Desde a implantação da República Popular da China, em 1949, o governo chinês luta para reunificar seu território e trazer de volta para a nação chinesa aqueles territórios que, no passado, foram separados da pátria-mãe. Com a recuperação da soberania sobre Hong Kong em 1997, após 155 anos de domínio inglês, e sobre Macau, depois de quatrocentos anos de colonização portuguesa, resta, ainda, a questão de Taiwan.
Por mais de dois mil anos, Taiwan tem sido parte da China, mesmo tendo passado alguns períodos sob a ocupação de potências estrangeiras. No século XVI, os portugueses ocuparam ilha e a nomearam “Formosa”. Depois de passar por um curto período de domínio dos espanhóis foi parcialmente colonizada pelos holandeses, no século XVII, antes de ser reocupada pelo império chinês no final da dinastia Ming.
O guerreiro Zheng Chengong, que expulsou os holandeses em 1662 e passou para a história do Ocidente com o nome de Coxinga, é ainda hoje reverenciado na China como um herói nacional, conforme tive oportunidade de observar em visita a Xiamen, a província chinesa no lado continental do estreito de Taiwan.
Por ocasião da Primeira Guerra Sino-Japonesa, em 1895, Taiwan foi ocupada pelo Japão. Após a derrota japonesa ao final da Segunda Guerra Mundial, Taiwan retornou ao controle da China. Em maio de 1950, após a derrota dos forças do Guomindang, na guerra civil que levou à criação da República Popular da China, as forças nacionalistas do general Chiang Kai-shek refugiaram-se na ilha onde estabeleceram o governo da República da China.
A República da China foi membro pleno das Nações Unidas e um dos cinco Membros Permanentes de seu Conselho de Segurança de 1945 a 1971, tendo sido um dos membros fundadores e o primeiro país a assinar a Carta das Nações Unidas em agosto de 1945. Em 1971, a República Popular da China foi admitida nas Nações Unidas em substituição à República da China, com sede em Taiwan, como a legitima representante do povo chinês e os representantes de representantes de Chiang Kai-shek foram expulsos da organização.
Do ponto de vista da história e do direito internacional não há, portanto, qualquer dúvida de que Taiwan seja parte inalienável da República Popular da China. Apesar disso, Taiwan permanece formalmente separada da China, graças, sobretudo, ao apoio militar dos Estados Unidos. Enquanto não for reintegrada à nação chinesa, as relações entre os dois lados do estreito continuarão uma chaga aberta na história da China, que continuará sendo um país dividido.
De longe, a questão de Taiwan tem sido o ponto mais sensível nas relações sino-americanas desde a fundação da República Popular da China, e com maior potencial de gerar conflitos graves entre os dois países. John Foster Dulles (1888-1959), como conselheiro do presidente Harry Truman, ajudou a desenhar um plano para tirar vantagem da Guerra da Coreia e tomar Taiwan da China pelo uso da força.
Em 1954, ele foi fundamental para a assinatura do Tratado de Defesa Conjunta Estados Unidos-Taiwan, que era uma tentativa de legitimar a ocupação americana e fazer de Taiwan uma base militar americana permanente. Quando, em 1º de janeiro de 1979, no final do governo Carter, as relações bilaterais foram oficialmente reatadas, os Estados Unidos anunciaram que estavam cortando as relações diplomáticas com Taiwan, denunciando o Tratado de Defesa Conjunta Estados Unidos-Taiwan e retirando as tropas americanas da ilha.
Mas em março do mesmo ano, o Congresso americano aprovou o Ato das Relações com Taiwan, que entrou em vigor em 10 de abril de 1979. O ato declarava que a decisão dos Estados Unidos de restabelecer relações com a República Popular da China repousava na expectativa de que o futuro de Taiwan seria determinado por meios pacíficos. E, ainda, que os Estados Unidos iriam considerar qualquer tentativa de determinar o futuro de Taiwan por outros meios uma ameaça para a paz e a segurança da área do Pacífico Ocidental e grande preocupação para os americanos, que iriam “prover Taiwan com armas de caráter defensivo” e “manter a capacidade dos Estados Unidos de resistir a qualquer recurso à força ou outras formas de coerção que pudessem ameaçar a segurança, o sistema econômico e social do povo de Taiwan”.
