Ciência e tecnologia no Brasil: desafios ao projeto nacional

ciência e tecnologia

O aperfeiçoamento dos navios conferiu a Portugal a dianteira nas grandes navegações. A máquina a vapor preparou a hegemonia da Inglaterra. A equação de Einstein anunciou a era atômica. Ao longo da história, ciência e tecnologia foram instrumentos de dominação e de emancipação. O atraso o Brasil nessas áreas ajuda a explicar o nosso processo de desindustrialização, os déficits externos e a perda de empregos qualificados, justamente os mais bem remunerados. Enquanto a Ásia ganha protagonismo, nós estamos perdendo posições na nova divisão internacional do trabalho, que está transformando radicalmente o modo como projetamos, produzimos e usamos as coisas.

Introdução

O desenvolvimento da humanidade está profundamente vinculado ao esforço das descobertas científicas, das conquistas tecnológicas e das inovações que elevaram o padrão de vida material e espiritual das pessoas.

O manejo do fogo como fonte primitiva de energia deu aos homens o primeiro grande salto no precário padrão de vida do Paleolítico. A invenção da roda alterou os conceitos de tempo e de velocidade no transporte de equipamentos domésticos, de objetos com finalidades comerciais e de artefatos militares. A domesticação do cavalo nas estepes da Ásia, para montaria e tração, alterou para sempre o deslocamento para fins civis e militares. A cavalaria mudou o conceito da guerra, pois o cavalo estendeu como nunca a logística militar. Os poucos cavalos trazidos por Hernán Cortéz foram suficientes para estabelecer a superioridade dos invasores espanhóis contra a infantaria asteca no que hoje é o México.

Ciência, tecnologia e inovação se combinaram para transformar a vida e a geopolítica em três situações emblemáticas: (a) as grandes navegações dos portugueses e espanhóis nos séculos XV e XVI; (b) a máquina a vapor, com o subsequente estabelecimento da hegemonia industrial, comercial, militar, diplomática e cultural da Inglaterra no século XIX; (c) a fórmula de Einstein (E = mc²), convertida na bomba atômica pelos Estados Unidos como instrumento de domínio militar no século XX.

Ao reunir na chamada Escola de Sagres as técnicas e o conhecimento de chineses e árabes sobre a navegação, o infante dom Henrique garantiu a Portugal a dianteira na corrida pela descoberta de uma rota de comércio para a Ásia que contornasse o bloqueio turco, estabelecido depois da tomada de Constantinopla.

A vela latina, ou triangular, permitiu a navegação contra o vento. Introduzida no Mediterrâneo pelos árabes, mas de origem desconhecida, ela ajudou Vasco da Gama em aventuras por mares nunca antes navegados. Por sua leveza e agilidade, a caravela foi decisiva para superar distâncias transoceânicas. A bússola e o astrolábio completavam o arsenal tecnológico dos navegadores, além dos canhões de bordo, é claro.

Assim, Portugal e Espanha espalharam pelo mundo sua influência comercial, a fé católica e os respectivos idiomas, falados até hoje por povos da América, da África e da Ásia.

A inovação promovida pelos portugueses levou um pequeno país, com pequena população, a um protagonismo que durou séculos na geopolítica do mundo. O épico Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, elevou a literatura portuguesa ao nível dos clássicos eternos ao cantar as glórias e os feitos dos navegadores lusitanos.

O grau de domínio da ciência, da tecnologia e da inovação determina a posição de cada país no sistema internacional. Isso é assunto de Estado, de projeto nacional. Exige uma visão de longo prazo. Não pode depender dos humores dos mercados financeiros.

Na transição do século XVIII para o século XIX a economia chinesa ocupava o primeiro lugar no mundo. Mas esse panorama logo mudou, com a adaptação de uma antiga invenção do grego Heron de Alexandria: a máquina a vapor.

