Chegados aos primeiros 100 dias, período um tanto quanto arbitrário para se fazer um primeiro balanço das atividades do governo que se inicia – por que não três meses, seis meses ou um ano? – diversos artigos e análises têm sido publicadas cotejando as promessas de campanha com o que foi feito até agora. A maioria das avaliações adota um tom crítico, destacando, sobretudo, as dificuldades que o governo tem enfrentado no campo da política para levar adiante sua agenda e as principais reformas que se propôs a fazer, nomeadamente a reforma fiscal e a reforma tributária, consideradas elementos chave para a retomada do crescimento em bases mais sustentáveis.
Há, contudo, uma área em que os avanços em relação ao período anterior são notáveis. Trata-se da política externa. Seja porque no governo anterior a política externa brasileira foi rebaixada a níveis inimagináveis, seja porque Lula é de fato uma liderança com enorme prestígio internacional, o fato é que nesses primeiros 100 dias de governo a imagem do Brasil no cenário internacional já é outra. Há quem diga que o presidente tem cometido deslizes em suas viagens internacionais ao fazer afirmações que irritam aliados do país desnecessariamente, como sua fala sobre o papel do dólar em viagem recente à China. Não se pode acusá-lo, entretanto, de dizer inverdades ou de tomar atitudes contrárias aos interesses do país, como ocorreu em passado recente.
No caso específico do comentário sobre o papel do dólar feito na China, a fala de Lula foi um alerta importante aos Estados Unidos de que eles não podem continuar a usar sua moeda como arma de guerra e achar que isso será sem custo para seus próprios interesses; uma moeda para ser de fato internacional precisa ser desejada e não temida. Quanto mais os Estados Unidos usarem sua moeda como arma para dobrar a espinha de quem não concorda com eles, mais os outros países vão procurar outras alternativas sempre que isso for possível. Que empresário quer correr o risco de ser preso em uma viagem internacional porque sua empresa fez negócio em dólares com algum país sancionado pelos Estados Unidos?
No caso da guerra da Ucrânia, a posição do presidente Lula está correta, pois o Brasil não tem nada a ganhar por apoiar abertamente qualquer um dos lados. Se, de um lado, a defesa da integridade territorial e soberania nacional de qualquer país no mundo é um princípio de nossa política externa, por outro lado, não se pode desconsiderar que a Rússia é um aliado importante do Brasil e que o setor mais dinâmico de nossa economia – o agronegócio – depende do fornecimento dos fertilizantes russos para se manter competitivo. Além disso, é preciso reconhecer que os Estados Unidos e a Otan também têm responsabilidade por essa guerra, pois contrariando conselhos até de seus mais experientes diplomatas, como Henri Kissinger, insistiram em empurrar os limites da Otan até as fronteiras da Rússia sem a menor necessidade depois do fim da Guerra Fria. Lula está correto, portanto, em advogar o fim imediato do conflito e o início de negociações para pôr fim a uma guerra que já custou mais de 300 mil vidas sem apoiar ou condenar qualquer um dos lados em disputa, mas apenas a guerra em si mesma.
De maneira geral, os diversos balanços da política externa do governo Lula que têm sido publicados na imprensa destacam tanto o ativismo do Itamaraty nesses primeiros cem dias de governo procurando dar materialidade à ideia lançada por ocasião da posse do novo governo de que o “Brasil voltou”, quanto à busca de equilíbrio nas relações externas do Brasil, tendo como baliza os interesses nacionais e a rejeição a alinhamentos automáticos como ocorreu na gestão anterior.
Ao comentar esses aspectos, matéria do jornal Valor Econômico (09/04) afirma que “O outro objetivo [do governo] foi a recuperação dos paradigmas tradicionais da política externa brasileira, sendo um deles o não alinhamento automático a um determinado parceiro, como vinha fazendo Bolsonaro em relação, por exemplo, aos Estados Unidos. O recado foi dado logo de cara pelo chanceler, em seu discurso de posse: “Com os Estados Unidos queremos relações em pé de igualdade, baseadas em valores e interesses comuns, sem qualquer tipo de preconceito sobre temas e assuntos, e isentas de alinhamentos automáticos. Desejamos dinamizar nosso relacionamento econômico e atrair investimentos, bem como continuar a fortalecer os laços humanos, culturais e educacionais que unem as duas sociedades. Trataremos de maneira madura eventuais diferenças, naturais em uma relação com essa importância e densidade”. Tal maturidade pôde ser observada na lista de destinos do presidente. Ao mesmo tempo em que se recusou a ter uma postura mais crítica à Rússia por causa da guerra na Ucrânia, Lula colocou Washington entre as suas primeiras viagens internacionais, depois de visitar Argentina, Uruguai e ter encontros com líderes de países latino-americanos. Ao todo, durante esses cem dias, o presidente manteve reuniões de trabalho com 16 chefes de Estado e governo. Falou por telefone com outros 14, todos eles considerados parceiros estratégicos de diversas regiões do globo. Já o chanceler teve 65 reuniões com 51 ministros das Relações Exteriores e diversas outras agendas com líderes estrangeiros ou dirigentes de organismos internacionais. Para coroar a marca de cem dias, Lula embarcaria rumo à China no fim de março acompanhado de uma grande comitiva de ministros e empresários. Teve que adiar a visita, depois de ser diagnosticado com uma pneumonia. Contudo, a rapidez com que a visita oficial brasileira foi remarcada por Pequim surpreendeu especialistas: ela ocorrerá na semana que vem, num sinal de que os chineses consideram o Brasil um parceiro estratégico e, para contemplá-lo, fizeram um esforço incomum para não deixar o encontro entre as lideranças dos dois países para uma data muito distante”.
É preciso destacar ainda os esforços do governo para tirar do papel um acordo comercial entre a União Europeia, gestado há mais de 20 anos e congelado na gestão anterior por conta de controvérsias na área ambiental. A expectativa vendida por Lula, de assinar as tratativas finais até o meio do ano parece compartilhada por parte da diplomacia do bloco europeu e, em certa medida, visa também fazer deslanchar a aliança sul-americana, como informa a Folha de S. Paulo (09/04).