Os termos do Ato tratam Taiwan como um “país”, violando, portanto, tanto a decisão da ONU quanto aos princípios acordados entre os Estados Unidos e a China por ocasião do reatamento das relações diplomáticas. As relações de Washington com a ilha até hoje são balizadas pelo “Ato das Relações com Taiwan”. Em entrevista ao jornalista americano Mike Wallace, da rede americana CBS TV, em setembro de 1986, Deng Xiaoping afirmou:
Há três obstáculos nas relações sino-soviéticas, e um obstáculo nas relações sino-americanas. É a questão de Taiwan, ou da reunificação dos dois lados do Estreito de Taiwan. Nos Estados Unidos, as pessoas dizem que o governo americano toma a posição de “não envolvimento” na questão de reunificação da China, ou seja, a questão de Taiwan. Isso não é verdade. O fato é que os Estados Unidos têm estado envolvidos o tempo todo. Nos anos 1950, MacArthur e Dulles viam Taiwan como um porta-aviões americano não afundável na Ásia e no Pacífico. A questão de Taiwan era, portanto, o ponto mais importante nas negociações para o estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos.
As relações entre Estados Unidos e China no que diz respeito a Taiwan, estão balizadas, até hoje, pelo “Comunicado de Xangai”, de 1972, segundo o qual “os Estados Unidos reconhecem que todos os chineses em ambos os lados do Estreito de Taiwan afirmam que existe apenas uma China e que Taiwan é parte da China” e por outros dois comunicados, de 1979 e 1982. As relações sino-americanas são sustentadas por esses três comunicados conjuntos. De acordo com os comunicados de 1982, o governo dos Estados Unidos “afirma que não pretende levar a cabo uma política de longo prazo de venda de armas a Taiwan … e que pretende reduzir gradualmente a sua venda de armas a Taiwan”. As relações de Washington com a ilha, por sua vez, são orientadas pelo “Ato das Relações com Taiwan”, de 1979, e as relações entre a China continental e Taiwan, são balizadas pelo chamado “Consenso de 1992”, pelo qual os dois lados igualmente reconhecem que há uma só China.
Apesar da maior complexidade que a agenda de discussões entre a China e os Estados Unidos foi ganhando com o passar do tempo, a qual hoje envolve inúmeras questões de importância global como comércio e finanças internacionais, mudanças climáticas, segurança energética e alimentar, e terrorismo, dentre outros pontos, a questão de Taiwan continua a ser o ponto mais sensível e complicado nas relação bilateral entre a China e os Estados Unidos.
A China, por seu lado, não tem poupado esforços para promover a reunificação pacífica de Taiwan, com base no princípio de “uma só China”. Conforme informou o Diário do Povo Online em 18/03/2022:
“Entre o final de outubro e o início de dezembro de 1992, a Associação para as Relações entre os dois lados do Estreito de Taiwan (Association for Relations Across the Taiwan Straits em inglês), uma organização civil da parte continental da China, e a Fundação para os Intercâmbios através do Estreito de Taiwan (Straits Exchange Foundation em inglês), uma organização civil de Taiwan, realizaram várias negociações e chegaram ao consenso verbalmente expresso de que “ambos os lados do Estreito persistem no princípio de uma só China”, assentando a base política para realizar e promover as negociações entre os dois lados do Estreito, consenso posteriormente conhecido como “consenso de 1992”. Tendo como núcleo “persistir no princípio de uma só China”, o consenso tem como essência buscar pontos comuns e respeitar as divergências”
O adensamento das relações econômicas entre os dois lados do estreito tem facilitado esse processo de aproximação, e trazido à cena outros atores, além dos governamentais, interessados na normalização das relações. Se, de um lado, isso torna o jogo mais complexo, por outro engrossa a fileira dos que advogam uma solução pacífica para a questão. Também contribui para um solução pacífica a postura do Partido Nacionalista Chinês (Guomindang), que concorda com o princípio de “uma só China”, também conhecido como “Consenso de 1992”, e se opõe à independência de Taiwan.
