A estabilidade e a solidez das estruturas são avaliadas quando submetidas a algum teste de estresse. Na área da engenharia é comum a aplicação desse tipo de teste em componentes críticos de estruturas e equipamentos que, se falharem, podem provocar prejuízos e até mesmo grandes tragédias. Vez ou outra ouvimos falar que as autoridades monetárias estão realizando um teste de estresse no sistema bancário para verificar a resiliência dos bancos em possíveis situações de crise. Até na área da saúde também é comum falar-se em testes de estresse.
Nas relações internacionais, entretanto, não é possível realizar testes de estresse para saber se determinada organização multilateral ou se as relações entre dois ou mais países resistem a situações de crise. Ou melhor, os testes se realizam na prática. Assim, por exemplo, a ONU em seus já quase 80 anos de existência tem se mostrado uma estrutura de governança internacional bastante sólida e estável, tendo garantido até agora a “Longa Paz”, ao conseguir evitar guerras entre as grandes potências nas últimas sete décadas. Já não foi o caso de sua predecessora, a Liga das Nações. O mesmo se poderia dizer da OMC, do FMI, do Mercosul e daí por diante. Todas essas organizações em situações de crise, pelo menos até agora, não só têm sobrevivido, como contribuído para contornar as crises. E as relações Brasil-China e suas estruturas de governança, como têm se saído?
As relações entre Brasil e China foram submetidas, nos últimos quatro anos, a um rigoroso teste de estresse do qual se saíram muito bem. Os ataques feitos à China por autoridades chave no governo tinham potencial para descarrilhar as relações bilaterais. Entretanto, apesar dos solavancos a que essas relações estiveram submetidas, notadamente nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, com certeza é possível afirmar que as relações Brasil-China são extremamente sólidas e têm um futuro promissor pela frente. E isso se deve basicamente a três fatores.
Em primeiro lugar, ao profissionalismo do Ministério das Relações Exteriores e outras áreas do governo encarregadas de tratar das relações bilaterais. Como marinheiros experimentados, nossos diplomatas perceberam que diante da tormenta, o melhor a fazer era levar o navio para águas mais calmas e não o lançar no olho do furacão.
Destaque-se o papel da Comissão Sino-brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban) que, no último mês de maio, realizou sua VI Sessão Plenária, com a participação do vice-presidente Hamilton Mourão e do vice-presidente da China, Wang Qishan. Criada em 2004, a Cosban é o principal mecanismo bilateral entre Brasil e China e sempre liderada pelos vice-presidentes de parte a parte. No encontro realizado em maio foram lançados um Plano Estratégico com diretrizes para balizar as relações bilaterais entre 2022 e 2031; e um Plano Executivo, com as medidas voltadas até 2026 em áreas como política, economia e ciência e tecnologia. As duas partes manifestaram a disposição de aprofundar e ampliar a pauta comercial entre os dois países no longo prazo.
Não menos importante tem sido o Ministério da Agricultura, dado o seu papel na ampliação e aprofundamento da pauta de exportações do Brasil para a China. No final de julho, segundo informações da Secretaria de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, foi anunciado que o Brasil poderá exportar farelo de soja para a China. O aval foi obtido durante uma reunião bilateral de subcomissão da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). Conforme informou o jornal o Estado de S. Paulo, em 27/07, além do farelo de soja, a China autorizou também a importação de amendoim sem casca, polpa cítrica, proteína concentrada de soja e soro fetal bovino do Brasil. Destaque-se que a possibilidade de exportar o farelo de soja para a China era uma demanda antiga da cadeia de soja, em razão do maior valor agregado do produto em relação à soja em grão. Até então, a China importava soja em grão e não permitia a entrada de farelo de soja brasileiro.
Em segundo lugar, é preciso destacar a visão estratégica da China em relação ao Brasil. A parte chinesa sempre deixou claro que a relações da China com o Brasil, para além de relações entre governos, são relações entre países e que todo os esforços de construção das relações bilaterais entre os dois países que começou com o reatamento das relações diplomáticas, em 1974, são o referencial maior que deve balizar a condução de curto-prazo das relações bilaterais. Também contribuem para isso os cinco princípios da política externa chinesa ancorados na ideia de não-interferência em negócios internos de outros países e no respeito mútuo.
Por último, mas não menos importante, é preciso destacar a complementaridade entre as duas economias. Embora o peso da China no comércio exterior brasileiro seja muito maior que o peso do Brasil no comércio exterior da China, o fato é que se a China é hoje um parceiro praticamente insubstituível do Brasil, o Brasil é também a principal fonte externa de diversos produtos essenciais para a China. Basta olhar os principais produtos que o Brasil exporta para o mercado chinês: soja, minério de ferro, petróleo, celulose e carne, para verificar que as outras opções que a China tem à mão também são limitadas. No setor agrícola, que certamente é onde a demanda chinesa deverá crescer mais devido ao enriquecimento do País e o consequente maior consumo de proteínas, o Brasil é, entre os grandes produtores agrícolas mundiais talvez o único país com possibilidade de expansão da área plantada sem promover o desmatamento, apenas incorporando áreas de pastagem degradadas.
Segundo matéria publicada pelo jornal Valor Econômico, em 18/08, “A China é o principal mercado das exportações brasileiras e é também de onde o Brasil mais importa mercadorias. Os chineses são nosso principal parceiro comercial desde 2009. No intercâmbio, o saldo é bastante favorável ao Brasil (US$ 40,3 bilhões), portanto, a República Popular da China ajuda a equilibrar nossas contas externas. Segundo a Camex, o estoque de investimento chinês neste país, acumulado entre 2003 e 2019, somou US$ 80,5 bilhões. Há uma complementaridade entre as duas economias. A China demanda fortemente alimentos (soja e carne bovina, por exemplo) e matérias-primas (minério de ferro, petróleo e celulose), produtos que o Brasil produz com grande competitividade – na verdade, nesses setores, com exceção de petróleo, nossas empresas são campeãs globais. Já as empresas brasileiras vão buscar na China bens industriais, como equipamentos de telecomunicação, válvulas e tubos termiônicos (usados em amplificadores de radiofrequência e em transmissores), adubos, fertilizantes etc. Curiosamente, embora estejamos “felizes” com esse comprador voraz de nossos produtos, queremos vender produtos industrializados aos chineses, e estes, mesmo “contentes” com o fato de serem o principal exportador ao Brasil, gostariam de vender mais ao país com dois objetivos: reduzir o déficit comercial que acumulam na parceria e entrar em setores de nossa economia em que sua presença ainda é modesta, se comparada à de bancos europeus, por exemplo”.