Apesar de as pesquisas, em nível nacional, apontarem a candidata do partido Democrata Kamala Harris à frente do candidato republicano Donald Trump com uma certa folga, nos chamados estados-pêndulo onde, devido às peculiaridades do sistema eleitoral dos Estados Unidos, as eleições são de fato resolvidas, a situação de Kamala não é tão confortável.
De acordo com o site Poder360, “Médias feitas pelo agregador de pesquisas do Real Clear Politics na noite de domingo (15.set.2024) mostram a democrata numericamente à frente em 4 dos 7 “swing States” (Nevada, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia). Trump se sai melhor em Arizona, Geórgia e Carolina do Norte. Mas a diferença entre os dois é tão pequena que a situação é de empate técnico em todos.”
Pesquisa do New York Times/Siena College entre 17 e 21 de setembro em três estados-pêndulo (Arizona, Georgia e Carolina do Norte) mostram Trump à frente de Kamala Harris. No Arizona, Trump aparece com 47% e Kamala 42%; na Georgia, Trump aparece com 46% e Kamala 43% e na Carolina do Norte Trump aparece com 45% e Kamala 44%. Importante notar que tanto no Arizona quanto na Georgia, Biden venceu a eleição em 2020, o que foi decisivo para sua eleição para presidente dos Estados Unidos.
Frente a um cenário tão apertado e indefinido é absolutamente impossível fazer um prognóstico seguro a respeito do possível resultado das eleições norte-americanas no próximo dia 5 de novembro, o que eleva o nível de ansiedade e de especulações a respeito do que poderia vir a ocorrer nos Estados Unidos e no mundo no caso de um ou outro vir a ser eleito. Não sem motivo, portanto, abundam na imprensa americana e mundial análises baseadas nas declarações e no histórico dos dois candidatos e seus respectivos partidos tentando antecipar quais seriam as características das políticas econômica e externa dos respectivos candidatos caso se tornem presidente dos Estados Unidos em 2025.
Levando em conta que tanto o partido Democrata quanto o partido Republicano representam frações da classe dominante dos Estados Unidos, não seria de se estranhar que as diferenças entre ambos em aspectos importantes da política norte-americana fossem mais de forma do que de conteúdo. Tais diferenças, contudo, não são, de maneira alguma, menos relevantes, principalmente pelas diferenças de personalidade e de propósitos dos dois candidatos.
Trump, como já ficou provado em seu primeiro mandato (2017-2020) e agora na campanha eleitoral, é possuidor de um estilo pessoal agressivo, narcisista e direto nas suas decisões e iniciativas políticas. Kamala, embora como mulher, negra e filha de imigrantes, represente um ponto fora da curva no perfil típico dos candidatos à Presidência dos Estados Unidos, é, tanto quanto Trump, uma representante do establishment da política norte-americana. Se Kamala, por suas características e histórico, tende a se alinhar com os setores mais à esquerda do partido Democrata é muito pouco provável que vá fazer qualquer coisa que contrarie os interesses de seus patronos políticos. O mais provável é que um eventual governo seu seja, pelo bem e pelo mal, de continuidade do governo Biden, de quem é atualmente vice-presidente.
Na verdade, as características de cada governo dependerão muito não apenas do perfil do presidente, mas também dos nomes que serão indicados para cuidar de temas-chave como economia, comércio e política externa. Nesse sentido, a vantagem de Kamala é que ela provavelmente tenderá a indicar nomes pela identidade com a orientação democrata para a economia, política externa e outros temas. Já as indicações de Trump deverão seguir apenas o critério da mais absoluta fidelidade e obediência cega aos seus caprichos, sobretudo depois que alguns de seus auxiliares diretos e aliados terem se negado, em seu primeiro mandato, a cumprir suas ordens de não reconhecer a eleição de Biden, como foi o caso do seu vice-presidente Mike Pence, ou de encontrar a qualquer custo votos no colégio eleitoral a seu favor na acirrada disputa de 2016, quando Biden foi eleito.
O site Project Syndicate reuniu uma série de artigos de conhecidos analistas políticos e econômicos para fazer o que chamou de “Big Picture”. Com base no histórico dos candidatos e nas posições de seus respectivos partidos, os autores procuram antecipar o que cada um dos candidatos poderá vir a fazer, caso eleito, em temas chave como economia, comércio e política externa. Apresentamos a seguir os principais pontos de algumas dessas análises.
Ian Brenner, no artigo “What Is Kamala Harris’s Foreign Policy” destaca inicialmente a falta de experiência da candidata democrata em política externa. Segundo Brenner, “Biden entrou na Casa Branca como o presidente mais experiente e conhecedor de política externa de nossa geração (…) O currículo de política externa pré-Casa Branca de Harris – promotora de carreira, procuradora-geral do estado, senadora em primeiro mandato – era decididamente escasso em comparação.”