Enquanto o Partido Nacionalista Chinês (Guomindang) esteve no governo da ilha, os dois lados construíram mecanismos de consulta, entre eles a “Associação para Relações através do Estreito de Taiwan” e a “Fundação de Intercâmbio do Estreito”. As duas organizações quebraram o bloqueio estabelecido desde 1999, retomaram as consultas com base no Consenso de 1992, e assinaram dezesseis acordos de cooperação cobrindo transportes, comércio e cooperação econômica, contatos interpessoais, segurança alimentar, assistência legal mútua, agricultura e pesca, e segurança em energia nuclear, formando e implementando encontros alternados de cada lado. Além disso, o “Fórum de Economia, Comércio e Cultura através do Estreito” tornou-se uma importante iniciativa para promover o intercâmbio entre o Partido Nacional da China e o Partido Comunista da China.
Em abril de 2009 foi assinado o “Acordo sobre Cooperação Financeira através do Estreito”, visando a aprofundar a cooperação financeira entre os dois lados. O “Acordo-Quadro de cooperação econômica” entre os dois lados tem sido fundamental na medida em que, desde 2003, a China continental tem sido a maior fonte de superávit comercial de Taiwan e o seu principal mercado de exportação. O Partido Nacionalista da China chegou a estabelecer a estratégia de “alcançar o mundo por meio do continente”. Desde 2008, os dois lados tomaram outras iniciativas para aumentar o intercâmbio através do estreito. Uma delas foi realizar “as três ligações” via correio, transporte e negócios. Foram assinados o “Acordo sobre transporte aéreo através do Estreito”, o “Acordo sobre transporte marítimo através do Estreito” e o “Acordo sobre serviços postais através do Estreito”.
Desde que o Partido Democrático Progressista (PDP), fundado em 1986, por lideranças favoráveis à independência de Taiwan e ao estreitamento dos laços com Estados Unidos e Japão, tomou o controle do poder em Taiwan, em 2016, com a eleição de Tsai Ing-wen, reeleita em 2020 e agora sucedida por Lai Ching-te, que foi seu vice entre 2020 e 2023, os esforços da República Popular da China para promover a reunificação pacífica dos dois lados do estreito têm encontrado crescentes dificuldades.
Para isso também tem contribuído a mudança de posição dos Estados Unidos que, apesar de formalmente ainda defender o princípio de uma só China, vem tomando atitudes que contradizem, na prática, o compromisso formal. Em sua estratégia de desgaste e isolamento da China, os Estados Unidos usam a província rebelde de Taiwan como aríete para golpear o gigante asiático no seu ponto mais sensível que é a defesa de sua soberania e integridade territorial
Até hoje, Taiwan tem estado fora dos limites da diplomacia China-EUA graças à compreensão de que é uma caixa de Pandora de potencial letal, e que a sua abertura poderia levar à perda dos ganhos firmemente mantidos e duramente conquistados que governaram o relacionamento bilateral entre as duas potências até recentemente. Sob os atos dos Poderes de Guerra e das Relações com Taiwan, o presidente dos Estados Unidos não tem autoridade legal para, sem a autorização expressa do Congresso, usar a força militar para defender Taiwan.
Mas com a deterioração das relações bilaterais entre Estados Unidos e China, “a carta de Taiwan” voltou a ser posta na mesa pelos norte-americanos e não são poucas as vozes nos Estados Unidos que propõem que o consenso estabelecido pelo Comunicado de Xangai deva ser esquecido e que os Estados Unidos deveriam abandonar a política de ambiguidade estratégica em favor de um compromisso explícito de defesa militar de Taiwan.
Em fevereiro de 2021, senadores republicanos apresentaram ao Congresso dos Estados Unidos um projeto de lei denominado “Lei de Prevenção de Invasão de Taiwan” que segundo o website do Congresso dos Estados Unidos “autoriza o presidente dos Estados Unidos a usar as Forças Armadas para defender Taiwan contra um ataque direto dos militares da China, uma tomada do território de Taiwan pela China ou uma ameaça que coloque em risco a vida de civis em Taiwan ou de membros do exército de Taiwan. O projeto também orienta o Departamento de Defesa a convocar um diálogo anual de segurança regional com Taiwan e outros parceiros para melhorar as relações de segurança dos EUA com os países do Pacífico Ocidental.”
