O setor imobiliário da China enfrenta uma crise que vem se arrastando desde 2021, quando grandes incorporadoras imobiliárias, como a Evergrande, ficaram sem fluxo de caixa para pagar suas dívidas e concluir milhares de apartamentos que tinham sido vendidos na planta, muitos deles, pagos adiantado, gerando revolta de compradores que empenharam suas poupanças na aquisição dos imóveis e preocupação nos bancos credores.
O peso do setor imobiliário na economia chinesa, que chegou a representar 12% do PIB, em 2013, deverá, neste ano, cair para pouco mais de 5%, segundo projeções da Hedgepoint Global Markets, afirmou o jornal “O Estado de S. Paulo” (21/5). Conforme informou a matéria, “Os primeiros meses de 2024 continuam a apresentar tendência de baixa para o setor imobiliário, com quedas de mais de 25% nas vendas de imóveis residenciais e investimentos em queda”.
Segundo o Financial Times (21/5/2024), “A Goldman Sachs estimou na semana passada que, com base no custo, a China tem 30 trilhões de yuans em estoque de habitação não vendido, abrangendo terrenos e apartamentos concluídos – o equivalente a 10 vezes o montante vendido no ano passado”. Ainda segundo a Goldman Sachs além do estoque habitacional não vendido, havia de 90 milhões a 100 milhões de unidades de “oferta paralela” na China que eram frequentemente unidades compradas como investimento e não tinham sido habitadas.”
Segundo a revista inglesa The Economist, os apartamentos disponíveis para venda no final de abril valiam cerca de 3,9 trilhões de yuans. Segundo a revista, “Tais propriedades são, em qualquer caso, um problema menor do que o estoque de propriedades inacabadas e pré-vendidas ou a sobra de apartamentos acabados, vendidos, mas desocupados que já existem no mercado. Robert Ciemniak, da Real Estate Foresight, uma empresa de pesquisa, estima que, nos últimos meses, as vendas de casas existentes no mercado secundário excederam as vendas de casas novas pela primeira vez, pelo menos nas nove cidades para as quais existem dados fiáveis.”
Para debelar a crise o governo chinês anunciou, em 17/05, uma série de medidas. Segundo a revista The Economist (23/05), “A política foi anunciada em 17 de maio, após uma videoconferência incomum de He Lifeng, o czar econômico da China. O banco central do país oferecerá empréstimos baratos no valor de até 300 bilhões de yuans (42 bilhões de dólares) a 21 bancos, que por sua vez emprestarão a empresas elegíveis pertencentes a governos municipais. Estas empresas utilizarão o dinheiro para comprar apartamentos acabados, mas não vendidos de promotores imobiliários, incluindo os do setor privado. Os apartamentos podem então ser vendidos ou alugados a preços abaixo do mercado para compradores de baixa renda”.
Ainda segundo a revista “As outras iniciativas incluem medidas para estimular a procura privada, tais como permitir taxas de juro hipotecárias e pagamentos iniciais mais baixos. Houve um novo impulso para que os governos locais recomprassem terrenos ociosos dos incorporadores, com os rendimentos de títulos especiais que anteriormente estavam reservados para outros fins. As autoridades também exortaram os bancos a acelerarem os empréstimos para uma “lista branca” de projetos imobiliários viáveis, mas inacabados. A China deve “travar a dura batalha” para lidar com projetos habitacionais inacabados e “promover tarefas-chave, como…digerir as habitações comerciais existentes”, disse He, numa combinação de metáforas”.
Segundo o Estadão (21/05), “Na sexta-feira passada, o Banco do Povo da China anunciou a remoção dos pisos das taxas hipotecárias para a primeira e a segunda residências e a redução da taxa de adiantamento de hipoteca para um mínimo de 15% para primeiras residências e para um mínimo de 25% para segundas habitações”.
