A liberação de Meng Wanzhou e o uso do dólar como arma na guerra econômica

    Em meio ao crescente tensionamento das relações Estados Unidos-China, o acordo que permitiu à diretora financeira da Huawei – fabricante chinesa de equipamentos de telecomunicações – Meng Wanzhou retornar para a China depois de permanecer quase três anos em prisão domiciliar em Vancouver, no Canadá, acusada pelos Estados Unidos de ter realizado negócios com o Irã usando a moeda americana, é um acontecimento importante, sobretudo pelo potencial que tem de aliviar parcialmente as tensões entre os dois países.

    A detenção da executiva chinesa no Canadá a pedido dos Estados Unidos não só era a face mais pública e também a mais humana da guerra comercial que os Estados Unidos travam contra a China, como também encerra importantes lições a respeito de como os norte-americanos estão transformando sua moeda em instrumento de guerra econômica contra seus adversários e os riscos que correm ao fazer isso. 

    Meng foi presa no Aeroporto Internacional de Vancouver, em dezembro de 2018, por um mandado dos Estados Unidos, e indiciada por acusações de fraude bancária e eletrônica por supostamente enganar o HSBC sobre as negociações comerciais da Huawei no Irã. O suposto engano teria sido realizado em uma apresentação em PowerPoint de 2013 que ela fez para um executivo do HSBC em uma casa de chá de Hong Kong com o objetivo de tranquilizar o banco. De acordo com o Departamento de Justiça, Meng teria feito propositalmente declarações falsas que escondiam o controle da Huawei sobre a Skycom Tech Co. sediada em Hong Kong – que operava no Irã – permitindo-lhe acessar serviços bancários do HSBC violando, assim, as sanções dos EUA contra aquele país.

    Trata-se da aplicação extraterritorial de uma lei americana, uma vez que a mencionada empresa tinha sede um Hong Kong e o seu “crime” foi ter utilizado a moeda americana para realizar algum negócio com um país que estava sob embargo econômico dos Estados Unidos. Isso nos remete à discussão de duas questões importantes.

    Primeiro, a do caráter imperial dos Estados Unidos que considera, digamos, normal impor suas leis sobre indivíduos e empresas fora de seu próprio território. Ou seja, uma pessoa que não é cidadã dos Estados Unidos (Meng Wanzhou), que estava passando por um aeroporto de outro país (Vancouver, Canadá), é presa a pedido do Departamento de Justiça americano porque teria supostamente omitido para um banco não americano (o HSBC), as ligações de sua empresa (Huawei), com sede em Shenzen (China), com outra empresa chinesa, com sede em Hong Kong, (Skycom Tech Co.), que fez negócios com o Irã. Pergunta: o que os Estados Unidos teriam a ver com isso?

    Essa pergunta nos leva à segunda questão, que é o uso cada vez mais frequente do dólar como arma de guerra pelos Estados Unidos, pois o que justificou tudo isso foi o fato de a referida transação ter sido realizada em dólares americanos.

    Desde o tratado de Bretton Woods, ao final da Segunda Guerra, o dólar tornou-se a moeda internacional por excelência. Atualmente mais de 90% de todas as transações financeiras internacionais são realizadas em dólares, seja para o fechamento operações de comércio internacional, seja para a movimentação de capitais de um país para outro. Isso proporciona aos Estados Unidos o que se chama de poder de senhoriagem que é a diferença entre o custo de produzir a moeda e seu efetivo poder de compra.

    Como o custo de imprimir os dólares é quase desprezível, toda a emissão de dólares vira poder de compra dos Estados Unidos, que podem utilizar os dólares que emitem para pagar suas importações, comprar ativos pelo mundo etc. É por essa razão que os enormes déficits comerciais americanos nunca foram problema. Diferentemente de nós, por exemplo, que se tivermos dificuldades com nossa balança de pagamentos precisaremos restringir nossas importações ou recorrer ao FMI, os Estados Unidos podem resolver o problema simplesmente imprimindo dólares, que todo mundo aceita.

    A questão é que o uso cada vez mais frequente do dólar, como instrumento de guerra econômica, tem levado muitos países a considerar a possibilidade de criar sistemas alternativos de pagamento que evitem a utilização da moeda americana como meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor.

    A China, por exemplo, vem progressivamente tomando iniciativas para internacionalizar a sua moeda, o renminbi, para poder fechar negócios em sua própria moeda, sem precisar recorrer à intermediação da moeda americana. Empresas e países da Europa também gostariam de ter um sistema próprio de pagamento denominados em euros, para não estarem sujeitos à chantagem americana, como no caso do Irã.

    Yanis Varoufakis, ex-ministro da economia da Grécia e professor da Universidade de Atenas, lembra em artigo publicado no site Project Syndicate (23/09/2021) que “depois que as empresas europeias concordaram com as sanções de Trump ao Irã, as autoridades da UE concluíram razoavelmente que, enquanto os EUA controlarem o sistema de pagamentos, a Europa estará à mercê da América em qualquer confronto envolvendo dinheiro. Então, eles decidiram que a Europa precisa de um sistema de pagamentos que o governo dos EUA não pode bloquear”.

    Não se trata, obviamente de algo simples de ser feito, nem pelos chineses, nem pelos europeus, pois a questão vai além do uso de outra moeda como meio de troca ou unidade de conta. Para que haja um sistema alternativo de pagamentos internacionais denominado em outra moeda, ele precisa ter liquidez, ou seja, que os detentores de riqueza precisam aceitar manter parte dela em ativos denominados nessas moedas, seja o renminbi, seja o euro, como reserva de valor.

    Para isso é preciso, obviamente, que esses ativos existam e que as pessoas confiem neles para manter sua riqueza denominada naquela moeda, seja por um dia, seja por uma década. No caso do dólar, esse instrumento existe, são títulos do tesouro americano e a enorme dívida dos Estados Unidos. No caso da Europa seria preciso que houvesse um vasto mercado de títulos denominados em euros, ou seja, uma dívida comum de toda a Europa. Mas isso gera problemas políticos, pois como lembra Varoufakis, “Isso, por sua vez, exige um tesouro comum, que só pode ser legitimado abandonando a arquitetura intergovernamental da UE em favor do maior pesadelo das elites europeias: uma federação democrática”.

    Já no caso da China, a situação é outra. Seria preciso que o governo chinês permitisse que o renminbi se tornasse plenamente conversível e isso exigiria a abertura completa de sua conta de capitais, o que aparentemente o governo da China não está disposto a fazer no momento, uma vez que o controle do sistema financeiro tem sido essencial para alavancar seu rápido crescimento econômico.

    Por conhecer essas dificuldades e saber que o dólar continuará reinando no mercado internacional ainda por muito tempo, os Estados Unidos não titubeiam em usar sua moeda como instrumento de guerra econômica, mesmo que isso vá erodindo a confiança internacional de que ela desfruta.

    Mas talvez esse excesso de confiança seja um erro, pois ao abusar de um privilégio que já não corresponde à realidade internacional de um mundo multipolar no qual os Estados Unidos já não são a única potência hegemônica, o governo americano pode estar cavando com os próprios pés o abismo em que um dia, mais cedo ou mais tarde, poderá cair.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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    2 COMENTÁRIOS

    1. Excelente artículo del doctor Paulino, se evidencia el poder que a Estados Unidos le entrega la exclusividad para emitir la moneda internacional por excelencia. Como plantea el autor, dicho poder no tiene actualmente un límite puesto que es casi imposible sustituir el dólar como moneda de intercambio internacional por excelencia

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