Em artigo publicado no Wall Street Journal, em 21 de outubro de 2021, John Bolton, que foi conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Donald Trump entre 2018 e 2019, propôs que os Estados Unidos abandonem os termos do Comunicado de Xangai e reconhecem que Taiwan é um país soberano autogovernado e não um território chinês disputado. No artigo, Bolton afirma que “O Comunicado de Xangai de 1972, a declaração fundamental das relações atuais entre os EUA e a China, está efetivamente morto”.
Declara, entretanto, que o reconhecimento de Taiwan como um país independente, pelos Estados Unidos, pode não ser suficiente para impedir que a China tome a província à força e para isso propõe a formação de um “Quad do Leste Asiático” para garantir a defesa militar da ilha. Segundo ele, “Uma etapa seria formar um Quad do Leste Asiático, consistindo em Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos, complementando o já existente Quad Japão-Índia-Austrália-Estados Unidos. O Japão deve dar as boas-vindas a este desenvolvimento. Seus tomadores de decisão cada vez mais entendem que um ataque chinês a Taiwan é um ataque ao Japão. Ambos fazem parte da “primeira cadeia de ilhas” que separa o continente do Pacífico mais amplo, e sua segurança mútua é inextricável”.
No mesmo artigo, Bolton destaca a importância de Taiwan para os Estados Unidos: “Poucos americanos apreciam o quão crítico é Taiwan como parceiro econômico, especialmente sua indústria de fabricação de semicondutores e seus extensos vínculos comerciais em todo o Indo-Pacífico, todos os quais poderiam apoiar laços político-militares reforçados. As questões econômicas são importantes para os países regionais e europeus, que podem estar menos dispostos a se envolver em ações militares.”
Em longo artigo publicado na revista Foreign Affairs , na edição de novembro/dezembro de 2021, a então líder de Taiwan, Tsai Ing-Wen, mesmo sem advogar a independência da ilha, procura apresentá-la como o baluarte de democracia ocidental no Leste da Ásia. Segundo ela, “Vibrantemente democrático e ocidental, mas influenciado por uma civilização chinesa e moldado por tradições asiáticas, Taiwan, em virtude de sua própria existência e de sua prosperidade contínua, representa ao mesmo tempo uma afronta à narrativa e um obstáculo às ambições regionais do Partido Comunista da China”. Para justificar seu argumento fala que uma suposta identidade coletiva emergiu em Taiwan, como se o destino da ilha dissesse respeito apenas aos 23 milhões de habitantes da ilha e não a toda China com seus 1,4 bilhão de habitantes à qual Taiwan sempre pertenceu.
Para complicar ainda mais a situação, o presidente Biden, ao ser perguntado, no dia 20 de outubro de 2021, no programa de TV “CNN Town Hall” se os militares dos EUA defenderiam Taiwan no caso de um ataque chinês, afirmou “Sim, temos o compromisso de fazer isso”. Isso foi interpretado pela imprensa americana e internacional como uma declaração de que Washington pretende abandonar a política de ambiguidade estratégica em favor de uma garantia militar explicita para a ilha. Segundo o jornal Washington Post, “Com essas cinco palavras, o presidente dos EUA inicialmente parecia ter alterado a política americana de “ambiguidade estratégica” em relação a Taiwan” , segundo a qual os EUA se recusam a dizer se iriam defender Taiwan de um ataque chinês.
Diante da repercussão internacional da declaração de Biden, a própria Casa Branca tratou de relativizar a fala do presidente. A Secretária de Imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou, durante uma coletiva de imprensa, em 22 de outubro de 2021, afirmou que “O presidente não estava anunciando nenhuma mudança em nossa política, nem tomou a decisão de mudar nossa política”. “Nosso relacionamento de defesa com Taiwan é orientado pela Lei de Relações de Taiwan”.
Poucos dias depois, em 26 de outubro de 2021, Antony Blinken, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, afirmou que “É por isso que encorajamos todos os Estados Membros da ONU a se juntarem a nós no apoio à participação robusta e significativa de Taiwan em todo o sistema da ONU e na comunidade internacional, consistente com nossa política de “uma China”, que é orientada pela Lei de Relações de Taiwan, os três Comunicados e as Seis Garantias” . Trata-se, evidentemente, de uma afirmação para lá de ambígua, pois apoiar uma “participação robusta e significativa de Taiwan em todo o sistema ONU” significa, na prática, negar o princípio de “uma só China” estabelecido no Comunicado de Xangai, de 1972.