Segundo o Financial Times (05/05) “A China anunciou hoje algumas das suas medidas mais fortes até agora para relançar o seu setor imobiliário endividado, que tem estado no centro das preocupações sobre a força da segunda maior economia do mundo. O governo local terá permissão para comprar alguns projetos residenciais e transformá-los em moradias públicas para ajudar a estabelecer um piso para a queda dos preços, bem como comprar terrenos de incorporadores em dificuldades. Entretanto, o banco central da China, que anuncia a sua próxima decisão sobre as taxas de juro na segunda-feira, flexibilizou os requisitos de empréstimo para quem compra uma casa pela primeira vez.”
Alguns aspectos dessas medidas merecem uma reflexão mais atenta. O primeiro é que o conjunto de medidas adotadas se orientam por princípios de mercado. Conforme observou o Financial Times (21/5), “foram evidentes em todas as medidas que Pequim tomou durante a crise imobiliária e, em última análise, significaram que a abordagem “tem de ser lucrativa ou, pelo menos, não tem de ser deficitária para qualquer entidade governamental que esteja a estender o apoio”. Ainda segundo o jornal “Analistas do Morgan Stanley disseram que as novas medidas “alcançam um bom equilíbrio entre fornecer alguma proteção e, ao mesmo tempo, permitir que o ciclo imobiliário siga seu curso sem aumentar os riscos para empresas estatais locais e bancos”. Ainda de acordo com a matéria “Isto não é como a grande crise financeira [de 2008] em que o FED sai para comprar todos os ativos problemáticos das instituições financeiras”, disse Leonard Law, analista de crédito sénior da Lucror Analytics em Singapura. “O que a China está tentando fazer é muito mais direcionado”, porque “ainda tem de combater o risco moral e ter cuidado para não inflar novamente a bolha”.
Para Richard Koo, economista-chefe da Nomura Research Institute, de Tóquio, “Se o governo chinês usar o dinheiro para concluir apartamentos inacabados, isso permitirá que o dinheiro comece a circular mais rapidamente na economia. Depois, você traz as melhores e mais brilhantes pessoas da China para criar novos projetos que possam gerar uma taxa de retorno social superior a 2,4%. E por que 2,4%? Porque o rendimento dos títulos do governo de 10 anos na China é de 2,4%. Portanto, se o projeto render mais do que isso, será financeiramente autossustentável para pagar os juros e não se tornará um fardo para os contribuintes no futuro. E uma das principais características de uma recessão nos balanços é que, com a desalavancagem do setor privado, o rendimento das obrigações governamentais desce para níveis impensáveis em tempos normais. Então, por enquanto, complete todas as casas inacabadas. Enquanto isso, prepare-se para que projetos financeiramente viáveis e prontos para uso sejam lançados em cerca de um ano. Entregar casas a estes compradores também aumentará a confiança. Muitos deles colocaram todas as suas economias como entrada.” (SCMP, 20/05)
O segundo aspecto, ainda mais relevante, é o caráter redistributivo das medidas tomadas. Como observou Antônio Martins, do site Outras Palavras, “No Ocidente, a Grande Recessão iniciada em 2008 a partir do setor imobiliário devastou o Estado de bem-estar social, multiplicou a riqueza dos rentistas e tornou ainda mais penosa a luta por um teto. Na Espanha, por exemplo, os aluguéis passaram a consumir em média 40% dos salários da população mais jovem e em consequência 64% dos adultos com até 35 anos são constrangidos a continuar vivendo com seus pais (eram 36%, antes da crise). Mas para enfrentar sua própria bolha imobiliária – que levou, em janeiro, à falência da Evergrande, uma gigante que acumulara 300 bilhões de dólares em dívidas –, o governo chinês está tecendo uma saída distinta.”
Muito antes do anúncio do dia 17 de maio, o governo disse que iria aumentar a habitação social como parte de um impulso mais amplo por políticas redistributivas. No âmbito do seu 14.º plano quinquenal, anunciado em 2020, Pequim comprometeu-se a fornecer 6,5 milhões de casas de aluguer subsidiadas pelo governo em 40 cidades. De acordo com a velha máxima chinesa de que as crises representam também oportunidades, o governo chinês percebeu que poderia “matar dois coelhos com uma cajadada só”, redirecionando esse enorme estoque de imóveis desocupados para atender um importante objetivo social.