O inglês James Watt converteu o engenho grego em um equipamento poderoso, que revolucionou a indústria têxtil da Inglaterra. Este país passou a liderar a produção industrial e, logo depois, a economia do planeta. Era o prodígio alcançado pela conversão de uma curiosidade científica em invenção, e da invenção em instrumento de um projeto de desenvolvimento nacional e de dominação colonial.

Tecnologia como instrumento de dominação

Em 1793, o rei Jorge III enviou Lord Macartney em embaixada ao imperador Qianlong para oferecer as maravilhas da indústria inglesa aos consumidores chineses. Depois de uma temporada no porto do Rio de Janeiro para repouso e abastecimento, a grande expedição chegou à China, onde foi recebida com mesuras e grande pompa. Mas Qianlong não se interessou pelas novidades. A China produzia tecidos finos em grande quantidade, de modo que as peças da indústria têxtil britânica não causaram admiração. Por isso, os chineses conheceram, anos depois, outro equipamento produzido pela máquina a vapor: as canhoneiras inglesas que bombardearam e ocuparam o porto de Cantão. A Guerra do Ópio obrigou a China a abrir seu mercado para as drogas produzidas nas colônias britânicas e os tecidos das fábricas de Manchester.

Com seus portos ocupados por potências europeias, a China foi submetida a um processo de dominação colonial. Na entrada do bairro inglês de Xangai podia-se ler a inscrição: “Proibida a entrada de cães e de chineses”. A humilhação era suprema, mas a exploração era ainda maior. Nasceu nesse período a expressão “negócio da China” para designar transações em que um lado obtém vantagem desproporcional.

Somente em 1998 a Inglaterra devolveu Hong Kong aos chineses. Macau foi devolvida no ano seguinte, depois de um acordo entre China e Portugal.

* * *

No início do século XX, o físico alemão Albert Einstein revelou ao mundo uma equação que reunia e sintetizava o esforço de cientistas de vários países em muitos anos de pesquisa: E = mc². A energia era igual à massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado. Era uma revolução na ciência e uma promessa para o futuro da humanidade: uma pequena porção de matéria poderia se converter em enorme quantidade de energia.

A descoberta de Einstein gerou tecnologias de uso pacífico: submetidos à centrifugação, certos materiais podem produzir combustível ou derivados para a produção de fármacos usados no tratamento de muitas doenças, por exemplo. Mas o uso mais importante e mais duradouro da equação foram as bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, no crepúsculo da Segunda Guerra Mundial. Até hoje o arquipélago japonês acolhe parte do arsenal nuclear norte-americano por causa do acordo de rendição assinado de pois do conflito.

A pesquisa e a produção de derivados da indústria nuclear são as únicas atividades para as quais não se reconhece propriedade intelectual e industrial, o que garante plena liberdade às potências, que podem sofisticar e multiplicar seus arsenais.

Tecnologia como instrumento de emancipação

No Brasil, o esforço de inovação se confunde com a própria formação da nação. No século XVI, segundo o historiador Jorge Caldeira, “enquanto os médicos europeus manipulavam algo como 150 espécies vegetais, algumas populações trabalhavam com cerca de 3 mil espécies. […] 3/4 de todas as drogas medicinais de origem vegetal usadas atualmente no mundo derivam desse conhecimento nativo”.1

Gilberto Freyre relata o conflito em Recife, no século XVIII, entre moradores e autoridades portuguesas que proibiram a atividade de curandeiros e rezadeiras detentoras do conhecimento nativo. Com suas plantas, eles tratavam de doenças tropicais desconheci das de médicos europeus com só lida formação acadêmica.

Ainda no século XVI os portugueses estabeleceram no Brasil os primeiros engenhos, vanguarda da atividade industrial, produtores da mais valiosa commodity de então, a cana-de-açúcar. Se compararmos o processo de produção do primeiro engenho introduzido por dona Ana Pimentel na capitania de São Vicente com as atuais indústrias de etanol, de segunda geração, descreveremos uma longa e vitoriosa trajetória de inovação nessa importante atividade industrial do Brasil.

