Ao enfraquecer o Estado, Trump compromete o futuro dos Estados Unidos

    (Foto: globo.com.br)

    No livro “O Estado Empreendedor. Desmascarando o mito do setor público vs. Setor privado”, a economista italiana Mariana Mazzucato afirma que apesar de ser percebido como lento, burocrático e pouco ousado, o Estado teve e continua tendo um papel fundamental e estratégico no desenvolvimento de grandes avanços tecnológicos. Segundo ela, diferentemente do que prega o senso comum, o investimento privado costuma relutar na hora de apostar em tecnologias novas e arriscadas e pesquisas científicas sem retorno de curto prazo, cabendo ao Estado este papel. Do desenvolvimento da aviação, energia nuclear, computadores, internet, biotecnologia até a tecnologia verde atual, foi o Estado – e não o setor privado – quem deu o pontapé inicial e construiu  o motor do crescimento devido à sua disposição de assumir riscos em áreas onde o setor privado se mostrou avesso ao riscos[1].

    A economia dos Estados Unidos depende de Inovação e ela depende do Estado de Direito e outras instituições. Se essas instituições são danificadas, isso prejudicará a vitalidade da economia. Se, como afirma Mazzucato, o investimento governamental, paciente e de longo prazo, é um pré-requisito indispensável para a inovação de impacto, Trump pode estar condenando os Estados Unidos a uma estagnação de longo prazo, difícil de ser revertida, sobretudo em um momento em que a China faz exatamente o oposto, colocando todo o peso do Estado e do enorme aparato burocrático chinês a serviço da inovação nos setores tecnológicos de ponta.

    No mesmo dia em que na abertura da terceira sessão do 14º Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), realizada em Pequim, no dia 06/03/2025, o Presidente Xi Jinping enfatizou a necessidade de fortalecer o papel da educação no apoio ao avanço científico e tecnológico, bem como ao desenvolvimento de talentos e a importância de desenvolver um sistema educacional de alta qualidade que atenda às expectativas do povo[2], o jornais noticiaram que o presidente Trump está se preparando para assinar uma ordem que instruiria a secretária de Educação, Linda McMahon, empresária de 76 anos, que já foi diretora-executiva da liga de luta livre WWE, a começar a desmantelar sua agência[3].

    Como afirma a economista Carlota Perez, conhecida autora na área de economia da inovação,  o financiamento privado ficou muito imediatista e cada vez mais dependente dos laboratórios governamentais que se envolvem com parcelas de alto risco na cadeia de inovação antes de comprometer recursos próprios. Segundo ela, a incerteza de mercado é inevitável no contexto da inovação, mas a incerteza política é fatal. O sucesso é alcançado por aqueles países que conseguiram chegar a um forte consenso nacional por meio dos altos e baixos da economia. 

    As medidas que estão sendo tomadas pelo governo Trump, por meio do  DOGE (Departamento de Eficiência Governamental), sob a liderança de Elon Musk, visando reduzir o governo, cortar gastos e substituir ‘a força de trabalho humana por máquinas’, além de seu impacto imediato sobre o emprego, podem privar o Estado norte-americano de seus melhores quadros, reduzindo-o a uma burocracia passiva, desmoralizada e dócil aos desejos do presidente, sem compromisso com o desenvolvimento do país. Segundo matéria do Washington Post (O Estado de São Paulo, 08/02/2025), “O objetivo é um governo diminuído que exerce menos supervisão sobre negócios privados, entrega menos serviços e compreende uma menor parcela da economia dos EUA — mas é muito mais responsivo às ordens do presidente.”

    Ainda segundo a matéria, “A defenestração da força de trabalho federal poderia abrir caminho para Trump e Musk cancelarem gastos federais ou eliminarem agências inteiras sem a aprovação do Congresso, uma expansão sem precedentes do poder executivo”. O problema é que ao fazer isso sem critérios, motivados apenas por um profundo desprezo ao Estado e às suas instituições regulatórias independentes e pelo desejo de vingança em relação a todos aqueles que na sua opinião eram fiéis ao governo anterior, Trump pode estar privando o Estado norte-americano de quadros experientes que farão falta no futuro quando esse mesmo Estado for chamado a responder a novas emergências que inevitavelmente virão, como novas pandemias, desastres naturais, crises econômicas e outros eventos aos quais  cabe em primeiro lugar ao Estado responder.