A líder de Taiwan, por sua vez, na mesma sexta-feira, 22 de outubro de 2021, evitou afirmar que uma eventual mudança de posição dos Estados Unidos poderia estimular a ilha a declarar independência. Segundo noticiou a agência Reuters, ela disse que “A posição de Taiwan permanece a mesma, de que não cederá à pressão nem “avançará precipitadamente” quando conseguir apoio” .
Na verdade, a posição dos atuais líderes de Taiwan tem sido a de, sem declarar a independência da ilha, para não provocar Pequim, buscar uma espécie de independência de fato. Ao comentar o discurso da líder taiwanesa na comemoração do dia nacional de República da China, comemorado na ilha em 10 de outubro, no qual expôs os “quatro compromissos” que deveriam servir como um terreno comum para todos os taiwaneses, independentemente da filiação política, um editorial do jornal “Taipei Times”, afirmou que “Tsai deu o tom ao abraçar a República da China (ROC) e, em seguida, justapô-la contra a República Popular da China (RPC) para demonstrar claramente a realidade de que Taiwan é uma nação independente e soberana. Seguindo essa lógica, não há necessidade de Taiwan declarar independência ou estabelecer anteriormente uma “República de Taiwan”.”
A China reagiu à declaração de Biden. Na mesma sexta-feira, 22 de outubro de 2021, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, declarou: “Exortamos os EUA a cumprirem seriamente o princípio de uma só China e as estipulações dos três comunicados conjuntos China-EUA, a serem prudentes em suas palavras e ações sobre a questão de Taiwan e evitarem enviar sinais errados às forças separatistas da ‘independência de Taiwan’, para que não prejudique seriamente as relações China-EUA, a paz e a estabilidade em todo o Estreito de Taiwan”.
Os Estados Unidos têm consciência de que a China jamais aceitará a independência da ilha e estão “jogando a carta de Taiwan” de olho em objetivos mais amplos, nomeadamente seu domínio militar do Pacífico. Em artigo de 2018 na revista americana Foreign Affairs, o professor Daniel Linch, da University of Southern California, lembra que “Em 2016, Bolton pediu a Washington que jogasse a “carta de Taiwan”, indo até ao ponto de recomendar o reconhecimento da condição de Estado de Taiwan, a fim de coagir Pequim a se retirar do Mar da China Meridional e desmantelar suas bases militares lá”. As forças separatistas de Taiwan, por seu turno, entram no jogo porque sabem que a chance de se tornar independente da China sem o apoio militar dos Estados Unidos é zero. A questão é que também conhecem os riscos que correm na hipótese de um confronto militar com a China continental.
Os Estados Unidos não têm como “declarar” Taiwan independente; a iniciativa teria que partir da ilha, obviamente com as garantias oferecidas pelos norte-americanos. Até agora, a política de ambiguidade estratégica dos Estados Unidos impediu que Taiwan tomasse essa iniciativa. Uma eventual mudança de posição dos Estados poderia alterar esse precário equilíbrio A questão é saber se o governo de Taiwan estaria disposto a arcar com as consequências.
Aparentemente, a estratégica da atual liderança de Taiwan é, como vimos acima, afirmar que a República da China (ROC) já é um estado soberano e, portanto, não haveria necessidade de declarar independência. A questão seria apenas garantir a defesa Taiwan de uma eventual invasão chinesa e para tanto contam com o apoio dos Estados Unidos e seus aliados na região. Por meio dessa estratégia eles pretendem transformar a solução de “duas Chinas” em um fato consumado. Evitam, assim, a alternativa de “uma China, uma Taiwan”, a qual exigiria a declaração formal de independência da ilha, que certamente levaria à guerra. A questão é que a China tampouco vai aceitar passivamente essa estratégia da liderança separatista taiwanesa de vencer uma guerra sem travá-la. Com toda certeza a China irá fazer o possível para promover a reunificação de forma pacífica, mas se concluir que tal caminho é impossível não hesitará em recorrer a outros meios. A questão é saber por quanto tempo a China vai aceitar esse jogo de Taiwan. Pelas declarações do presidente Xi Jinping esse tempo está acabando.
