Ao que parece, de acordo com uma antiga anedota, Isaac Newton ampliou seu olhar quando escalou os ombros dos grandes gênios, os ombros de gigantes. Seu ‘’Zaque’’ pensava ter visto mais longe. Uma outra lenda nos informa sobre a escalada de Galileu. O pensador italiano olhava o mundo do alto de uma torre. De um modo ou de outro, todo gênio precisa de sua escalada, de um ponto superior de observação. O verdadeiro olhar é o que enxerga do alto. O olhar da razão precisa do último degrau da arquibancada do pensamento.
Essa sobreposição de pessoas, uma sobre os ombros da outra, poderia produzir em nós uma canastra de suposições enganosas. Quer um exemplo, leitor? A suposição de que o progresso da razão é como um circo. De repente, amigos, surge uma montanha de gente e, em seguida, cai uma maçã. E lá está um britânico para patentear as leis que, a priori, condicionam os fenômenos da realidade física. Pronto: assim foi o parto de uma das leis fundamentais da realidade fenomênica. A plateia aplaude e… fim do espetáculo, respeitável público! Sabemos que até a razão precisa de um conjunto de lendas e mitos para explicar a si mesma.
Quer outro exemplo, amigo leitor? A racionalidade dos historiadores descobriu que Leônidas da Silva não inventou a bicicleta. E pasmem: alguns o tratam como se o Craque fosse um charlatão, um pirata de patentes, um gatuno das jogadas imortais. Os mais frenéticos e radicais o consideram uma espécie de terceiro irmão dos irmãos Wright. No caso mais entusiasmado de desconstrução, de implosão da memória, o Craque não inventou a bicicleta e, pelo suposto parentesco, também não foi capaz de inventar o avião. A racionalidade possui direitos que o futebol brasileiro não tem – o de produzir mitos e lendas para explicar a si próprio. Em tempo: nem toda a historiografia feita sobre o futebol é de tal nível.
Seja o que for, amigo leitor, a realidade só vale a pena quando contraria as determinações da mecânica clássica. Pense em uma Daiane dos Santos. A gaúcha, com o charme dos pampas, reinventou o espaço. No lugar do espaço absoluto, nossa atleta inventou o ‘’espaço-canvas’’, uma espécie de ‘’espaço-tela’’. Com graça e alegria, a moça desenha e pinta com o corpo no espaço, dança no ar e, no final, jorra de luz em um imenso e belo sorriso. Diante de Santos o espaço esquece do absolutismo. O espaço absoluto dobra os joelhos em sinal de sujeição. A moça pisa nos ombros do absoluto e, em seguida, flui malabarísticamente cheia de lirismo e paixão.
O grande Villa-Lobos nos deu uma imensa maravilha quando compôs sobre os traços de uma montanha, uma melodia sobre a linha, sobre o contorno da montanha – nossos gigantes escalam montanhas. É impossível que ainda não tenhamos no mínimo uma sinfonia dedicada a ‘’espaço-grafia’’ de nossa maior ginasta, uma melodia para os contornos de maravilhamento cinético de Daiane. De bom humor, sorrindo como uma ginasta, o Brasileiro inventa o avião e acha petróleo no fundo do mar. Carrancudo, porém, o patrício é um desastre, é um ser capaz das piores tragédias. Antes tudo, amigos, o verdadeiro brasileiro é um ser alegre e carismático. Todo brasileiro é um Joãosinho Trinta em potencial.
O brasileiro precisa do carisma. Do tipo humano que a teoria do populismo não entende e, ao que parece, jamais entenderá. O brasileiro, na sua vocação para o ineditismo é, de fato, e em cada corpo, a encarnação da novidade humana. O brasileiro é puro movimento, puro malabarismo, plena capoeiragem e carisma. Da passista de escola de samba ao compositor de genial, da tradição diplomática de Rio Branco ao ponta de lança habilidoso, do arquiteto ao vendedor de limões, o brasileiro é todo uma ginga, um desvio, uma curva, um jogo de cintura, uma alegria que, mesmo quando é errático e torto, acerta.
Não quero, contudo, falar de Heitor ou de Daiane. Nem de montanhas, filósofos da natureza, diplomatas, aviões e inventores geniais. Gostaria de falar de um outro gigante e suas criações, eu gostaria de falar sobre Leônidas da Silva, o Diamante Negro, o Homem Borracha, o primeiro garoto propaganda da história do futebol brasileiro. Leônidas não é um colosso qualquer. Não. É um brasileiro, o tipo humano inédito que, mesmo com toda a antropologia disponível, ainda estamos na véspera de compreender. Nosso gigante escalava o mundo com piruetas e, supostamente de cabeça para baixo, seus ombros derrubam qualquer pretensão de subida. Supostamente de cabeça para baixo? Sim! Vocês entenderão!