    Exemplo disso foi o caso relatado pela revista Time (16/02/2025), no qual o governo se viu  obrigado a readmitir 350 trabalhadores em armas nucleares que haviam sido demitidos pelo DOGE de Elon Musk. Conforme afirmou a revista, “O governo Trump suspendeu as demissões de centenas de funcionários federais encarregados de trabalhar nos programas de armas nucleares do país, em uma reviravolta que deixou os trabalhadores confusos e especialistas alertando que os cortes cegos de custos do DOGE colocarão as comunidades em risco. Três autoridades dos EUA que falaram com a The Associated Press disseram que até 350 funcionários da Administração Nacional de Segurança Nuclear foram abruptamente demitidos na quinta-feira à noite, com alguns perdendo o acesso ao e-mail antes de saberem que foram demitidos, apenas para tentar entrar em seus escritórios na manhã de sexta-feira e descobrir que estavam trancados do lado de fora. As autoridades falaram sob condição de anonimato por medo de retaliação. Um dos escritórios mais atingidos foi a Pantex Plant perto de Amarillo, Texas, que viu cerca de 30% dos cortes. Esses funcionários trabalham na remontagem de ogivas, um dos trabalhos mais sensíveis em todo o empreendimento de armas nucleares, com os mais altos níveis de autorização. As centenas de demissões na NNSA foram parte de um expurgo do DOGE no Departamento de Energia que teve como alvo cerca de 2.000 funcionários”.

    Esse é apenas um dos inúmeros exemplos das barbaridades que o governo Trump está fazendo contra o Estado que ele vê como inimigo e empecilho para levar à frente seu capitalismo de compadres. Conforme noticiou a Folha de S. Paulo (23/2/2025), a força de trabalho da Agência Espacial Norte Americana (NASA)  foi submetida a um programa de demissão voluntária que já  teve a adesão de pelo menos 750 funcionários, entre eles Jim Free, funcionário de carreira que estava na linha de sucessão para ser  administrador interino após a troca de governo, mas foi preterido pela Casa Branca em favor de Janet Petro. Ainda segundo a matéria, “um consenso vai se formando do que Trump, guiado por Musk, pode fazer com a agência espacial – em essência, jogar fora décadas de  trabalho e parcerias internacionais, entrando numa aposta de “tudo ou nada” para a conquista de Marte. É mera coincidência que  Musk desenvolve na SpaceX seu veículo Starship justamente para missões marcianas, não? Há fortes rumores de que a gestão tentará cancelar o programa Artemis, ou no mínimo reformá-lo, eliminando as cápsulas Orion (feitas em parceria com europeus) e o [foguete] SLS (para levar humanos de volta à Lua). Para fechar a conta, na quinta-feira (20), Musk foi às redes sociais falar que a Nasa deveria derrubar a Estação Espacial Internacional (ISS) “o mais rápido possível”, sugerindo um horizonte e dois anos para isso. Tudo para concentrar esforços e recursos na ida a Marte (vulgo, na empresa dele)”.

    Oren Cass, em artigo para o site UnHerd (24/2), afirma que “para reduzir o número de funcionários, o DOGE está demitindo praticamente qualquer pessoa com status “provisório” – normalmente contratações mais recentes que, portanto, são mais fáceis de demitir – o que é o oposto de uma abordagem eficiente. Isso incluirá a maioria dos funcionários contratados com experiência em inteligência artificial e aqueles que trabalham para reconstruir a capacidade doméstica de fabricação de semicondutores. A Casa Branca acaba de anunciar que está cancelando o Programa de Bolsistas de Gestão Presidencial, que é projetado especificamente como um canal para o tipo de talento de alta qualidade que um governo mais eficiente deve querer atrair”.

    O objetivo de Trump, aparentemente, é substituir o chamado “Estado Burocrático Weberiano” que caracterizou as repúblicas modernas desde o início do século 20, pelo “Estado Patrimonialista”, no qual não há distinções claras entre os limites do público e os limites do privado. Ideias como se apropriar da Faixa de Gaza, para desenvolver um empreendimento imobiliário, ou desmontar a NASA para favorecer a Space X de Elon Musk se enquadram nessa visão.