Ao comparar as possíveis diferenças entre Biden e Kamala no tema política externa, Brenner afirma: “Ele [Biden] acredita fortemente no “excepcionalismo americano” e vê as relações internacionais em termos de preto e branco – ou seja, como uma luta entre democracias e autocracias – em que os Estados Unidos são sempre uma força para o bem. Ele também acredita na teoria da política do “grande homem”, que postula que estadistas como ele podem alterar o curso dos eventos por meio da construção de relacionamentos pessoais e pura força de vontade. Em contraste, Harris, de 59 anos, cresceu em um mundo pós-Guerra Fria, quando o maior desafio à hegemonia americana era o fracasso em defender seus ideais em casa e no exterior. Sua inclinação como promotora é julgar os países por sua adesão ao Estado de Direito e às normas internacionais, e não por seu sistema político ou líderes. Reconhecendo a necessidade do envolvimento dos EUA com países não democráticos e também as próprias deficiências democráticas da América, ela vê a estrutura de “democracias versus autocracias” de Biden como redutora, hipócrita e irrealista.”
Destaca ainda que se a política externa de um eventual governo de Kamala em relação à China teria poucas diferenças em relação à do atual governo Biden e que a palavra de ordem seria de continuidade, o mesmo poderia não ocorrer em relação à guerra da Ucrânia. Segundo Brenner, “A guerra Rússia-Ucrânia é uma história diferente. Harris e Biden se alinham no apoio à Ucrânia, mas suas motivações diferem. Enquanto Harris vê o conflito em termos legais, enfatizando a violação da soberania ucraniana pela Rússia, Biden o vê por meio de uma lente moral, apresentando-o como uma luta entre democracia e autocracia. Essa diferença subjacente de perspectiva pode levar a uma divergência de políticas em circunstâncias variáveis. Embora Harris aceitasse um acordo de cessar-fogo bilateral, ela seria menos propensa do que Biden – cujo relacionamento pessoal com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky é, na melhor das hipóteses, morno – a pressionar a Ucrânia a negociações indesejadas, especialmente enquanto o território ucraniano permanece sob ocupação ilegal.”
Ainda segundo Brenner, “A questão Israel-Palestina marca a divisão de política externa mais significativa entre Biden e sua vice-presidente. Harris é mais sensível às supostas violações israelenses do direito internacional (cometidas com a cumplicidade dos EUA) em Gaza e na Cisjordânia. Ela também é geralmente mais favorável ao Estado palestino do que Biden, que nominalmente é a favor de uma solução de dois Estados, mas tem sido muito respeitoso com o primeiro-ministro de extrema direita de Israel, Binyamin Netanyahu. Embora Harris continuasse a reconhecer Israel como o parceiro de segurança regional mais importante dos Estados Unidos e garantisse sua capacidade de se defender, ela exerceria mais pressão sobre seu governo para defender o Estado de Direito. Essa abordagem diferente do “relacionamento especial” representaria uma ruptura com as administrações anteriores, mas alinharia a política dos EUA mais de perto com a da maioria de seus aliados.”
No artigo “US Foreign Policy in 2025”, Joseph S. Nye, Jr afirma que é muito difícil saber qual será a política dos Estados Unidos em 2025, primeiro pelo motivo óbvio de que ninguém sabe quem será eleito em novembro próximo e, segundo, porque “líderes e atores estrangeiros também têm um “voto”, no sentido de que seu comportamento pode mudar repentinamente a agenda dos EUA e as probabilidades de vários resultados. A modesta política externa que George W. Bush delineou durante sua campanha de 2000 não era nada parecida com a política que ele seguiu após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Quem sabe que tipo de surpresa Vladimir Putin ou Xi Jinping podem ter reservado.”
Ainda assim, segundo Nye, “As declarações de campanha fornecem algumas dicas sobre a política, é claro. Se Harris vencer, pode-se esperar uma continuação da política de Biden, embora com alguns ajustes. Ela parece colocar menos ênfase na promoção da democracia – um dos maiores temas de Biden – e diz um pouco mais sobre os direitos palestinos. Geralmente, porém, ela seguiria a mesma política de reforçar as alianças dos EUA e promover o multilateralismo. Trump é mais imprevisível. Embora todos os políticos espanquem a verdade, ele é notório a esse respeito. É difícil saber quais declarações podem se tornar políticas. Sua retórica sobre unilateralismo e rebaixamento de alianças e instituições multilaterais nos diz algo sobre o teor de sua política externa, mas não responde a perguntas sobre questões específicas.”