O alvará de Dom João VI, de 1809, concedendo vantagens aos inventores e um período de monopólio sobre seus inventos, constitui a primeira lei de propriedade intelectual do Brasil e a quarta do mundo, logo depois de leis semelhantes na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.

O brasileiro Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”, foi o primeiro homem a fazer voar o aeróstato, apelidado de “passarola”, em 1709, diante de uma Lisboa surpreendida e admirada. Essa tradição de brasileiros interessados em superar os limites da gravidade foi seguida por Augusto Severo e Santos Dumont na Paris de fins do século XIX e do começo século XX.

Antes de Santos Dumont, Augusto Severo tentara a mesma proeza que o gênio do 14 Bis conseguiu realizar. O artefato do piloto e engenheiro explodiu no ar e caiu sobre a capital francesa. A rua que testemunhou o sinistro recebeu o nome do inventor brasileiro.

Engenheiro, industrial, inventor e político potiguar, Severo é pouco lembrado, o que constitui uma injustiça, pois seu esforço ombreia a saga de Santos Dumont em libertar o homem dos limites da gravidade. Além de uma rua em São Paulo, seu nome batiza o antigo aeroporto de Natal. Muito pouco para tão grande exemplo.

Por muito tempo, a escassez de centros universitários e de pesquisa restringiu o universo científico do país a um grupo de pesquisa dores oriundos das escolas militares ou das faculdades de medicina ou de direito.

Arthur Ramos, Nise da Silveira, Anísio Teixeira, Josué de Castro, Pirajá da Silva, Rocha Li ma, Samuel Pessoa, Alberto da Mota e Silva, Casimiro Montenegro, Carlos Chagas, Vital Brazil, Othon Pinheiro, entre outros, destacaram-se como inventores e pioneiros em ciências sociais, medicina, pesquisa nuclear e espacial.

Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, nas ciências sociais, César Lattes, Mário Schenberg e José Leite Lopes, na física, são exceções que confirmam a regra de médicos e bacharéis dedicados ao ensino e à pesquisa no Brasil.

O presidente Sarney criou o Ministério da Ciência e Tecnologia a partir das estruturas, já existentes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O primeiro titular da pasta foi Renato Archer, um antigo discípulo de Alberto da Mota e Silva, fundador do CNPq. Ambos eram oficiais da Marinha interessados em ciência e pesquisa.

Hoje o Brasil dispõe de uma sofisticada rede de universidades e institutos, federais e estaduais – neste caso, principalmente de São Paulo –, que se dedicam ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação. Este sistema dispõe de importantes instrumentos de financiamento, estruturados em fundos próprios ou em leis específicas, como é o caso da Fapesp em São Paulo.

Um estudo divulgado em 2014 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que os recursos mundiais para pesquisa, desenvolvimento e inovação haviam sido reduzidos à metade. A crise que atingiu a economia brasileira também atingiu o orçamento do governo federal para pesquisa, com prejuízo para o esforço de renovação das equipes e o financiamento de equipamentos e projetos.

Quando ocupei o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, preparei e apresentei um decreto para a presidente Dilma Rousseff, incluindo ciência e pesquisa como uma área a ser beneficiada com os recursos do pré-sal, junto com educação e saúde. Na época, eu disse à presidente que não fazia sentido desvincular educação e saúde, de um lado, e ciência e pesquisa, de outro. Constatei a inexistência de uma única obra ligada a ciência, tecnologia e inovação no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e afirmei que não fazia sentido buscar desenvolvimento, negligenciando ciência e pesquisa. Consegui incluir no PAC as obras do acelerador de partículas Sirius, em Campinas, e do Reator Multipropósito Brasileiro, em São Paulo.

Ainda no ministério, defendi a meta de alcançar a destinação de 2% do PIB para ciência e pesquisa. Apontei as graves consequências das nossas deficiências em ciência, pesquisa e inovação para a competitividade da economia e a qualidade dos empregos gerados no Brasil. O atraso tecnológico do país explica o processo de desindustrialização, os crescentes déficits em transações correntes e a perda de empregos qualificados.