De pé ou supostamente de cabeça para baixo, o Craque ostentou títulos por Vasco, Flamengo, São Paulo, Seleções Estaduais e, na primeira grande campanha do Brasil em Copas, a artilharia do certamente Mundial de 1938. Como escalar os ombros de Leônidas? Certamente, amigo leitor, você precisaria ser um Pelé e eu um Garrincha. Leônidas não é o inventor da bicicleta e, talvez, tenha sido um dos poucos seres humanos que nunca se pôs de cabeça para baixo. Até que mudem a memória, o Diamante é o único jogador a marcar um gol sem chuteiras na história das Copas do Mundo. E eu gostaria de revelar mais um ineditismo do Gênio. Sim, amigos, Leônidas nunca se pôs de ponta a cabeça!
Não era o Homem Borracha quem invertia a ordem natural e a banalidade fenomênica dos bípedes mortais, nossa trivial tendência para colocar os dois pés sobre o mundo na busca do equilíbrio. Não. Puro equívoco ótico, amigos! A verdade é que nosso atleta pulava para inverter o mundo e, em seguida, a pobreza do olhar conduzia o entendimento para o caminho das tolices – olha, o Diamante Negro está com os pés nas nuvens! Não! O salto do craque é que invertia a realidade e, no instante seguinte, todo o estádio é que estava submetido ao reverso do mecanicismo. Quando Leônidas pulava, o espectador é que terminava virado de ponta a cabeça.
Leônidas não é o inventor da bicicleta. O próprio Leônidas havia afirmado: -Senhoras e senhores, eu não inventei a bicicleta! Do outro lado, os tolos, néscios e moradores da SUIPA, concluíam: -Aí está aprova, amigos! Não há novidade e ineditismo na brasilidade! O que o Craque estava dizendo, leitor, era algo mais profundo – o gênio não girava, mas a realidade que invertia quando o Craque saltava. Leônidas é elástico como a borracha e, ao mesmo tempo, sólido, duro e impenetrável como um diamante. O craque inventou algo maior que a bicicleta e, do ponto de vista estético, mais profundo. Além do poder de inverter e deslocar o espectador que parece imóvel, ele inventou um modo de jogar futebol, o futebol brasileiro. E, nós sabemos, o futebol brasileiro tem o poder de colocar o mundo de cabeça para baixo.
O nosso Diamante Negro é o inventor do ‘’foot-baall mulato’’, do ‘’futebol arte’’. E Freyre compreendeu o mistério: ‘’Sente-se nesse contraste [entre o brasileiro e o europeu] o choque do mulatismo brasileiro com o arianismo […].. É claro que mulatismo e arianismo são considerados não como expressões étnicas, mas como expressões psico-sociais condicionadas por influências de tempo e de espaço sociais. […] No foot-ball, como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de dança e de capoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca.’’. (Gilberto Freyre, Diário de Pernambuco, 17 de junho de 1938.)
E quando se deu a passagem do estático para a dança, do silêncio para o estético, do absoluto nada para o dionisíaco? Leônidas é filho de um momento histórico prodigioso. Na década de trinta, o futebol estava fracionado, mais dividido que a sociedade brasileira atual. De um lado os defensores do amadorismo; do outro, os cartolas que defendiam o futebol profissional. A disputa entre os dirigentes da época tinha como ambiente histórico um Brasil de mudanças e grandes transformações. No campo político-social, o Trabalhismo de Getúlio Vargas tirava o trabalhador das trevas, eliminava os resquícios de escravidão, de aprisionamento do corpo – o Trabalhismo era um segundo Abolicionismo.
Quando Leônidas surgiu para o futebol, o profissionalismo estava prestes a derrotar o amadorismo. O futebol seguia os passos do Trabalhismo e, ao seu modo, tal como a liberdade social que nascia das Leis Trabalhistas, a Paixão Nacional era como um Luiz Gama, um Joaquim Nabuco e um José do Patrocínio. Do mesmo modo que o Trabalhismo foi uma segunda Abolição e desamarrou o corpo brasileiro do tronco hediondo do escravismo, o profissionalismo ampliou a presença de negros, mestiços, mulatos e brancos e pobres no futebol. Sem amarras, o corpo brasileiro dança, pensa, salta, sorri e desponta como um elemento inédito na história humana.
Leônidas é uma consequência estética do Abolicionismo, do reformismo Humanista, do Trabalhismo. O Diamante Negro pode não ter sido o inventor da bicicleta, mas, certamente, é um símbolo de criações mais importantes, profundas e significativas para o Brasil! Sem pesquisar: você sabe quem é o inventor da bicicleta? Sinceramente? Me interessa mais a descoberta do Brasil e dos brasileiros. Prefiro um Leônidas, um Bonifácio, um Patrocínio, um Getúlio, um Juliano Moreira, um Manoel Bonfim, uma Daiane, um Júlio de Castilhos e uma Maria Firmina dos Reis. Os outros podem ficar com a bicicleta, mas, por favor, deixem os nossos Diamantes! Repito: deixem os nossos Diamantes!
Muito bom…o artigo contém aspectos que não é domínio público! Parabéns!
Texto muito bem escrito e claro como sempre! Parabéns ao portal e ao Teixeira Mendes!
Parabéns ao portal por cuidar de forma exemplar da memória da raiz do nosso futebol, um futebol arte, que me remete a uma saudade que não vi e nem vivi!