos práticos para a evolução do conflito na Ucrânia? Que interesses estão por trás da continuidade do conflito?
Começando pela aprovação da ajuda em si é importante observar que a proposta do governo Biden estava parada no Congresso dos Estados Unidos há vários meses muito em função das críticas de Trump e parte dos republicanos aos enormes gastos dos Estados Unidos com uma guerra sem perspectiva de chegar ao fim. Trump critica Biden e os democratas pelos bilhões de dólares que os EUA dão a países estrangeiros, enquanto os problemas continuam a aumentar em nível interno, o que tem levado a que o apoio popular aos gastos dos Estados Unidos com a guerra e outras ações no exterior também tenha diminuído.
Porque Trump mudou de posição? Segundo o Wall Street Journal (27/04), há duas razões para isso. Primeiro porque a lei que autorizou a ajuda incorporou a proposta de Trump de transformar a ajuda em empréstimo. Na visão de Trump, a Ucrânia é um país rico em recursos minerais, que estão basicamente nas áreas ocupadas pelos russos. Para ele, a Ucrânia poderia e deveria pagar a conta, vençam ou percam a guerra. Isso está de acordo com sua visão de que os Estados Unidos estão sendo “explorados” pelos seus aliados europeus, mesmo porque, em sua opinião, a Ucrânia é muito mais um problema da Europa do que dos Estados Unidos.
Um segundo, motivo, segundo o jornal, é que não interessaria para Trump uma vitória Russa antes das eleições, uma vez que, caso seja eleito, poderia costurar um acordo de paz e aparecer como quem acabou com a guerra, como vem prometendo há meses. Poderíamos, talvez, acrescentar um terceiro motivo: como Trump poderia continuar acusando Biden de gastar o dinheiro do contribuinte americano no exterior e aumentar a dívida pública do país se ele não tiver mais dinheiro para gastar?
Com certeza pesou também para a aprovação do pacote de ajuda o fato de que grande parte do financiamento vai para empreiteiros de defesa dos EUA ou para o Departamento de Defesa para repor armas e munições que já foram fornecidos à Ucrânia. Segundo a revista The Economist, “Estamos ajudando a Ucrânia e, ao mesmo tempo, investindo em nossa própria base industrial, fortalecendo nossa própria segurança nacional e apoiando empregos em quase 40 estados em toda a América”, disse Biden ao sancionar o pacote de ajuda do Congresso, há muito adiado. Nesta semana, Eric Fanning, presidente-executivo da Associação das Indústrias Aeroespaciais, o maior grupo de lobby das empresas de defesa dos EUA, descreveu a legislação aprovada como uma “injeção de financiamento muito necessária que salvaguardará o futuro da América, reabastecendo os estoques dos EUA e aumentando a capacidade de produção aqui em casa”.
A guerra foi uma oportunidade de ouro tanto para os Estados Unidos quanto para seus aliados europeus se livrarem de armas e munições já obsoletas e reporem seus estoques com material mais avançado, fabricado pelas grandes fabricantes de armas dos Estados Unidos. Há muito tempo sem se envolver em conflito bélico, muitos países europeus, nomeadamente aqueles do Leste, que aderiram à Otan após o fim da União Soviética, dispunham em seus arsenais de velhos equipamentos herdados da ex-URSS. Trata-se, portanto, de uma oportunidade de livrar-se de material bélico obsoleto repondo-o por armas e munições americanas modernas, que serão pagas, ao fim e ao cabo, pela própria Ucrânia.
Segundo o New York Times (23/4), “A guerra na Ucrânia tem sido, na opinião de muitas autoridades americanas, uma bonança para os militares dos EUA, um campo de testes para o Projeto Maven e outras tecnologias em rápida evolução. Os drones de fabricação americana enviados para a Ucrânia no ano passado foram derrubados do céu com facilidade. E os responsáveis do Pentágono compreendem agora, de uma forma que nunca compreenderam antes, que o sistema de satélites militares da América tem de ser construído e configurado de forma totalmente diferente, com configurações que se parecem mais com as constelações de pequenos satélites Starlink de Elon Musk.”