Ciência, tecnologia e inovação determinaram e continuam a de terminar o lugar dos países no mundo. Ocupar a posição de protagonista ou ser um simples ponto no mapa-múndi depende da capacidade científica e tecnológica do país, tanto em economia quanto em defesa. A qualidade da educação e a capacidade de inovar em processos industriais e em defesa nacional marcam o passado recente, o presente e o futuro da disputa entre as nações.

O Estado por trás da ciência e da inovação

Na década de 1980, era quase senso comum a ideia de que a economia japonesa se tornara mais competitiva que a norte-americana. Brincava-se na época com a ex pressão “o meu japonês é melhor do que o seu”, em referência à qualidade dos produtos japoneses, principalmente os eletroeletrônicos.

A disputa gerou um mal-estar que ultrapassou as fronteiras da economia, invadindo a geopolítica e a cultura de massas. Akio Morita divulgou as proezas da Sony em seu livro Made in Japan, publicado em 1986. Shintaro Ishihara, intelectual e ex-governador de Tóquio, ampliou a animosidade ao divulgar o ensaio intitulado O Japão que sabe dizer não, uma proclamação de ameaças aos Estados Unidos e de afirmação da superioridade nipônica. A tradução para o inglês saiu em 1991.

Nos Estados Unidos a onda anti japonesa não era menor. Em 1989, o cineasta Ridley Scott estreou Chuva negra, no qual o ator Michael Douglas é um policial norte-americano que vai ao Japão perseguir a máfia local, Yakuza, e executar seus integrantes. Não poderia haver fábula mais explícita para revelar o estado de espírito dos Estados Unidos em relação ao país asiático. Em 1992, Michael Crichton, escritor de best-sellers, publicou Sol nascente, romance que denuncia a pretensa deslealdade das empresas japonesas.

Tal era o ambiente quando Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos em 1992. Ele convocou Laura Tyson, pesquisadora de Berkeley, e pôs o desafio sobre mesa: como enfrentar a crescente competitividade japonesa e recuperar o fôlego da indústria e da tecnologia norte-americanas?

Clinton recebeu um diagnóstico crítico, mas otimista. Os Estados Unidos eram a maior economia do mundo, dispunham do maior orçamento para ciência e pesquisa, contavam com as melhores universidades e os melhores institutos e reuniam os melhores cérebros do planeta em seus laboratórios. As maiores empresas do mundo estavam sediadas lá.

Para recolocar o país na liderança, a equipe de consultores recomendou a ampliação dos recursos para pesquisa, o aumento das encomendas a empresas em setores problemáticos e a integração do sistema de inovação. Feito isso, a ideia de que a economia japonesa ultrapassaria a norte-americana tornou-se uma lenda.

Sem apoio dos respectivos Estados nacionais não existiriam as grandes empresas privadas que dominam a economia mundial. Elas não se desenvolveram espontaneamente.

Mariana Mazzucato, pesquisadora titular em economia da inovação no Departamento de Pesquisa em Ciência Política da prestigiada Universidade de Sussex, na Inglaterra, escreveu o importante livro O Estado empreendedor, celebrado no mundo inteiro por de fender a presença do Estado no esforço de pesquisa e inovação. Apoiada em minuciosa investigação, Mazzucato prova que sem dinheiro do Estado não existiriam as grandes empresas de tecnologia que dominam o mundo a partir dos Estados Unidos. Financiadas pelo Estado, Apple, Facebook e Google resultaram em aplicativos e serviços que determinam a hegemonia norte-americana no setor. A tese de Mazzucato é que só o Estado pode correr os riscos inerentes aos altos investimentos em ciência, pesquisa e inovação.

Os norte-americanos continuam a ser desafiados no espaço euro-asiático. A Rússia assombra, ao demonstrar a retomada de sua capacidade militar, amplamente vitoriosa no conflito da Síria. A China desloca seu esforço científico e tecnológico para dotar sua economia de elevado padrão tecnológico e assim reafirmar a própria trajetória em direção à liderança mundial.

