Fernando Couto Garcia*
Alerta Científico e Ambiental – Vol. 27 – nº 20 – maio de 2021.
Artigo originalmente publicado no sítio Consultor Jurídico (25/05/2021)
No último dia 19, a imprensa noticiou decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que, no bojo do Inquérito nº 8.975/DF, quebrou sigilos e afastou cautelarmente do cargo boa parte da cúpula do Ibama [1].
Além de deferir medidas de investigação dos fatos, a decisão suspendeu liminarmente os efeitos de ato administrativo, o Despacho nº 7036900/2020-Gabin, da presidência do Ibama que considerara revogada tacitamente a Instrução Normativa nº 15, de 2011, da própria autarquia.
Uma breve pesquisa no Google mostra que esse mesmo despacho administrativo [2] já fora questionado na Ação Civil Pública nº 1009665-60.2020.4.01.3200, ajuizada em 4/6/2020, quase um ano atrás, por três associações: o Greenpeace Brasil, o Instituto Socioambiental e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) [3].
Em notícia publicada em seu sítio eletrônico em 27/11/2020, a Abrampa informa que a liminar pleiteada nessa ação civil pública foi indeferida pelo juízo da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas [4].
Por razão desconhecida, a ação civil pública, pesquisada pelo número acima indicado, não aparece no andamento processual da Justiça Federal do Amazonas, nem no sistema PJe da Justiça Federal da 1ª Região, inviabilizando a consulta ao teor da decisão do juízo da instância inicial que negou a liminar. Contudo, o indeferimento é indício de que a suposta ilegalidade do despacho da presidência do Ibama é, no mínimo, questão sujeita a debate.
A leitura do inteiro teor do despacho demonstra a razoabilidade da interpretação que atribui aos artigos 36 e 37 do Código Florestal, que preveem a licença de transporte e a licença de exportação, no sentido de que ambas as licenças podem compor um único instrumento (poderíamos dizer alvará), o DOF (Documento de Origem Florestal) Exportação. O despacho destaca, com razão, que essa interpretação segue a diretriz do artigo 1º, § 2º, da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019), que estabelece que as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas devem ser interpretadas em favor da liberdade econômica.
No item V de sua decisão monocrática, o ministro Alexandre de Moraes não enfrenta estas questões. Em uma sucessão de perífrases, a decisão cita o artigo 225 da Constituição — como se o fundamento do despacho em questão não fosse a execução da proteção ambiental nos termos da lei aplicável —, transcreve doutrina francesa, repete truísmo do ministro Celso de Mello que diz que meio ambiente é patrimônio público e menciona até o tratado da União Europeia.
Quando se espera que a tradicional demonstração de erudição dê lugar ao fundamento concreto, a decisão sustenta que a fumaça do bom Direito estaria no fato de que o despacho “foi emitido mesmo com parecer contrário de servidores públicos experientes do órgão e somente após apreensões de algumas cargas que teriam chegado aos EUA e à Europa sem documento idôneo”.
Parecer é opinião e pode ser aceito ou rejeitado, desde que de modo fundamentado, como fez o Despacho nº 7036900/2020-Gabin. Evidentemente, os fundamentos da rejeição poderiam ser discutidos, mas a decisão não o faz, nem de modo sumário.
O fato de o parecer rejeitado ter sido produzido por servidor experiente também não o torna, só por isso, correto, e muito menos obrigatório, porque consistência da fundamentação não se mede pela idade de quem a apresenta. A burocracia estatal, mesmo que composta de pessoas honestas, tem seus próprios interesses e frequentemente age para persegui-los, apresentando-os como se fossem o “interesse público”; tratá-la como neutra destoa da ampla experiência prática que o ministro Alexandre de Moraes acumulou sobre o funcionamento da Administração Pública antes de seu ingresso no Supremo Tribunal Federal, a qual lhe proporcionou capacidade de discernimento ímpar mesmo entre ministros mais vividos, demonstrada, entre outros casos, na discussão sobre indulto presidencial (ADIn 5.874) e no caso da responsabilidade municipal por explosão de fábrica de fogos de artifício (RE 136.861/SP).