Por último, até que ponto esse novo pacote de ajuda pode mudar os rumos do conflito que, no momento, tem se mostrado mais favorável aos russos, que retomaram a inciativa e estão, aos poucos, reconquistando as áreas que tinham sido recapturadas anteriormente pela Ucrânia no início de sua contraofensiva?
Tudo indica que não haverá mudanças significativas no palco do conflito. Primeiro porque mesmo com a ajuda bilionária, não será de uma hora para outra que mais armas e munições chegarão às mãos dos ucranianos, uma vez que os estoques disponíveis já tinham sido enviados anteriormente e a reposição do material leva tempo. Segundo porque boa parte desse pacote não significa novos armamentos para a Ucrânia, mas reposição de estoques de materiais que já foram enviados para aquele país. Terceiro e talvez mais importante, porque a Ucrânia enfrenta um problema muito sério que a ajuda externa não pode resolver que é a falta de mão de obra para a guerra.
Segundo o Financial Times (26/4), “Em primeiro lugar, é mais provável que isto [o pacote de ajuda] mais desacelere do que reverta a atual ofensiva da Rússia. Mesmo quando havia esperanças de que a ajuda dos EUA seria concretizada no início do ano, ainda se esperava que 2024 fosse um período em que a Ucrânia manteria o terreno mais do que libertaria o seu território ocupado. As forças da Ucrânia absorveriam quaisquer golpes que os russos lhes pudessem lançar, ao mesmo tempo que resolveriam os seus problemas e garantiriam que as suas próprias linhas pudessem resistir. Zelensky, o seu governo e os líderes militares passaram grande parte deste ano a debater como mobilizar mais homens, mesmo quando os já comprometidos sofrem de esgotamento e exaustão, e a construir fortificações para conter as antecipadas ofensivas russas. Levará algum tempo para se recuperar dos difíceis primeiros meses deste ano, e ainda mais tempo, antes que a Ucrânia comece a se beneficiar plenamente dos novos fornecimentos de equipamento e do aumento da produção europeia e norte-americana de munições de artilharia. É necessário treinar novas unidades e ainda restam questões de comando da decepcionante contraofensiva do ano passado, nomeadamente sobre como coordenar operações em grande escala. Embora as forças armadas ucranianas não queiram ceder completamente a iniciativa e queiram que os russos comecem a preocupar-se com as suas próprias posições em vez de se concentrarem na melhor forma de atacar a Ucrânia, vai demorar algum tempo até que tenham força para começar a libertar quantidades substanciais de território”.
O site russo RT (26/4), cita uma fala do Assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, à rede de televisão americana MSNBC, em resposta a comentários do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky de que a Ucrânia necessita pelo menos sete baterias Patriot de seus apoiadores ocidentais, afirmando que “Os sistemas Patriot dos EUA estão sendo implantados neste momento em todo o mundo, inclusive no Oriente Médio, para proteger as tropas dos EUA. Se pudermos desbloquear mais baterias American Patriot, nós as enviaremos. Mas estamos fornecendo grande parte dos mísseis que vão para as baterias que são disparadas. (…) Entretanto, o que vamos fazer é trabalhar com parceiros europeus e de outras partes do mundo para que forneçam capacidade adicional de defesa aérea à Ucrânia”. Ou seja, os Estados Unidos não dispõem, no momento, de novos sistemas Patriot para serem enviados à Ucrânia.