Tecnologia: o rei Jano moderno

Foram enormes os impactos das três revoluções industriais dos últimos 250 anos. A primeira trans formou radicalmente o mundo. As novas tecnologias introduzidas a partir da máquina a vapor que mecanizou a fiação e a tecelagem deram origem a novos sistemas de produção, transporte, troca e distribuição de produtos.

Mas, assim como o rei Jano, a tecnologia tem duas faces. A Primeira Revolução Industrial contribuiu para enriquecer o mundo e elevar o padrão geral de vida material da sociedade, mas também permitiu o aumento na exploração e a expansão do colonialismo. Em meados do século XVIII, aproveitando a superioridade tecnológica, econômica e militar, a Inglaterra e as potências aliadas impuseram os chamados “tratados desiguais”, ou “tratados iníquos”, a países tão diferentes como o Brasil (Abertura dos Portos em 1810), a China (Tratado de Nanquim em 1842) e o Japão (Tratados Ansei em 1858).

A partir do domínio da eletricidade, a Segunda Revolução Industrial permitiu introduzir entre 1870 e 1930 um novo conjunto de invenções e inovações, como rádio, telefone, televisão, iluminação elétrica, eletrodomésticos e refrigeração. As inovações em tratamento de água, saneamento e saúde permitiram que a expectativa de vida praticamente dobrasse em todos os países. As descobertas na química, como a sintetização da amônia por meio do processo Haber-Bosch, tornaram possível produzir fertilizantes à base de nitrogênio, preparando a “revolução verde” que ocorreu na década de 1950.

Esses avanços tecnológicos ampliaram a distância entre países ricos e pobres e estiveram presentes na eclosão de duas guerras mundiais que ceifaram dezenas de milhões de vidas, pela letalidade das novas armas.

O desenvolvimento das tecnologias digitais, na segunda metade do século XX, abriu caminho para uma terceira onda de inovações em áreas tão variadas como tecnologias de informação, microeletrônica, biotecnologia, nanotecnologia e robótica, entre outras. A redução dos custos de transpor te e de transação, proporcionada pelas novas tecnologias de informação, nomeadamente a Internet, promoveu uma nova mudança no sistema global de produção, levando à criação das cadeias globais de valor e ao aprofundamento do processo de globalização produtiva.

Tal fenômeno gerou uma nova divisão internacional do trabalho, na qual as atividades intensivas em conhecimento e tecnologia passaram a se localizar cada vez mais nos países ricos, junto às matrizes das grandes empresas multinacionais, pois são as mais lucrativas e requererem mão-de-obra mais qualificada e bem remunerada. Acrescente-se o interesse dessas grandes empresas em manter em suas matrizes o controle sobre a tecnologia e os segredos industriais. Em contrapartida, as atividades intensivas em mão-de-obra, sobretudo a mais barata, assim como aquelas intensivas no uso de matérias-primas e energia, ou mais poluentes, foram deslocadas para os países em desenvolvimento.

Essa nova divisão internacional do trabalho, viabilizada pelas inovações decorrentes da Terceira Revolução Industrial, tem resultados contraditórios. De um lado, ela aprofundou ainda mais uma divisão do trabalho que concentra nos países ricos as atividades geradoras de maior valor agregado e mais in tensivas em conhecimento. De outro, ao viabilizar a integração dos países em desenvolvimento às cadeias globais de valor, permitiu que pela primeira vez a contribuição deles à geração global de riqueza ultrapassasse a dos países ricos.

O país que tirou maior vantagem dessa nova conjuntura foi a China, que se converteu na segunda maior economia e no maior exportador mundial de manufaturas. A Índia também se beneficiou, ocupando um espaço importante na área de tecnologias de informação.

O Brasil e a nova divisão internacional do trabalho

O Brasil, ao contrário da China e da Índia, tem experimentado um processo prematuro de desindustrialização, associado a uma forte tendência de reprimarização da economia. Isso se revela tanto na qualidade dos empregos gerados quanto no conteúdo tecnológico de nossas exportações.