O raciocínio adotado na decisão proferida no âmbito da operação “Akuanduba” lembra surpreendentemente a infundada crítica que alguns leigos fazem ao poder do STF, composto por magistrados indicados pelo presidente da República e confirmados pelo Senado, de rever decisões de juízes de carreira, supostamente legitimados de modo superior por glorioso concurso público e às vezes com décadas a mais de judicatura que um ministro egresso da advocacia ou do Ministério Público. Esta crítica, evidentemente, não procede, inclusive porque julgar é uma prudência e diferentes experiências contribuem para que o STF exerça melhor sua função constitucional [5]. Do mesmo medo, o diretor de uma autarquia federal não pode ser compelido, sem previsão em lei, a concordar com a manifestação de servidores da entidade, em indevida inversão da hierarquia administrativa prevista em lei.
A circunstância de o despacho da presidência do Ibama ter sido editado após a chegada de cargas ao Hemisfério Norte indica que a repercussão econômica da questão provavelmente levou os empreendedores interessados a expor o problema às autoridades competentes e que estas, após analisar o tema, decidiram de modo fundamentado em favor do pleito. Não há nada de errado nisso, da mesma maneira que não há nada de errado em um juiz conceder uma ordem de Habeas Corpus após receber em seu gabinete o advogado do paciente, mesmo que esse paciente já tenha até mesmo sido condenado por outros crimes, a não ser, é claro, para aqueles que ainda enxergam o contato entre autoridades públicas e os que sofrem os impactos de suas decisões como uma maniqueísta contraposição entre o profano interesse privado e o sagrado interesse público, como parece ser o caso da autoridade policial, a julgar pelo trecho de seu relatório transcrito na decisão judicial. Não é casual que o nome escolhido para a operação seja de uma divindade. Não pode haver encontro entre a virtude e o pecado, pensam os que se consideram virtuosos.
Por fim, o princípio da prevenção, mencionado no final da decisão, só poderia ser aplicado se tivesse sido observado o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ou seja, se tivessem sido “consideradas as consequências práticas da decisão”. Prevenção não é burocracia inútil, irracionalidade, nem repetir o mesmo trabalho duas vezes para ter certeza de que ele está correto, como se os recursos disponíveis fossem infinitos. O fundamento da decisão administrativa suspensa é de que o DOF-Exportação é licença para transporte e para exportação, consubstanciadas em um mesmo instrumento, o que é compatível com os artigos 36 e 37 do Código Florestal. A decisão judicial não demonstra a razão pela qual este entendimento contrariaria o princípio da prevenção nem qualquer norma legal. Até agora, a impressão extraída da leitura é de que o despacho da presidência do Ibama contrariou uma instrução normativa revogada, daquelas que antigamente agentes públicos se orgulhavam de conhecer e citar, recebendo a enérgica censura do Poder Judiciário, que logo enquadrava o burocrata e mostrava qual era a hierarquia de normas do sistema jurídico. Não há como evitar a surpresa quando é o administrador público que argumenta de modo consistente com base na lei e nos princípios constitucionais e acaba censurado pelo Poder Judiciário por não ter aplicado uma instrução normativa ultrapassada.
Se há indícios de infrações criminais, eles devem ser investigados, dedicando-se o Supremo a controlar a legalidade da investigação policial em curso. Contudo, a análise da validade de despacho administrativo encontra seu melhor foro de discussão no juízo da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, competente para processar e julgar a Ação Civil Pública nº 1009665-60.2020.4.01.3200, sob a supervisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e do Superior Tribunal de Justiça, que deverá interpretar os artigos 36 e 37 do Código Florestal. O esvaziamento da competência das instâncias ordinárias em um inquérito que discute uma infinidade de outros assuntos, por meio de uma medida cautelar sem previsão legal específica, não é a providência mais adequada para que a proteção ao meio ambiente se dê nos limites do Estado de Direito e na forma da legislação processual.
* Mestre e doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e procurador do Município de Belo Horizonte.
Referências:
[1] A íntegra da decisão pode ser consultada em https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-moraes-ordena-busca-ricardo.pdf.
[2] A íntegra do despacho administrativo pode ser consultada em https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2021/05/madeira-Despacho-Bim-SEI_IBAMA-7036900.pdf.
[3] A petição inicial e os anexos podem ser consultados em http://climatecasechartigocom/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2020/20200406_ACP-1009665-60.2020.4.01.3200_complaint.pdf.
[4] Notícia disponível em https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=939&modulo=NOT%C3%8DCIA.
[5] A este respeito: Carlos Bastide Horbach. “É preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal?”, 17 de novembro de 2013, texto disponível em https://www.conjur.com.br/2013-nov-17/analise-constitucional-preciso-deliberacao-supremo-tribunal-federal.