Segundo dados divulgados pela OMS (Organização Mundial de Saúde), enquanto o número de infecções e mortes provocadas pela pandemia da Covid-19 diminuem de forma expressiva nos países desenvolvidos, nos países pobres e em desenvolvimento assiste-se a um movimento no sentido contrário. Na virada do ano, a América do Norte e a Europa estavam no olho do furacão da pandemia, respondendo por 72% dos casos diários de contaminação e 73% das mortes. Agora registram apenas 22% dos casos diários e 28% das mortes, enquanto a América Latina, a Ásia e a África respondem juntas por 78% dos casos e 72% das mortes.
Essa mudança tem a ver diretamente com o acesso às vacinas. Segundo a Unicef, os governos de todo o mundo já encomendaram 11,6 bilhões de vacinas, o que seria suficiente para vacinar toda a população mundial acima de 19 anos (5 bilhões de pessoas). Ocorre que dos 11,6 bilhões de encomendas de doses, 4,28 bilhões são da União Europeia, 3,56 bilhões dos Estados Unidos e o resto do mundo precisa se virar com o que sobra. Se os países ricos não se mobilizarem rapidamente para ajudar os pobres, as novas cepas do vírus que estão surgindo diariamente naqueles países certamente voltarão a aparecer nos países ricos e o mundo não sairá nunca desse círculo vicioso.
O número de contaminações em nível global caiu 14% na semana encerrada em 23/05, graças à forte redução na Europa (25%) e Estados Unidos (20%). Em compensação, nos países em desenvolvimento, a tendência foi no sentido oposto. Brasil e Índia continuam puxando a fila, mas outros países menores, como Argentina e Uruguai apresentam taxas de crescimento da doença também alarmantes.
No Brasil, ocorreu um aumento de 451 mil casos entre 17 e 23 de maio, uma variação de 3% no número total de casos. Na Índia os números são assustadores: 1,8 milhão de casos em sete dias, ainda assim 23% mais baixo que semana anterior, quando o número de novos casos ultrapassou os 400 mil por dia. Três dos locais com maior número de novos casos estão na América do Sul. Além do Brasil, que ocupa o segundo lugar mundial na semana, a Argentina aparece com 210 mil novos casos, superando os EUA. A Colômbia vem na quinta posição, com 107 mil novos casos. O número total de mortes no Brasil superou à de 40 países do continente europeu juntos: 13,6 mil mortes no Brasil contra 13 mil mortes nos 40 países europeus. A liderança em número de mortes continua na Índia: 28 mil óbitos em uma semana.
A discussão pegou fogo depois que o governo Biden anunciou o apoio à quebra temporária de patentes das vacinas enquanto perdurar a pandemia. Os grandes laboratórios farmacêuticos e seus lobistas dentro e fora dos governos, inclusive no Brasil, apressaram-se a apontar os riscos que tal medida teria sobre o incentivo à inovação tecnológica. Trata-se, entretanto, de um discurso falso, uma vez que os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a produção das vacinas mais modernas contra a Covid-19, baseados na tecnologia do RNA mensageiro (mRNA), são o resultado de décadas de pesquisa em laboratórios e universidades públicas financiados com dinheiro dos contribuintes.
Conforme destaca matéria da revista Foreign Affairs (Producing a Vaccine Requires More Than a Patent): “Uma série de avanços nos últimos 60 anos tornou as vacinas de mRNA possível, começando com a descoberta do DNA na década de 1950 e o subsequente desvendamento de como o código genético funciona. As primeiras tentativas de controlar o mRNA não tiveram sucesso em grande parte porque o mRNA é relativamente instável. Mas os cientistas fizeram um grande avanço na última década. Usando nanotecnologia, eles colocaram mRNA em uma pequena partícula lipídica – essencialmente, uma pequena bolha de ácidos graxos – e elaboraram uma versão dessas nanopartículas que poderiam ser injetadas com segurança em humanos. E através de inovações em biologia sintética, eles encontraram maneiras de fabricar rapidamente vacinas baseadas em mRNA”.
O que alguns laboratórios privados fizeram agora foi correr os últimos cem metros dessa supermaratona que vem sendo percorrida há algumas décadas, mas querem levar o prêmio sozinhos. A pandemia da Covid-19 tornou-se um grande negócio para a indústria farmacêutica global. Alguém consegue imaginar algum produto que tenha surgido até hoje no mundo que tenha se tornando uma necessidade imediata para os mais de sete bilhões de habitantes da terra de um dia para o outro? Alguém consegue imaginar quanto dinheiro ganharia quem detivesse o monopólio da produção dessa mercadoria? Pois esse produto existe. É a vacina contra a Covid-19. Não é de estranhar, portanto, que a meia dúzia de fabricantes das vacinas mobilize céus e terra para garantir que a produção e distribuição das vacinas não saia do controle do oligopólio produtor de medicamentos. Ainda vai ser escrita a história dos bilionários que essa pandemia criou.
O próprio consórcio COVAX Facility, embora liderado pela OMS, não deixa de ser um arranjo para organizar a produção e distribuição das vacinas sem romper com a lógica do oligopólio da indústria farmacêutica. De acordo com o plano original, os países mais ricos comprariam vacinas suficientes para pelo menos 10% de suas populações da Covax. Junto com as doações, isso ajudaria a subsidiar vacinas para outras 92 nações pobres que receberiam suas doses gratuitamente.
O objetivo era imunizar 20% da população dos países pobres priorizando os trabalhadores na área de saúde. Mas porque 20%? Como se chegou a esse número? E os restantes 80%? Trata-se apenas de uma conta de chegar com base nos cálculos de encomenda de vacinas feitas pelos países ricos aos laboratórios participantes do consórcio. A verdade é que o mercado, por mais eficiente que possa ser para responder rapidamente às demandas dos consumidores, não tem condições de responder a essa emergência, sobretudo porque, neste caso, trata-se de um oligopólio controlado por meia dúzia de empresas interessadas em maximizar os seus lucros.
A nova tecnologia de produção de vacinas baseada na tecnologia do RNA mensageiro (mRNA) permite a produção de vacinas com menos investimentos e complicações técnicas do que a tecnologias anteriores, baseadas na manipulação de vírus vivos. Estudo elaborado pela Deutsche Post DHL estima que serão necessárias cerca de 28,5 bilhões de doses de vacinas contra a covid-19 para acabar com a pandemia até 2023 e diminuir a propagação de variantes do vírus. A quebra temporária das patentes permitiria que países que possuem as condições técnicas, mas não dominam a nova tecnologia, como Índia, China, Rússia, África do Sul, Brasil, Indonésia, Argentina, Canadá, Israel, entre outros, pudessem acelerar e baratear a produção das vacinas. Não iria acabar com a pandemia de um dia para o outro, mas as chances de se vencer essa guerra, que até agora está sendo vencida pelo vírus, aumentariam significativamente.
Por outro lado se revela a necessidade imprescindível da disponibilização do capital público para a saúde. A revalorização do Estado como a única garantia para à democratização da vacina, fazendo-a chegar a todas as classes sociais. Porém, Estado forte requer governantes fortes no enfoque social. E disso padecem os povos dos países que têm os governantes mais negacionistas no enfrentamento à pandemia, como a Índia, o Brasil, a África do Sul e a Bielorrussia – os polos de propagação das virulentas novas cepas no mundo de 2021.
Uma explicação lúcida e concisa sobre os negócios que estão por trás das vacinas.