Conforme se observa na Figura 1, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego a geração líquida de empregos no país foi de 10,4 milhões de postos formais de trabalho entre 2003 e 2017. Mas a distribuição desse saldo de empregos por faixas salariais traz uma revelação preocupante: na faixa de 0,5 a 2,0 salários mínimos tivemos um saldo positivo de 17,2 milhões de postos formais de trabalho, mas houve uma perda líquida de 6,9 milhões de postos que pagavam acima de dois salários mínimos. As maiores perdas estão concentradas nas faixas de 2 a 3 salários mínimos (menos 2,6 milhões de vagas) e de 3 a 4 salários mínimos (menos 1,4 milhão de vagas).

Observa-se no Brasil um movimento oposto ao da China. Enquanto o custo médio da mão de obra no coração industrial costeiro daquele país mais do que dobrou em comparação ao setor industrial dos Estados Unidos, passando de cerca de 30% em 2000 para 64% em 2015, no Brasil se estabeleceu a tendência de gerar empregos cada vez mais mal pagos.

Este fenômeno de empobrecimento tecnológico da produção industrial brasileira também aparece quando se leva em conta a evolução de nossas exportações, desagregadas por conteúdo tecnológico. Como se observa na Figura 2, entre 2003 e 2017 a pauta de exportações brasileiras foi cada vez mais dominada por commodities, minerais e agrícolas, e produtos da indústria de transformação de baixa intensidade tecnológica. A participação relativa dos produtos de alta intensidade tecnológica (aeronaves, equipamentos de informática, produtos eletrônicos e ópticos e produtos farmoquímicos e farmacêuticos) encontra-se aproximadamente nos mesmos níveis nos últimos dezesseis anos.

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego, Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Elaboração dos autores.

Fonte: Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Elaboração dos autores.

A Quarta Revolução Industrial: novos desafios para os países em desenvolvimento

O mundo assiste hoje à transição para o que se convencionou chamar de Quarta Revolução Industrial. Avanços nas áreas de inteligência artificial e robótica, neurotecnologias, realidade virtual aumentada, novos materiais e tecnologias de energia prometem transformar radicalmente o modo como produzimos e usamos as coisas. São enormes os benefícios e os riscos potenciais dessas novas tecnologias em todos os campos da atividade humana.

Comparadas com as revoluções industriais anteriores, as tecnologias digitais embutem um risco muito maior de que os vencedores dessa nova corrida tecnológica possam tomar todos os mercados e estabelecer um poder de monopólio. O Google controla quase 90% do mercado global de buscas e propaganda na Internet, o Facebook 77% do tráfego em redes sociais e a Amazon quase 75% do mercado de livros eletrônicos.

A expansão digital da Terceira Revolução Industrial permitiu expandir as cadeias globais de valor e integrar países em desenvolvimento no sistema global de produção. A revolução atual pode ter o efeito inverso. Avanços em robótica, inteligência artificial, novos materiais e impressão em 3D podem tornar irrelevantes as vantagens comparativas que permitiram diversos países, nomeadamente a China, se inserir nas cadeias globais de valor.

Robôs mais sofisticados, operando com inteligência artificial ecada vez mais baratos podem eliminar a necessidade de transferir certas etapas da atividade industrial para países com mão de obra debaixo custo, como aconteceu nas últimas décadas. Podemos assistir ao encolhimento das cadeias globais de valor, levando à exclusão de milhões de trabalhadores e à precarização das condições de vida de centenas de milhões de pessoas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, por exemplo, 94% dos novos empregos criados entre 2005e 2015 foram em “formas alternativas de trabalho”, sem proteção social, direitos trabalhistas ou qualquer tipo de controle significativo por parte dos trabalhadores.