    Em matéria publicada no Estadão (01/3/2024), Daron Acemoglu, professor do MIT e prêmio Nobel de 2024, diz que políticas do atual governo estão minando a vitalidade da economia dos EUA e vão afetar a capacidade de inovação do país. Segundo Acemoglu, “As empresas favorecidas pelo presidente (Donald Trump) recebem tratamentos e contratos especiais, regulação muito mais leve e apoio do governo. E aqueles que criticam ou lançam uma luz nesta corrupção são processados por um agressivo Departamento de Justiça ou o FBI, o que torna a economia americana essencialmente em um capitalismo de compadres.”

    Ainda segundo o professor do M.I.T, “Alguns países podem viver com capitalismo de compadres por um longo tempo, mas se você depende de inovação, tudo isto rapidamente será destruído por este tipo de capitalismo de compadres.”  “O potencial de inovação seria sugado e, além disso, as valuations nos mercados de ações ficarão muito distorcidas.”

    Em recente artigo no Financial Times (08/2/02025), Acemoglu apontou que em 2030 pode ocorrer um crash do mercado de ações nos EUA, envolvendo as grandes empresas de tecnologia, e a economia do país pode ter um baixo ritmo de crescimento, inferior ao da Europa. No mencionado artigo, escrito em um cenário futurístico, o prêmio Nobel afirma que “Mas a verdadeira extensão dos danos ficou clara apenas com o colapso tecnológico de 2030. Economistas e historiadores já mostraram que muito disso foi resultado de falhas institucionais e crescente concentração na indústria. Depois que Trump levantou todos os obstáculos antes da aceleração da IA e da especulação de criptomoedas, houve inicialmente um boom no setor de tecnologia. Mas em poucos anos a indústria tornou-se ainda mais consolidada do que antes, e tanto os internos quanto os externos perceberam que apenas as empresas favorecidas pelo governo poderiam sobreviver. Operadores gigantescos começaram a esmagar rivais, primeiro usando seu poder financeiro, depois atraindo trabalhadores e inovadores dos concorrentes (que curiosamente pararam de produzir patentes valiosas depois de se juntarem a essas megaempresas) e, finalmente, roubando sua propriedade intelectual. A essa altura, os tribunais dos EUA haviam perdido a maior parte de sua objetividade e, como as megaempresas eram amigas e aliadas do governo, elas se beneficiaram de decisões favoráveis, mesmo quando estavam roubando descaradamente de concorrentes menores e se engajando em preços predatórios e execução hipotecária vertical para expulsá-los do mercado.”

    Engana-se, contudo, quem imagine que no governo Trump reine a harmonia quanto aos métodos e objetivos a perseguir.  Uma das figuras mais importantes do pensamento conservador norte-americano, Steve Bannon, que apesar de estar fora do governo, ainda é um firme aliado de Trump que tem no topo de sua agenda a defesa de um terceiro mandato para o atual presidente, afirmou para James Billot no site UnHerd (18/2/2025) que “Musk é um imigrante ilegal parasita. Ele quer impor seus experimentos malucos e fingir ser Deus sem nenhum respeito pela história, valores ou tradições do país.”  Para Bannon, Musk é um “agente de influência chinesa”, um problema “não apenas para o movimento MAGA, mas um problema para o país”. Ainda segundo Bannon “Musk e o que ele representa devem “ser interrompidos. Se não pararmos … Agora, vai destruir não apenas este país, vai destruir o mundo.”

    Segundo Billot, “[Bannon], O arquiteto de três camisas do populismo trumpiano da velha escola, brevemente um conselheiro da Casa Branca durante o primeiro mandato de Donald Trump, surgiu como o contraponto a Elon Musk, cuja agenda ultraliberal passou a dominar o segundo mandato do presidente. Para Bannon, o bilionário dono do X é mais forte e, talvez, mais perigoso do que qualquer figura da esquerda. “Musk é quem tem poder no momento”, ele diz. “Os democratas não estão em lugar nenhum.” Em menos de um mês na presidência de Trump, Musk se estabeleceu como uma figura central na Casa Branca. Ele dá entrevistas coletivas no Salão Oval com seu filho de quatro anos; recebe líderes estrangeiros em reuniões que lembram muito as bilaterais de chefes de estado; tem acesso a praticamente todos os departamentos federais; e, o mais importante, tem a atenção do presidente.”

