Acordo Estados Unidos – Austrália e os limites da estratégica anti-China dos Estados Unidos

    Jogadores de Cartas - Paul Cézanne (França, 1839 - 1906).

    Logo que tomou posse, o presidente Joe Biden anunciou solenemente que os “Estados Unidos estavam de volta” em alusão a um suposto giro de 180º que o novo presidente americano estava dando na política externa isolacionista de seu antecessor na Casa Branca. Toda a conversa passou a girar em torno de atrair o apoio dos aliados europeus dos Estados Unidos para sua cruzada anti-China. Mas para não parecer que era uma causa mesquinha, motivada apenas pelo desejo norte-americano de manter sua hegemonia global, tratou-se de dar à empreitada um objetivo mais nobre: a defesa do mundo livre contra “autocracias totalitárias”. Afinal, para juntar apoios contra a China era preciso apresentá-la como inimiga do mundo livre e não dos Estados Unidos.

    No começo até funcionou. Biden conseguiu arrancar, na reunião do G7, uma declaração contra a China e, em seguida, conseguiu o mesmo com a União Europeia na reunião da Otan. A bem da verdade não foram declarações muito entusiasmadas e muitos países, inclusive os mais fiéis aliados dos Estados Unidos, como o Reino Unido, fizeram, depois, tantos reparos que fez parecer que o sim estava mais para um não. Mas não deixou de ser uma vitória importante do presidente norte-americano, pois, em política, a foto sempre conta muito.

    A questão é que esta nova aliança nem mesmo se consolidou e já está indo para os ares. O motivo é aquele que faz racharem até as famílias mais unidas: dinheiro. No ano passado a França tinha fechado um acordo milionário com a Austrália para a construção de uma frota de submarinos convencionais. O acordo foi apresentado como o negócio do século dos franceses e envolvia valores na casa dos A$ 92 bilhões. Mas os Estados Unidos atravessaram o negócio da França e firmaram um novo contrato com os australianos, envolvendo também o Reino Unido, para construir uma frota de oito submarinos nucleares. O acordo com a França foi cancelado.

    Os franceses sentiram-se, como afirmou o presidente Macron, apunhalados pelas costas e ensaiaram uma reação dura, chamando de volta seus embaixadores em Washington e Camberra, coisa que antigamente só se fazia como último recurso antes da guerra. Mas logo se deram conta de que pouco podiam fazer a não ser dar a outra face diante da bofetada americana.

    Isso não quer disser, contudo, que as coisas vão ficar por isso mesmo. Como o comissário da União Europeia para os mercados internos Thierry Breton afirmou para o Financial Times (21/09/2021), “Há, é claro, na Europa um sentimento crescente de que algo está quebrado em nossas relações transatlânticas”.

    Esse episódio é importante não só pelos efeitos que pode ter na aliança entre os Estados Unidos e União Europeia contra a China, mas também porque muda qualitativamente o jogo no Leste da Ásia, elevando a disputa entre Estados Unidos e China no Mar do Sul da China para outro patamar e, da mesma forma, a já tensa relação entre China e Austrália.

    Ao abrigar uma frota de submarinos com propulsão nuclear que, na verdade, não passará de um subconjunto da Marinha dos Estados Unidos, já que a Austrália não tem uma indústria nuclear civil, como admitiu o ex-primeiro ministro australiano Kevin Rudd, discursando em um webinar organizado pelo Centro de Política Energética Global (CGEP, na sigla inglesa) da Universidade de Columbia, os australianos também se colocam como alvo dos chineses em algum improvável, mas possível conflito nuclear entre Estados Unidos e China.

    Como afirmou o jornal chinês Global Times, “isso tornaria a Austrália um alvo potencial para um ataque nuclear, porque estados com armas nucleares como a China e a Rússia estão enfrentando diretamente a ameaça dos submarinos nucleares da Austrália, que atendem às demandas estratégicas dos Estados Unidos. Pequim e Moscou não tratarão Canberra como “uma potência não nuclear inocente”, mas como “uma aliada dos EUA que poderia estar armada com armas nucleares a qualquer momento”.