Nye observa também que há algumas semelhanças entre os dois candidatos “O mais importante são suas posições sobre a China. Existe agora um amplo consenso bipartidário de que a China não jogou limpo em questões comerciais e de propriedade intelectual, e que seu comportamento assertivo nos mares do Leste e do Sul da China está ameaçando aliados americanos como Japão e Filipinas. A China disse muitas vezes que não descartaria o uso da força na tomada de Taiwan, que considera uma província renegada. De muitas maneiras, Biden continuou a política de Trump para a China, e Harris provavelmente faria o mesmo, com alguns ajustes. Uma segunda semelhança entre os candidatos é a rejeição das políticas econômicas neoliberais. Durante a presidência de Trump, os EUA abandonaram a abordagem tradicional republicana (era Reagan) ao comércio, aumentaram as tarifas e rebaixaram a participação na Organização Mundial do Comércio. Tudo isso foi feito sob a orientação do representante comercial dos EUA, Robert Lighthizer, que continua influente no círculo de Trump.”
Nye destaca ainda que “Uma das maiores diferenças diz respeito às posições dos candidatos sobre a Europa. Trump e seu companheiro de chapa, J.D. Vance, deixaram claro que têm pouco interesse em apoiar a Ucrânia e a Otan. Trump afirma que acabaria com a guerra rapidamente por meio de negociações, e é difícil ver como isso poderia ser feito sem enfraquecer drasticamente a Ucrânia.” Afirma também “enquanto Trump atribui baixas prioridades à África e à América Latina, pode-se esperar que Harris preste mais atenção a essas regiões.”
A “grande diferença” segundo Nye está na questão do “softpower”, o “poder brando” dos Estados Unidos, ou seja, “a capacidade de garantir os resultados desejados por meio da persuasão, em vez de coerção ou pagamento.”. Segundo Nye, “Durante sua presidência, Trump optou por um unilateralismo do “America First” que levou outros países a concluírem que seus interesses não estavam sendo considerados. Ele também rejeitou abertamente o multilateralismo, mais dramaticamente ao se retirar do acordo climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde. Biden reverteu esses movimentos, mas Trump provavelmente reverteria a reversão, enquanto Harris manteria a participação americana. Ela também seria mais propensa do que Trump a emitir declarações promovendo os direitos humanos e a democracia.”
Anders Åslund, no artigo “Kamala Harris Must Correct US Ukraine Policy”, afirma que “Ao fornecer à Ucrânia apoio militar, político e financeiro antecipado, o governo do presidente dos EUA, Joe Biden, salvou o país de ser invadido pela Rússia. No entanto, desde novembro de 2022, o conflito está preso em um impasse, o que não é vantajoso para a Ucrânia. Se eleita, Kamala Harris deve ter como objetivo explícito transformar a horrenda guerra de atrito de hoje em uma vitória ucraniana. A surpreendente ofensiva da Ucrânia na região russa de Kursk pode ser o início de um desenvolvimento mais promissor.”
De acordo com Åslund, “Para Harris, o impasse atual é uma oportunidade. Dois terços dos americanos estão torcendo pela vitória da Ucrânia, e ela já lidou extensivamente com a Ucrânia, tendo se encontrado com o presidente Volodymyr Zelensky seis vezes e liderado a delegação dos EUA na Cúpula de Paz da Ucrânia na Suíça em junho. Como vice-presidente dos EUA, ela seguiu o exemplo de Biden; mas como presidente, ela poderia virar a guerra e fazer da Ucrânia uma de suas grandes questões vencedoras.” Ainda segundo o autor “A guerra na Ucrânia pode ser uma bênção para Harris, mas ela deve corrigir os erros de Biden e fornecer os recursos adicionais de que a Ucrânia precisa para derrotar a Rússia. Ao apreender ativos soberanos russos e persuadir os aliados dos EUA a fazer o mesmo, ela pode ajudar a Ucrânia a vencer sem colocar nenhum fardo orçamentário adicional sobre os americanos.”
