Giovana Girardi e Beatriz Bulla / Agência Estado
Na última semana, por pelo menos cinco vezes o presidente Jair Bolsonaro questionou dados científicos produzidos por um instituto de pesquisa federal. “Tenho a convicção que os dados são mentirosos”; “poderiam não estar condizentes com a verdade”; “prejudicam e atrapalham o País”; “esses dados servem para quê?” foram algumas das frases usadas por Bolsonaro para desmerecer as informações fornecidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre o desmatamento da Amazônia.
Esta não foi a primeira vez que o conhecimento científico foi posto em xeque ou ignorado pelo governo. Não é a primeira vez que a ciência foi posta em xeque ou ignorada pelo governo, principalmente na área ambiental – de informações sobre aquecimento global à definição de espécies ameaçadas de extinção ou o tamanho das áreas preservadas.
Para se posicionar diante desse cenário, um grupo de mais de 50 pesquisadores de todas as regiões do Brasil começou a se organizar para oferecer respostas baseadas no melhor do conhecimento científico de um modo acessível à população. Dessa articulação surgiu a Coalizão Ciência e Sociedade.
Apartidário, o grupo é formado por pesquisadores de relevante atuação científica, com disponibilidade de tempo para contribuir no diálogo entre conhecimento científico e as demandas da sociedade.
“Nosso objetivo é ser um antídoto para as fake news. Um contraponto para trazer uma visão independente, robusta e sempre pautada no conhecimento científico”, explica o biólogo Alexander Turra, do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (USP).
“A ciência tem muitas informações para passar para a sociedade. A preocupação da Coalizão é mostrar isso num momento de fragilização da ciência, que vem de dois lados: com a redução de recursos, com os cortes em bolsas e com o endurecimento do discurso anticiência”, explica a bióloga especialista em ecologia de ecossistemas Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ela, o questionamento é motor do conhecimento científico, mas, afirma, isso não se faz apenas com críticas vazias. “Há um protocolo, o questionamento tem de vir acompanhado de fundamentos, argumentos robustos. Só questionar como sinal de descrédito não contribui muito para a ciência avançar”, diz a pesquisadora.
Para Mercedes, “perdeu-se um pouco o pudor e a elegância” em como as coisas são ditas, em referência às falas de Bolsonaro sobre os dados do desmatamento. “Antes, se algum ministro tinha dúvidas sobre dados de instituições públicas, convocava os técnicos, fazia reuniões. Agora as manifestações (de crítica) vêm primeiro”, complementa.
A atuação inicial do grupo foi em produzir artigos para serem publicados na imprensa ou em revistas renomadas de divulgação científica, como a Science, além de cartas endereçadas ao próprio presidente e aos seus ministros. Os cientistas também trabalhado em conjunto para planejar suas participações em audiências públicas no Congresso, como ocorreu recentemente num debate sobre licenciamento ambiental, e planejam produzir eventos específicos sobre temas que estejam mais em evidência.
Por exemplo, a Comissão de Relações Exteriores do Senado decidiu realizar um seminário com cientistas que negam que atividades humanas sejam as responsáveis pelo aquecimento global – uma minoria dentro da comunidade científica.
O Brasil tem diversos pesquisadores membros do principal corpo científico internacional que analisa estudos sobre aquecimento global, o IPCC. Mas nenhum foi convidado para participar do evento. “Então pensando em formas de criar um contraponto a isso, talvez fazer um encontro no mesmo horário”, afirma Turra.
A Coalizão também está se articulando com as duas principais entidades científicas do País, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (AB)C para promover ações conjuntas e com mais abrangência dentro da academia nacional.
Segundo Mercedes, as demandas por manifestações foram tantas até o momento que a Coalizão ainda não conseguiu estruturar um site. “Está até faltando fôlego para reagir a tantos ataques, mas estamos avaliando como melhorar nossa forma de comunicação, torná-la mais acessível. Começamos com os artigos pela nossa facilidade de escrever, mas temos planos para usar mais as redes sociais para conversar com a população, fazer vídeos, infográficos”, diz.
O físico Paulo Artaxo, da USP e membro permanente do IPCC, diz que as cartas e artigos não têm como objetivo mudar a posição do governo, mas mostrar à população os riscos que questionamentos assim podem representar. Para ele, a sociedade precisa ter “mais resiliência” para minimizar os danos em situações do tipo.
“O impacto dos ataques do presidente (Donald) Trump são mais restritos ao desenvolvimento científico porque o Congresso (dos EUA) controla o orçamento. Quando ele quis fazer um corte de 90% nas pesquisas sobre aquecimento global, o Congresso vetou.” Seria bom ter no Brasil, para ele, um sistema menos vulnerável a mudanças de cada governo.