Segundo o mesmo site, “além da Alemanha e dos Países Baixos, outras nações europeias que operam sistemas Patriot incluem Polônia, Espanha, Grécia e Romênia. Embora Berlim tenha prometido recentemente fornecer mais uma bateria Patriot à Ucrânia, Varsóvia disse no início desta semana que não tem sistemas de defesa aérea de sobra. A Espanha afirmou que só pode fornecer um “pequeno número” de mísseis interceptadores Patriot a partir dos seus estoques, mas não os sistemas completos. A Grécia também resistiu à pressão externa, e o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis insistiu que não serão tomadas quaisquer medidas “que possam pôr em perigo, mesmo remotamente, as capacidades de dissuasão ou de defesa aérea da nossa nação”.
Fabricada pela gigante armamentista norte-americana Raytheon, uma única bateria MIM-104 Patriot custa mais de US$ 1 bilhão. Consiste em múltiplas unidades montadas em caminhões, incluindo energia, radar, antena, controle de engajamento e outros veículos de apoio, bem como até oito lançadores com mísseis interceptadores. Os EUA produziram mais de 1.100 lançadores Patriot ao longo dos anos. Estima-se que os EUA tenham centenas em serviço ativo e armazenado, mas enviaram apenas uma única bateria para a Ucrânia. A Alemanha doou mais duas baterias completas, enquanto a Holanda partilhou dois lançadores individuais, segundo o site RT.
É preciso ainda levar em conta que a eficácia de tais sistemas já não é a mesma de quando foram enviados para Ucrânia por ocasião da contraofensiva que permitiu aos ucranianos retomarem algumas poucas áreas ocupadas pelos russos. Conforme destacou o New York Times (23/4), “Os primeiros dois anos do conflito também mostraram que a Rússia se adaptou, muito mais rapidamente do que o previsto, à tecnologia que deu à Ucrânia uma vantagem inicial. No primeiro ano da guerra, a Rússia mal utilizou as suas capacidades de guerra eletrônica. Hoje fez pleno uso delas, confundindo as ondas de drones que os Estados Unidos ajudaram a fornecer. Até os temíveis mísseis HIMARS que o presidente Biden relutou a dar a Kiev, e que deveriam fazer uma enorme diferença no campo de batalha, foram por vezes mal direcionados, à medida em que os russos aprendiam a interferir nos sistemas de orientação”.
Já o problema da mão de obra para a guerra é ainda mais complicado para resolver. Ainda segundo o site russo RT (27/4), “A Ucrânia perdeu um total de 8.280 soldados nos últimos sete dias, principalmente nos combates no Donbass, sugerem os dados fornecidos pelo ministério [da defesa russo]. As tropas de Kiev também perderam cerca de uma dúzia de tanques e várias dezenas de veículos blindados de combate, juntamente com centenas de outras peças de equipamento militar. A lista inclui pelo menos um obuseiro autopropulsado Paladin de 155 mm, fabricado nos EUA, bem como quase 30 sistemas de artilharia fornecidos pelo Ocidente, segundo Moscou. As forças russas também destruíram oito lançadores múltiplos de foguetes ucranianos, incluindo os HIMARS de fabricação norte-americana e os sistemas RM-70 Vampire fornecidos pela República Tcheca. Os sistemas da Força Aérea e de Defesa Aérea do país abateram o caça MiG-29 da Ucrânia e as aeronaves de apoio aéreo aproximado Su-25, juntamente com mais de 1.600 drones, disse o ministério. No início desta semana, o ministro da Defesa russo, Sergey Shoigu, afirmou que as forças de Moscou tomaram a iniciativa no conflito na Ucrânia e “dissiparam o mito da superioridade das armas ocidentais”.
Segundo o New York Times (11/4), “O Presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia provavelmente mudou o destino de milhares de homens ucranianos quando assinou uma lei que reduz a idade de recrutamento para 25 anos, ante 27, este mês, mais de dois anos depois de a Rússia ter iniciado a sua invasão em grande escala. As forças ucranianas estão lutando para conter o muito maior exército russo e precisam desesperadamente reabastecer as suas fileiras. Agora, muitos dos jovens que permanecem na Ucrânia – milhares de outros fugiram ilegalmente do país – preocupam-se com o seu futuro.”