No artigo “Would Harris or Trump Be Better for the World Economy?” Shang-Jin Wei afirma: “Uma grande incerteza que paira sobre a economia global é quem será o próximo presidente dos EUA. Embora os Estados Unidos abriguem apenas 5% da população mundial e contribuam com apenas 15% do valor agregado global, seu papel na formação da economia mundial é incomparável. Diante disso, as políticas comerciais do próximo governo – seja liderada pela vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, ou pelo ex-presidente Donald Trump – terão, sem dúvida, efeitos colaterais significativos. Sabemos o que Trump provavelmente fará: aumentar as tarifas dos EUA sobre as importações da China para 60% e impor uma tarifa de 10% sobre as importações de todos os outros países. Essas políticas prejudicariam mais as exportações chinesas para os EUA, mas as exportações americanas de muitos outros países também diminuiriam, embora alguns – aqueles que fornecem substitutos para produtos chineses – possam se beneficiar. As economias que dependem de cadeias de suprimentos que incluem a China também sofreriam. Muitas empresas sul-coreanas e japonesas exportam peças e componentes para a China, onde são combinados com peças e componentes fabricados na China e, possivelmente, montados em produtos finais, para exportação para os EUA e outros lugares. Isso implica que qualquer redução nas exportações chinesas para os EUA se traduziria em uma diminuição nas exportações do Japão, Coréia do Sul e outros como eles. Os esforços para contornar o problema transferindo as cadeias de suprimentos para a Índia, Vietnã e outros lugares podem compensar parcialmente esse efeito, mas essas soluções provavelmente serão caras e incompletas. Os efeitos do “choque comercial de Trump” não terminariam aí. Se as tarifas prejudicarem o crescimento na China, a demanda chinesa por importações poderá cair, desferindo mais um golpe nas economias das quais a China é um dos principais parceiros comerciais, como Japão, Coreia do Sul e países do Sudeste Asiático. As tarifas propostas por Trump também teriam dois efeitos menos óbvios – nenhum dos quais é desejável para os EUA. Primeiro, eles atuariam como um obstáculo às exportações dos EUA para muitos países, porque o déficit comercial geral daquele país é determinado menos pela própria política comercial do que pela escassez de poupança nacional em relação ao investimento. Dado que as tarifas propostas por Trump provavelmente não aumentariam significativamente a poupança dos EUA, uma redução nas importações seria acompanhada por uma diminuição nas exportações. Com isso, a importância relativa dos Estados Unidos como parceiro comercial para muitos países seria menor.”
Já em relação a Kamala Harris, o autor afirma que “Os contornos da provável política comercial de Harris são menos claros. Pode-se imaginá-la defendendo a abordagem comercial do presidente dos EUA, Joe Biden, que é um pouco menos errática do que a de Trump, mas continua sendo uma praga no legado da política econômica de Biden. Na verdade, a continuação das políticas de Biden ainda promoveria o declínio relativo dos Estados Unidos como país comercial, mas não tão rapidamente quanto as tarifas de Trump. Mas há outra possibilidade. Inspirando-se em dois outros presidentes democratas recentes, Barack Obama e Bill Clinton, Harris pode tentar reviver a liderança dos EUA no comércio global, principalmente juntando-se à Parceria Transpacífica Abrangente e Progressiva (CPTPP), com Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã. O CPTPP evoluiu da Parceria Trans pacífica – um acordo que Obama liderou, mas nunca foi ratificado, devido à decisão de Trump em 2017 de se retirar dele. Foi graças à liderança japonesa que o CPTPP foi ratificado no ano seguinte.”
O Prêmio Nobel de Economia, José E. Stiglitz, no artigo “What a Trump Victory Would Mean for the US Economy” afirma que “Os eleitores americanos enfrentam uma escolha não apenas entre diferentes políticas, mas entre diferentes objetivos políticos. Embora a vice-presidente Kamala Harris, a candidata democrata, ainda não tenha detalhado totalmente sua agenda econômica, ela provavelmente preservaria os princípios centrais do programa do presidente Joe Biden, que incluem políticas fortes para manter a concorrência, preservar o meio ambiente (incluindo a redução das emissões de gases de efeito estufa), reduzir o custo de vida, manter o crescimento, aumentar a soberania e resiliência econômica nacional e mitigar a desigualdade. Por outro lado, seu oponente, o ex-presidente Donald Trump, não tem interesse em criar uma economia mais justa, robusta e sustentável. Em vez disso, a chapa republicana está oferecendo um cheque em branco para empresas de carvão e petróleo e se aproximando de bilionários como Elon Musk e Peter Thiel. É uma receita para tornar a economia dos EUA mais fraca, menos competitiva e menos igualitária.”
Ainda segundo o autor “As políticas tributárias propostas por Trump são igualmente falhas. Lembre-se do corte de impostos de 2017 para corporações e bilionários, que não conseguiu estimular investimentos adicionais e apenas incentivou a recompra de ações. Embora os republicanos nunca tenham visto um corte de impostos para os ricos que não amassem, alguns pelo menos reconheceram que a política aumentaria os déficits orçamentários e, portanto, adicionaram uma cláusula de caducidade, que começa a entrar em vigor em 2025. Mas Trump, ignorando as evidências de que os cortes de impostos “gotejantes” não funcionam e não se pagam, quer renovar e aprofundar o corte de 2017 de maneiras que adicionariam trilhões de dólares à dívida nacional.”