Nos EUA, Trump motiva reação de pesquisadores
Donald Trump já chamou o aquecimento global de uma “farsa” criada pelos chineses e já disse que turbinas de energia eólica causam câncer. O descrédito do presidente dos Estados Unidos às evidências científicas tem efeito nas políticas públicas americanas – o exemplo é a retirada do país do Acordo Climático de Paris, tratado firmado por 195 para conter o aumento global de temperatura até o fim do século, e mudanças na composição de órgãos de aconselhamento, com redução do papel dos cientistas. Nada disso acontece sem reação e mobilização dos ativistas pró-ciência.
“Todo mundo quer a ciência do seu lado, todo presidente tem a tendência de pegar a informação que suporte suas próprias políticas, mas não tínhamos visto tantos ataques generalizados”, diz Michael Halpern, que trabalha há 15 anos com a associação dos “cientistas preocupados” (Union of Concerned Scientists, no nome em inglês),
Halpern é diretor do centro de ciência e democracia da instituição, que tenta ajudar cientistas alvo de ataques pessoais, combater a desinformação e fortalecer a comunidade científica. Segundo ele, na gestão Trump cargos técnicos foram trocados por indicações políticas. “Tudo isso é uma forma de evitar a prestação de contas públicas, de justificar as decisões tomadas com fundamento político e não científico”, afirma.
Nesta semana, a Câmara começou a discutir o projeto de lei da integridade científica, visto como uma forma de blindar cientistas que trabalham nas agências federais de interferência política de superiores. Democratas e republicanos concordaram que decisões públicas precisam se basear em fatos, mas divergiram sobre formas de proteger os cientistas que trabalham para o governo.
O projeto de lei é apoiado pela comunidade científica, mas visto apenas como o primeiro passo. “O governo Trump propôs coletar menos dados sobre mudança climática. Se você não coleta os dados, você não tem um problema a resolver, porque não está mensurando o problema”, afirma Halpern. Segundo ele, toda vez que a ciência é deixada de lado é porque estão em jogo interesses ideológicos ou econômicos.
“Não é uma guerra à ciência. É mais uma guerra de informação. O presidente Trump ataca juízes, a mídia, universidades, os militares, quando o que eles dizem contradiz o que ele está fazendo. Há mais movimentos populistas ao redor do mundo e há uma estratégia de diminuir o papel das instituições para que as pessoas não saibam em quem confiar e seja mais fácil disseminar desinformação”, afirma Michael.
Na política. Shaughnessy Naughton tem formação em Química. Em 2014 e em 2016, decidiu concorrer nas eleições para o Congresso ao perceber que poucos parlamentares eram cientistas ou ativistas a favor da ciência. Ela falhou, mas não considera isso um fracasso. As disputas a fizeram ver que era necessário preparar os integrantes da comunidade científica para disputarem eleições e que, sim, havia apoio entre seus pares. Foi aí que ela decidiu fundar o 314 Action, para incentivar e apoiar engenheiros, matemáticos e cientistas a entrarem na política.
A ideia é dar suporte a todos os ativistas ligados a ciências para disputarem eleições e, com isso, produzirem políticas públicas baseadas em fatos. Em 2018, o movimento arrecadou US$ 5,2 milhões (cerca de R$ 19,6 milhões) para financiar campanhas e elegeu um cientista para o Senado, oito para a Câmara e cerca de 100 para os legislativos estaduais.
“Nos Estados Unidos, temos mais congressistas que já foram apresentadores de programas do que cientistas. A maioria dos parlamentares são empresários ou advogados, eles levam algo para as negociações, mas os cientistas também o fazem. As questões mais importantes saem beneficiadas quando há atenção para os dados e evidências, como integridade de eleições, cibersegurança, mudança climática e saúde”, afirma. Os ataques à ciência, diz ela, não começaram nos últimos anos. “O que acontece é que, com Trump, virou uma guerra à realidade. Isso também se tornou um catalisador para os cientistas perceberem que não é suficiente esperar que as evidências falem por si mesmos.”
Na disputa de 2020, a perspectiva do 314 Action é conseguir entre US$ 15 e 20 milhões (entre aproximadamente R$ 56 milhões e R$ 75 milhões) para financiar as campanhas eleitorais. “Espero ajudarmos esse país a voltar aos trilhos, e dar ouvidos aos dados e fatos científicos”, afirma Shaughnessy. “Encorajo cientistas que não esperem para publicar dados e servirem como conselheiros, mas a entrarem no processo eleitoral”, diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.