As posições separatistas do atual líder de Taiwan, Lai Ching-te, são bastante conhecidas. Em um seminário realizado em 3 abril de 2018, quando já ocupava a função de vice-líder do governo de Taiwan, ele se declarou “um político trabalhador pela independência de Taiwan”. Quando perguntado sobre o significado dessa descrição de si mesmo afirmou, segundo o jornal Taiwan News (15/04/2018), que havia três crenças básicas por trás da posição: a primeira sendo que Taiwan é um país soberano e independente e, portanto, não precisa declarar a independência de Taiwan, posição que coincide com a da atual líder; segundo, que apenas os 23 milhões de habitantes do país têm o direito de decidir o futuro de Taiwan, desconhecendo que a ilha é parte inalienável do território chinês e, portanto, do interesse dos 1,4 bilhão de chineses e não apenas dos habitantes da ilha; terceiro, que construir Taiwan e torná-lo mais forte e atraente para as pessoas, para que eles o apoiem, é abordagem prática para a independência de Taiwan.
Dirigindo-se a apoiadores, Lai Ching-te afirmou, segundo o jornal New York Times (12/08/2023), que “Esta eleição é uma escolha entre Zhongnanhai e a Casa Branca”, referindo-se à sede do Partido Comunista Chinês em Pequim. “Quando pudermos ir à Casa Branca – quando o presidente taiwanês puder entrar na Casa Branca – teremos alcançado o objetivo político que estamos perseguindo.”
Os Estados Unidos deveriam se abster de qualquer relação oficial com representantes de Taiwan, seja por força dos acordos estabelecidos entre os dois países, seja porque Taiwan é um problema interno da China. Não é, porém, o que vem ocorrendo, particularmente depois de 2016, quando o então presidente Trump resolveu colocar na mesa a “carta de Taiwan” como forma de chantagear a China, na guerra comercial iniciada em 2018.
Observa-se, portanto, um jogo de conveniência entre as forças separatistas de Taiwan e o governo dos Estados Unidos, em que as primeiras tentam se apoiar nos Estados Unidos para levar adiante seus propósitos separatistas e os Estados Unidos se utilizam dessas forças separatistas para provocar a China e tentar perpetuar sua dominância militar na área do Pacífico.
O fato de, pela terceira vez seguida, o DPP, de tendências independentistas de Taiwan, ter vencido as eleições para a escolha do líder da província não quer dizer, contudo, que a maioria dos eleitores de Taiwan desejassem a continuidade do DPP no governo da ilha. Muito pelo contrário, as pesquisas indicavam e o resultado comprovou que pelo menos 60% dos eleitores queriam o DPP fora do poder. Segundo o Global Times (14/1), “Lai, do DPP, e seu companheiro de chapa Hsiao Bi-khim obtiveram mais de 40 por cento do total de votos nas eleições de 13 de janeiro, enquanto Hou Yu-ih, candidato da oposição Kuomintang (KMT), e seu companheiro de chapa, Jaw Shaw-kong, obtiveram 33,49 por cento da votação. O candidato do terceiro partido, Ko Wen-je, e seu companheiro Wu Hsin-ying, do Partido Popular de Taiwan (TPP), receberam 26,45% dos votos, de acordo com relatos da mídia”.
O fato é, portanto, que 60% do eleitorado da ilha, conforme pesquisas anteriores já apontavam, não desejava que o DPP continuasse à frente do governo local, o que só não ocorreu porque os dois partidos de oposição não conseguiram chegar a uma plataforma comum. Tanto o Guomindang, partido nacionalista, quanto o TPP, de centro-esquerda, são contrários às teses separatistas e repudiam as provocações dos líderes do DPP, o que demonstra que a maioria do eleitorado de Taiwan deseja que a questão da reunificação seja resolvida de forma pacífica, tal como propõe o governo chinês.
