O assessor internacional da Presidência, Felipe Martins, cujo primeiro emprego na vida foi esse, disse que o “Itamaraty era um escritório da ONU”, obviamente se referindo ao Itamaraty anterior ao governo Bolsonaro, o mesmo Itamaraty considerado uma das mais profissionais chancelarias do mundo.
O Brasil foi país fundador das Organização das Nações Unidas, signatário da ata na primeira reunião na qual estavam apenas os Aliados da 2ª Guerra. A esmagadora maioria dos países membros entrou depois da primeira ata, alguns bem depois, como a Espanha que só entrou em 1954, dez anos após a fundação.
Obviamente que grande parte dos 193 países membros de hoje nem existiam como Estados em 1945, mas o Brasil estava desde o primeiro momento da ONU, não só como fundador histórico, mas também como um dos redatores dos estatutos e convenções iniciais, tendo por essa condição presidido a primeira Assembleia Geral, o que dá ao País até hoje a prerrogativa de abrir a Assembleia Geral anual, uma situação única que o atual governo despreza ao atacar a Organização como se inimiga fosse. Além de não dar atenção, estamos deixando de pagar as cotas anuais e demonstrando pouco caso com a entidade.
Martins obviamente desconhece o que é a ONU, sua história e as entidades que se abrigam sob seu guarda, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Mundial do Comércio (OMC), a União Internacional de Telecomunicações (UIT), a Marítima (OMI), a de Alimentação e Agricultura (FAO), a de Refugiados (ACNUR), a Internacional de Energia (AIE), e a de Aviação Civil Internacional (OACI).
Uma dessas emanações da ONU é a Convenção sobre Direitos do Mar, que estabelece regras referentes ao direito aplicável aos espaços marítimos no mundo, cuja legislação faz parte da Lei Internacional que regula a questão de uso e exploração dos oceanos.
A regra internacional aceita até a Segunda Guerra era de que as águas territoriais de um país teriam a extensão de um tiro de canhão do fim do século XIX – 12 milhas náuticas – iguais a 22,2 km. No pós-guerra, após longos debates, foi assentada a doutrina das 200 milhas marítimas como extensão de águas territoriais, quando as 200 milhas (370,4 km) passaram a ser aceitas por um consenso não escrito e reconhecido ora sim, ora não, sendo esse o 2º conceito de limite de águas territoriais.
O Brasil, pela competência do Itamaraty, tentou e conseguiu empurrar o limite para um conceito ousado: é a “extensão da plataforma continental”, aí sendo o 3º limite extrapolado de águas territoriais. No caso do Brasil significa mais 963 mil quilômetros quadrados além dos 3,6 milhões de quilômetros quadrados incorporados pelo conceito de 200 milhas, mas esse 3º conceito é ainda discutível, propulsado pelo Itamaraty pré-Bolsonaro e referendado pela Convenção da ONU sobre Direitos do Mar em abril de 2007.
A exploração do pré-sal pelo Brasil está apoiada por esse manifesto da Convenção, que pode ser contestado em suas bases doutrinárias frágeis: é a “extensão da plataforma continental”, uma forçação de barra em termos de direito do mar. Está em circulação uma fórmula pela qual a extensão do limite para a “plataforma continental” se aplique exclusivamente ao Estado brasileiro e sua extensão jurídica, no caso a PETROBRAS, não sirva para o Estado brasileiro VENDER LOTES do pré-sal a empresas de outros países, quer dizer, aceita-se a exploração pelo Brasil, MAS não a venda de concessões para empresas de outras bandeiras.
Pode-se dizer que a ONU é o “cartório de registro imobiliário” que garante o pré-sal para o Brasil, embora suas bases jurídicas não sejam tão sólidas.
Nesse contexto, o Governo Bolsonaro ataca a ONU, entidade fundada basicamente pelos EUA e pelo Brasil nos momentos finais do grande conflito em 1945, sendo o Brasil o primeiro Presidente da Assembleia Geral (Oswaldo Aranha). O atual governo joga fora uma influência histórica do Brasil sobre as próprias bases constitutivas da ONU, que o fazem o País número 1 em Missões de Paz das Nações Unidas, tal seu prestígio na entidade.
