Na disputa global entre Estados Unidos e China, a América Latina e, nomeadamente a América do Sul, tem um papel importante que não podemos subestimar. Desde que foi lançada a Doutrina Monroe, em 1823, pelo presidente James Monroe, os Estados Unidos consideram que qualquer tentativa de interferência por parte de outras potências na América Latina é um ato hostil contra os interesses norte-americanos. A doutrina Monroe foi um marco na política externa americana, afirmando a liderança dos EUA na região e consolidando sua influência sobre os países latino-americanos. Tudo o mais constante, a nova versão da Doutrina Monroe, sob Donald Trump, apenas substituiu a Europa pela China como rival na região.
A China, por seu turno, vê a América Latina como uma fonte vital de recursos naturais dos quais ela precisa para alavancar seu desenvolvimento. Por meio da Iniciativa Cinturão e Rota que foi estendida para a América Latina e da qual já participam a maioria esmagadora dos países da região, o governo chinês está financiando centenas de obras de infraestrutura, desde portos, ferrovias, rodovias, redes de transmissão de energia, infovias com o objetivo de conectar a região com a China, fortalecendo o comércio bilateral e apoiando projetos de desenvolvimento. O dinheiro de instituições chinesas que investem na região supera os empréstimos do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
A ação da China tem sido mais favorável para a região do que a norte-americana, a qual tem se limitado, no momento atual, a impor tarifas às exportações locais para os Estados Unidos, ameaçar com sanções qualquer inciativa soberana de países latino-americanos que eles entendem ser contrária aos interesses das BigTechs norte-americanas e a interferir politicamente em favor de forças políticas que sejam mais favoráveis aos Estados Unidos.
Na conhecida alegoria da cenoura e do porrete, os Estados Unidos deixaram de lado qualquer sutileza no tratamento bilateral e têm recorrido quase que exclusivamente ao porrete para impor sua vontade. Além disso, o atual presidente dos Estados Unidos não demonstra nenhum respeito ou apreço por países que ele considera fracos, assim como em relação aos seus líderes, como ficou evidente em recentes episódios, com a Ucrânia e a África do Sul, nos quais a Casa Branca se transformou em verdadeira arapuca para líderes incautos.
Como aproveitar as vantagens desse relacionamento favorável com a China sem se tornar alvo da ira dos Estados Unidos é um desafio e tanto para os países da região. Não é do interesse de ninguém alimentar inimizades com os Estados Unidos, seja por causa de afinidades políticas, dos laços culturais e históricos com aquele país, seja porque, do ponto de vista econômico, apesar da crescente importância da China, as relações comerciais com os Estados Unidos são muito valorosas para a maioria dos países da região.
Não menos importante é o fato que na condição da maior superpotência do planeta os Estados Unidos, com seu enorme poderio militar e financeiro, têm capacidade de impor a qualquer país da região danos de grande monta, como se vê nos casos de Cuba e Venezuela. Recentemente, o Panamá, forçado pelos Estados Unidos, anunciou que estaria se desligando da Iniciativa Cinturão e Rota. Para a maioria dos países da região, entretanto, afastar-se da China não é uma opção.
Como afirmou matéria do Financial Times (Valor Econômico, 26/5), “A pressão dos EUA sobre a América Latina para cortar o comércio exterior com a China pode levar a um desastre econômico, porque a região é muito dependente de Pequim, diz o chefe do principal fórum político de 35 países da América, que está deixando o cargo. Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) nos últimos dez anos, disse em entrevista antes de sua saída, ontem, que o comércio exterior com a China é essencial. “A China é o maior ou o segundo maior parceiro comercial de praticamente todos os países latino-americanos. Tire isso da equação e você terá um desastre econômico regional muito violento”, disse”. Ainda segundo Almagro, “a pior coisa que pode acontecer à América Latina é ser forçada a escolher entre EUA e China. Você precisa ter as melhores relações comerciais possíveis com todo mundo”, afirmou.
Matéria do jornal Valor Econômico (14/5) afirma que “O impacto do novo mandato de Donald Trump para os países da América Latina vai muito além das tarifas que o presidente dos EUA tem aplicado a seus parceiros comerciais. Medidas não tarifárias, como a suspensão de programas de segurança e sociais mantidos por Washington e a redução das remessas de dinheiro de imigrantes – uma importante fonte de receita dos países centro-americanos – por conta de uma esperada desaceleração econômica dos EUA terão fortes impactos nas economias latino-americanas no curto e médio prazos, apontam analistas.”
É preciso considerar também que as relações entre China e América Latina não estão isentas de tensões. Segundo matéria no site UOL, assinada por Beatriz Bulla, o Itamaraty entregou ao Presidente Lula, que participou em maio da Reunião de Cúpula China-Celac, em Pequim, no mês de maio, um documento alertando para a algumas dificuldades no relacionamento entre China o bloco de países latino-americanos. Segundo a matéria, o documento alertava o presidente para o fato de há um viés sinocêntrico dos textos apresentados pelos chineses quando negociam politicamente com o bloco, o que deixa pouca margem de negociação por parte de Pequim para abrir mão de seus próprios interesses. O segundo ponto problemático para a relação entre China e a Celac, segundo a matéria, é a polarização política dentro da América Latina, que dificulta a chegada de consensos mesmo regionalmente.
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