    E isso a troco de nada, pois até agora a Austrália não ganhou nada, aliás só perdeu, ao colocar-se como peão dos Estados Unidos no complicado tabuleiro regional do chamado Indo-Pacífico. Melhor faria se agisse como Singapura que, apesar dos fortes laços com os Estados Unidos, recusa-se terminantemente a tomar partido na disputa americana com a China, pois como disse um diplomata daquele país, “claro, em nossos corações apoiamos os Estados Unidos. Mas para o bem de nossos bolsos e nossos estômagos, nós devemos ter cuidado sobre como tratamos a China”.

    Desde que o ex-presidente Obama anunciou o pivô para a Ásia, os Estados Unidos vêm procurando costurar uma ampla aliança política e militar na região para fazer frente à ascensão da China.  A formação do chamado Quad, reunindo Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia, e a própria criação do conceito Indo-Pacífico foram passos dados nessa direção. Mas o Quad não pode ser considerado uma aliança militar no sentido clássico, apesar de alguns exercícios navais conjuntos no Mar do Sul da China e imediações, mesmo porque a Índia não é propriamente uma aliada dos Estados Unidos e nem estes confiam totalmente nela.

    Mas ao prover os australianos com uma frota de submarinos nucleares, a coisa começa a mudar de figura, pois isso representa uma ameaça direta à China. Como se sabe, num eventual confronto militar entre Estados Unidos e China as bases fixas de mísseis ou mesmo porta-aviões não seriam de muita serventia por serem alvos fáceis. A estratégia dos Estados Unidos na região é espalhar misseis por lugares menos visados e com possibilidade de um ataque rápido contra o território chinês. Para isso, os submarinos nucleares são essenciais, pois podem se aproximar furtivamente da costa chinesa, sobretudo se se considera que apesar dos avanços militares da China, a área mais deficiente de seu sistema de defesa, segundo os especialistas americanos, é a de detecção de submarinos inimigos, sobretudo os nucleares que se deslocam rapidamente sem fazer barulho. É óbvio que com esse movimento dos Estados Unidos e da Austrália os chineses serão obrigados a investir pesado nesse setor, aumentando sua capacidade defensiva sob o mar.

    Mas ao dar um passa-moleque na França, os Estados Unidos também evidenciam os limites de sua estratégia em relação à China. Mesmo tendo vendido sua alma ao diabo quando se colocou sob o guarda-chuva norte-americano da Otan, ao final da Segunda Guerra, a União Europeia sabe que seus interesses econômicos não são os mesmos dos Estados Unidos e que ela não tem absolutamente nada a ganhar em associar-se com os americanos nesse confronto com a China, mesmo porque para muitos europeus, sobretudo a Polônia e os países do Báltico, a Rússia representa um perigo existencial muito mais próximo que a China. Quando os europeus olham para o leste, não são os chineses que eles veem espreitando dos longínquos Urais, mas os russos, ali mesmo nas suas barbas.

    Como lembrou o WSJ em matéria de 23/09/2021, “Os maiores países da União Europeia querem abrir um caminho intermediário entre a China e os EUA. O anúncio surpresa da semana passada de um novo pacto de defesa entre os EUA, o Reino Unido e a Austrália, junto com o cancelamento de um acordo multibilionário de um submarino francês com Canberra, mostram como isso será difícil. Os países da UE geralmente consideram os EUA seu aliado mais próximo, mas não compartilham de todas as suas preocupações e prioridades em relação à China. O bloco tem laços econômicos profundos com a China, tanto como mercado de exportação quanto como fornecedor. As potências europeias, lideradas pela Alemanha e pela França, têm procurado equilibrar suas preocupações sobre a crescente assertividade de Pequim com engajamento político. Mas, em uma repetição das tensões que turvaram a aliança transatlântica sob o presidente Donald Trump, os governos europeus estão se vendo forçados a escolher entre sua aliança de décadas com os Estados Unidos e uma China que se tornou o maior parceiro comercial da UE em bens. “Nossa estratégia não é uma estratégia de confronto. É uma estratégia de cooperação”, disse o chefe de política externa da UE, Josep Borrell, na semana passada, quando o bloco articulou uma nova abordagem para a região Indo-Pacífico, incluindo a China”.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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    1 COMENTÁRIO

    1. Relações Internacionais representam um tema do interesse do conjunto de todos os povos, com ou sem estado constituído. A teia de interesses presente no noticiário impede ao homem comum posicionar-se de modo autônomo. Por isso é necessário buscar o q nos interessa, e para isso ver exige algo mais q o senso comum.

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