Tudo pode ser posto a perder com uma nova diplomacia destrutiva, contra a ONU, as entidades multilaterais, as internacionalistas e de colaboração solidária entre países, numa visão de mundo ideológica confusa e conspirativa, que nem sequer chega a ser nacionalista, pode-se dizer que é tribalista.
O Brasil em organismos internacionais
Este ano haverá escolhas de interesse do Brasil na Presidência do New Development Bank, o banco dos BRICS, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e na Organização dos Estados Americanos (OEA). Qual será a política do Brasil para indicar brasileiros para esses cargos e qual o critério de indicação? Não adianta indicar amigos de churrasco, pois fora do Brasil é preciso currículo.
No caso do Banco dos BRICS, a vaga é do Brasil por consenso acertado na fundação do banco, MAS pode haver veto se o indicado for um nome a serviço de Washington. Os dois nomes que hoje circulam são de “brasamericans”, um deles formado na Universidade de Chicago, a catedral do neoliberalismo, que nada tem a ver com a lógica de um banco dos BRICS. Esse banco se propõe a estar fora do circuito de interesses Wall Street-Casa Branca, dominado pelos EUA, por ser uma instituição com visão geopolítica não derivada do eixo anglo-americano. Portanto, o nome que o Brasil apresentar tem que ser no mínimo não atrelado à lógica de Washington como os dois que hoje se promovem.
No caso do BID, a vaga será por eleição em Junho e o Brasil tem que se candidatar. Qual o nome? É preciso procurar os votos. O último candidato brasileiro, João Sayad, perdeu por pouco. Acompanhei de perto a eleição de 2005, que perdemos para o candidato da Colômbia, Luís Alberto Moreno. Ele está no cargo até hoje, mas naquele pleito a Colômbia trabalhou voto a voto por seu candidato, a começar pelo dos EUA, que vale 30%, mas a decisão foi de países pequenos.
Já no caso da OEA, o atual Secretário-Geral, Luís Almagro, ex-chanceler do Uruguai, é candidato favorito à reeleição, mas há outro candidato, do Peru, o ex-chanceler Hugo de Zela, além da candidata ex-chanceler do Equador, Maria Fernanda Espinosa, com poucas chances. A posição do Brasil já deveria ser conhecida. A OEA readquiriu um alto protagonismo nas crises atuais da América Latina. Depois dos EUA o voto do Brasil é fundamental, desde que já tivemos o cargo de Secretário-Geral exercido com brilho pelo embaixador Baena Soares. Qual é hoje o protagonismo do Brasil nas Américas e na OEA?
O capital político do Brasil na ONU
A base do capital político dos EUA e da Rússia na ONU é a força militar e a presença como membros permanentes do Conselho de Segurança. França e Reino Unido são igualmente membros permanentes por razões históricas que vêm da aliança na Segunda Guerra.
A China é um caso especial pelo histórico da então China Nacionalista de Chiang Kai-shek, aliada na guerra contra o Japão, cuja participação no Conselho figurou até 1973. Taiwan sempre foi controvertida, com a cadeira então herdada a partir de 1976 pela República Popular da China, manobra diplomática complexa fruto da geopolítica de poder.
Já o prestígio do Brasil na ONU, além da base histórica de país fundador, tem como grande lastro a posição equidistante ideologicamente dos blocos majoritários – EUA e Rússia – e da alta capacidade da diplomacia brasileira em se colocar bem nas questões geopolíticas, como o longo conflito Israel versus palestinos, assim como em conflitos regionais, que ocorreram desde a Segunda Guerra. Esse é o capital do Brasil na ONU.
Com o atual governo TODO ESSE CAPITAL PODERÁ SER PERDIDO pelo Brasil ao se apresentar perante o mundo como Estado vassalo dos EUA, ou seja, um grande Porto Rico sem passaporte american, tornando-se aos olhos do mundo, INCLUSIVE DOS EUA, um Estado secundário e de nenhum valor diplomático.
Ao desprezar a ONU, pela boca do Assessor internacional da Presidência, o Brasil lança ao mar uma herança diplomática histórica, queimando pontes pela ignorância, pela falta de noção geopolítica, pelo primitivismo fruto do completo desconhecimento da formidável História brasileira e de seu papel no mundo. Um dos cinco grandes países do planeta por seu território contínuo, sua população multiétnica e sua rica cultura nacional.