A verdade é que, na medida em que a rivalidade estratégica entre Estados Unidos e China se aprofunda, Taiwan se torna cada vez mais uma carta importante nesse jogo. Manter algum nível de controle sobre Taiwan é importante para os Estados Unidos para impedir o livre acesso da China ao Oceano Pacífico, uma vez que a ilha de Taiwan, com o Japão ao norte e as Filipinas ao sul, ambos aliados dos Estados Unidos, fazem parte da primeira cadeia de ilhas que separa o Mar da China do Oceano Pacífico.
Caso retome o controle da ilha, a China terá acesso direto ao Pacífico, o que é uma preocupação para os Estados Unidos, seja porque hoje a China tem a mais poderosa marinha mundial, seja porque o poder naval voltou a ser cada vez preponderante na disputa pelo poder global. De acordo com a revista, a frota naval da China, que inclui porta-aviões, cruzadores, destroieres, fragatas e submarinos é ligeiramente superior à dos Estados Unidos, quase o dobro da Rússia e maior que a do Reino Unido, França, Coréia do Sul e Japão juntas.
Conforme afirmou a revista The Economist (11/01), “Os oceanos são mais uma vez importantes na geopolítica. No Médio Oriente, o grupo rebelde Houthi está a ameaçar o transporte marítimo no Mar Vermelho, perturbando o comércio global. Em 12 de Janeiro, a América e a Grã-Bretanha lançaram ataques contra mais de 60 alvos Houthi no Iémen. Os ataques dos aliados são uma tentativa de reafirmar a liberdade de navegação numa artéria crucial do comércio mundial, mas também de expandir dramaticamente o âmbito geográfico do conflito no Médio Oriente. Taiwan está à beira de uma eleição que poderá moldar o seu futuro. Uma luta pela ilha envolveria uma intensa guerra naval sino-americana que se estenderia muito além do Pacífico. E na Europa a guerra na Ucrânia poderá desencadear a disputa marítima pelo Mar Negro e pela Crimeia. O poder marítimo está de volta”.
Acrescente-se a isso uma importante variável econômica. A empresa taiwanesa TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company) é hoje o principal produtor mundial dos semicondutores e chips de memória mais avançados, abaixo de oito nanômetros, vitais para a setor de alta tecnologia, incluídos telefones celulares, supercomputadores, armamentos e inteligência artificial dos Estados Unidos.
Como afirmou Laura Tyson, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Bill Clinton, em artigo publicado no site Project Syndicate (17/01), “A economia dos EUA está perigosamente dependente de semicondutores avançados produzidos por uma única empresa (TSMC) num único local (Taiwan), que está repleto de riscos geopolíticos”. No ano passado os Estados Unidos tentaram, em vão, convencer a TSMC a transferir a produção dos seus chips mais avançados para o território americano (já abordamos esse tema em relatório anterior), oferecendo subsídios bilionários, mas sem sucesso.
Após a eleição do novo líder local, a situação mudou. Segundo informou o South China Morning Post (14/04/2024), de Hong Kong, a mais recente conquista dos EUA foi ter convencido o maior fabricante mundial de semicondutores, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Co (TSMC), a iniciar a produção de seus chips mais avançados nos Estados Unidos. O novo compromisso da TSMC significa que pretende começar a produzir os seus mais recentes chips de 2 nanômetros, e outros mais avançados no futuro, numa nova fábrica a ser instalada em Phoenix, Arizona. Para isso recebeu uma doação de US$ 6,6 bilhões do governo americano sob o guarda-chuva da Lei dos Chips.
O fato é que a questão de Taiwan, de uma questão a ser resolvida a longo prazo, passou para a ordem do dia, seja porque o presidente Xi Jinping já deixou claro que pretende reunificar totalmente o país, o que coloca um horizonte para a resolução do problema até no máximo em meados da próxima década, seja porque as forças separatistas da ilha estão cada vez assertivas quanto a suas intenções independentistas, seja porque os Estados Unidos não dão mostras de que pretendem corrigir sua rota de confronto com a China seja no plano econômico, seja no plano geopolítico. “A unificação de Taiwan com a China continental “certamente será realizada”, declarou o presidente chinês, Xi Jinping, num discurso em Pequim em 26 de dezembro de 2024 para comemorar o 130º aniversário do nascimento de Mao Tse-tung. Disso, ninguém deve duvidar.