Diante desse quadro, a China vem tomando uma série de medidas com o objetivo de alterar as bases de seu atual modelo econômico. A transição do país para um novo caminho, baseado em inovações tecnológicas, é necessária para continuar seu processo de desenvolvimento. Tendo acelerado seu crescimento nos últimos trinta anos com base no uso de tecnologias maduras, imitação, poucos direitos de propriedade intelectual dos residentes e até violação, em alguns casos, de direitos de propriedade intelectual de estrangeiros, a questão agora é gerar inovações autóctones.

Em 2006, o governo adotou a decisão estratégica de transformara China em um país inovador. Naquele ano, a IV Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia estabeleceu os seguintes pontos:(a) o progresso técnico seria a principal força impulsionadora do desenvolvimento econômico e social;(b) a capacidade independente de inovação seria a principal ligação entre a restauração econômica, a mudança no modelo de crescimento e a melhora da competitividade nacional; (c) a construção de um país inovador seria o principal objetivo estratégico.

Em 2015, o governo lançou uma nova política industrial denominada “Made in China 2025”,cujo principal objetivo é tornar o país independente em tecnologias de ponta e menos dependente da importação de componentes de alto conteúdo tecnológico (em2014, a China gastou mais com a importação de semicondutores do que com a compra de petróleo). O plano é uma combinação de propostas para estimular os objetivos tecnológicos do país. Tendo como modelo o Industrie 4.0 da Alemanha, é um roteiro para desviar o setor industrial de atividades que usam muita mão de obra e fabricam produtos de baixo valor – pelas quais o país é conhecido – para um modelo calcado em tecnologia inteligente, algo duplamente útil, uma vez que os custos de mão de obra estão subindo. Embora o objetivo do projeto “Made in China 2025” seja modernizara indústria em geral, R. Barbosa(2017) diz que “o plano indica dez setores prioritários: nova tecnologia avançada de informação; robótica e máquinas automatizadas; aeroespaço e equipamento aeronáutico; equipamento naval e navios de alta tecnologia; equipamento de transporte ferroviário moderno; veículos e equipamentos elétricos; equipamentos de geração de energia; máquinas agrícolas; novos materiais, biofármacos e produtos médicos avançados”.

Com o plano, a China almeja produzir partes e componentes de alto valor agregado, aumentando para 40% o conteúdo nacional usado nos produtos tecnológicos até o ano de 2020 e chegando a 70% em 2025. As empresas que se beneficiarem desse apoio deverão alcançar uma participação de pelo menos 80% no mercado doméstico em apenas oito anos. A ascensão da indústria de alta tecnologia da China tem sido impulsionada pelo crescimento dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. De acordo com o Battelle Memorial Institute, a China deverá ultrapassar a Europa em termos de gastos em P&D em 2018 e os Estados Unidos em 2022.

Frente a esses novos desafios,não resta ao Brasil outra alternativa senão investir pesadamente em ciência e tecnologia e em pesquisa e desenvolvimento, caso tenhamos a pretensão de desempenhar algum papel no mundo neste século XXI. Na verdade, não se trata de uma opção, pois a alternativa é nos tornarmos irrelevantes. Resta ao Brasil investir pesadamente em ciência e tecnologia e em pesquisa e desenvolvimento.

Nota

1. Caldeira, 2017, p.23

Referências bibliográficas

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Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.
Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Tive oportunidade de conversar sobre privatizações com o prefeito de Munique (Alemanha) nos idos de 2003. Ele disse a mim e a meia dúzia de jornalistas que haviam arrecadado US240 bilhões com a venda de empresas estatais. Na ocasião, o valor era exatamente o que o Brasil obteve com a venda de nossas estatais durante o governo FHC. Só que eles investiram cada centavo em P&D. Enquanto nós financiamos nossa divida pública. São as escolhas que os países costumam fazer.

  2. Investir em ciência e tecnologia e pesquisa e desenvolvimento pode ter um custo inicial alto, mas o retorno pode ser visto em todos os países que seguiram esta linha. Vide Japão, China e India. Por outro lado, estamos envoltos em tantos problemas imediatos que nos levam a postergar estes investimentos.

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