O relator da reforma tributária no Senado, Eduardo Braga, apresentou, em 26/10, seu relatório. Embora mantenha as linhas básicas aprovadas pela Câmara dos Deputados, o texto introduziu algumas mudanças importantes. A apresentação é, por si mesma, um fato positivo, pois quanto mais tempo a reforma permanece em discussão no Congresso, mais ela vai sendo distorcida pela ação dos lobbies e mais se afasta dos seus objetivos originais que são a cobrança no destino, a não-cumulatividade e a simplificação.
Entre as principais mudanças introduzidas pelo relator, destacam-se:
– Trava para o crescimento da carga tributária sobre o consumo, limitada a 12,5% do PIB.
Apesar de ser correto limitar a carga tributária sobre o consumo, dado o caráter regressivo desse tipo de imposto que tende a onerar mais os mais pobres que gastam toda sua renda em consumo, trata-se de medida de difícil operacionalização, pois, na prática, não é possível antecipar uma certa limitação da receita, ou seja, não há como prever antecipadamente e limitar o nível de arrecadação, o qual depende da demanda agregada em cada período, o que, por suposto, não tem como ser previsto. Segundo a proposta, esse ajuste seria feito em dois momentos, em 2030 e 2035, mas, ainda assim, traria dificuldades para a gestão fiscal dos estados e municípios. A medida só faria sentido se fosse acompanhada de mudanças mais amplas na estrutura tributária geral, dando maior peso aos tributos diretos sobre a renda e o patrimônio, de caráter mais progressivo, que não foram objeto de discussão, pelo menos nesta etapa da reforma. Para convencer o Congresso a cobrar impostos dos ricos, nem ressuscitando o Padre Antônio Vieira, que pronunciou, em 1642, o famoso sermão de Santo Antônio das Chagas, a pedido do rei Dom João IV, tentando, em vão, convencer os nobres a pagarem impostos.
– Regimes diferenciados / Profissionais Liberais
Seguindo a velha máxima de que a reforma tributária ideal é a que cobra impostos dos outros, a introdução de alíquotas reduzidas para uma série de atividades além de atentar contra um dos princípios básicos da reforma que é o da simplificação, redistribui o peso dos impostos entre os diversos segmentos da sociedade onerando mais aqueles setores com menos capacidade de fazer lobby junto aos parlamentares. De forma geral beneficia setores específicos com grande capacidade de pressão sobre os parlamentares em prejuízo do contribuinte comum que não é representado por nenhum grupo de pressão.
Algumas das exceções de fato fazem sentido, como alíquotas reduzidas para setores com alto impacto na economia popular como a cesta básica, os serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviários e metroviários de caráter urbano e serviços de saneamento, mas outros não, como agências de viagens, concessão de rodovias, missões diplomáticas, entre outras exceções que foram contempladas no relatório.
A exceção mais criticada foi a que reduz em 30% a alíquota dos impostos para profissionais liberais (advogados, médicos, dentistas, arquitetos, entre outros). À primeira vista poderia fazer sentido, mas o fato é que a grande maioria desses profissionais liberais já se beneficia do Simples que não está sendo alcançado pela reforma tributária. Na prática essa exceção apenas beneficiará pessoas físicas com muito dinheiro, com capacidade financeira para contratar profissionais de ponta e grandes escritórios que não se enquadram no Simples. O resultado dessas exceções será o aumento da alíquota do novo imposto sobre valor adicionado dual da faixa de 24% a 27%, inicialmente previstos, para algo mais próximo dos 30% segundo cálculo dos especialistas. Ou seja, todos pagarão pelos privilégios de alguns poucos.
– Cashback na conta de luz
O relatório estabelece o uso obrigatório do mecanismo de cashback para reduzir o impacto dos impostos na conta de luz das famílias de baixa renda. Trata-se de medida que realmente faz sentido, dada a tendência de elevação dos custos de energia que se observa atualmente, seja pelos custos de transição da matriz energética para fontes mais limpas, seja pelo aumento dos preços do petróleo decorrentes da instabilidade geopolítica global.
– Ampliação do Fundo Nacional do Desenvolvimento Regional (FNDR)
A Câmara tinha definido um teto de R$ 40 bilhões para o FNDR, cuja função é compensar estados pelas perdas na arrecadação com as novas regras tributárias. O relatório do Senado amplia a verba em R$ 20 bilhões, para R$ 60 bilhões. O Senado é formado por representantes dos Estados. Seria de se esperar, portanto, que fossem mais complacentes com o lobby dos governadores que apenas querem os bônus da reforma tributária, sem arcar com os ônus, que estão sendo todos transferidos para o governo federal. Isso pode, contudo, acarretar dificuldades crescentes para o governo federal dar conta de todas as obrigações que pesam sobre seus ombros, seja na área social (previdência, saúde, educação), seja na área de infraestrutura. Além disso, ao garantir que os benefícios fiscais oferecidos pelos Estados ficam garantidos até 2032, mesmo após ter início a redução progressiva da cobrança de ICMS e ISS, o texto do relator compromete um dos objetivos centrais da reforma que era acabar com a guerra tributária que, na prática, vai continuar.
– Conselho federativo
O Conselho Federativo, constante na proposta original do governo foi redesenhado e batizado de Comitê Gestor. A principal mudança é que não terá mais a capacidade de apresentar propostas ao Legislativo para regular os novos tributos. Trata-se de medida importante, uma vez que da forma como estava proposto, criava, na prática, um novo ente federativo, acima dos estados e municípios. Como a mudança passa a ter um caráter apenas técnico.
Apesar das distorções que as mudanças introduzidas pelo relator acarretam à proposta original do governo, é preciso considerar que se parte dessas mudanças apenas atendem a lobbies específicos com capacidade de assegurar privilégios e empurrar os ônus da reforma sobre os ombros dos contribuintes em geral, outras mudanças não só corrigem alguns problemas como, principalmente, dão viabilidade política à reforma, que é a questão mais importante. Um dos maiores erros que os tecnocratas cometem ao tentar impor de cima para baixo certas “soluções” para determinados “problemas” é desconsiderar que por mais força que tenham para impor suas propostas, são apenas um ator em meio a um conjunto muito mais amplo de atores, com visões e objetivos diferentes. Uma proposta, mesmo sendo “tecnicamente” ideal pode não ter viabilidade política dependendo da correlação de forças no momento. Nesse sentido, com todos os reparos que se possa fazer à proposta do relator, caso aprovada, significará um avanço, o avanço possível no momento, com repercussões positivas no potencial de crescimento do País para os próximos anos, como vários estudos atestam.