    Aparentemente, existe no governo Trump, ou pelo menos nas fileiras conservadoras que o apoiam, uma disputa de poder entre a ala tecnocrata arrebanhada por Elon Musk no Vale do Silício e a ala conservadora mais tradicional que tem em Steve Bannon, mesmo fora do governo, sua figura de proa. Segundo Billot,  “Tudo isso quer dizer que Bannon pode causar problemas se quiser. E ao fazer de Musk um inimigo, o que pode parecer uma briga entre dois homens egoístas pode se transformar em guerra aberta. Porque no cerne desse conflito está uma batalha sobre a direção filosófica da presidência de Trump e, por extensão, do país. O fato de Vance ter sentido a necessidade de abordar essa “guerra civil” entre os “populistas e os técnicos” — que ele disse ser exagerada — mostra, no entanto, que a tensão nessa coalizão não é irrelevante.”

    Dani Rodrik, em ensaio publicado no site Project Syndicate[4], ao analisar esse conflito dentro do governo Trump entre tecnoglobalistas e nacionalistas econômicos, afirma: “As linhas de conflito mais nítidas são entre os nacionalistas econômicos e a tecno-direita. Ambos os campos se veem como antissistema e querem interromper um regime que sentem ter sido imposto a eles pelas elites do Partido Democrata. Mas eles incorporam visões muito diferentes da América e para onde ela deveria estar indo. Os nacionalistas econômicos querem retornar a um passado mítico marcado pela glória industrial americana, enquanto o campo da tecnologia prevê um futuro utópico administrado por IA. Um é populista, o outro elitista. Um tem fé na sabedoria e no bom senso das pessoas comuns, o outro apenas na tecnologia. Um quer impedir a imigração em todos os setores, o outro dá as boas-vindas aos recém-chegados qualificados. Um é paroquial, o outro essencialmente globalista. Um quer dividir o Vale do Silício, o outro fortalecê-lo. Um acredita em socar os ricos e o outro em paparicá-los. Os nacionalistas-populistas afirmam falar pelas pessoas que a revolução tecnológica imaginada por Musk deixaria para trás. Portanto, não é surpreendente que eles tenham profundo desprezo pelos “tecnofeudais” do Vale do Silício”.

    Para Bannon, o fato de Trump estar colocando figuras importantes do conservadorismo norte-americano, como Neil Ferguson na Federal Trade Commission (FTC), Gail Slater na antitruste e Mike Davis no conselho da Casa Branca, é um recado para os manos da tecnologia, dizendo: ‘Vocês não me possuem’, ‘Não vou comprar suas coisas tecnolibertárias’. Isso foi um grande foda-se para os broligarcas.” Bannon pode estar enganado, pois até agora Trump parece bem satisfeito em dividir o palco com Musk.

    As raízes desse ódio e desconfiança mútua entre os conservadores tradicionais, como Steve Bannon, e os tecnoglobalistas  de direita do Vale do Silício sob o comando de Elon Musk podem ser encontradas nas denúncias que a direita americana e mundial vem fazendo há décadas contra um suposto “governo mundial” que estaria sendo implantado pelos bilionários das BigTechs e dos grandes fundos de investimento de Wall Street sedentos de poder, passando por cima dos interesses nacionais dos estados nacionais. Seria irônico que esse “governo mundial” sob o comando das BigTechs se tornasse realidade exatamente com o apoio entusiasta dos eleitores de direita e do seu principal líder. 


    [1] Mazzucato, Mariana. O Estado Empreendedor. Desmascarando o mito do setor privado vs. o setor público. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014

    [2] https://www.globaltimes.cn/page/202503/1329658.shtml

    [3] https://www.nytimes.com/2025/03/06/us/politics/trump-education-department-executive-order.html

    [4]https://www.project-syndicate.org/commentary/trump-enablers-nationalists-tech-elites-have-conflicting-goals-by-dani-rodrik-2025-02

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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