A realização, em setembro, do encontro do G20 em Nova Déli, capital da Índia, a bem-sucedida missão espacial indiana à Lua e a acusação do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, de que houve envolvimento do governo indiano no assassinado, no Canadá, em junho passado, de um cidadão canadense, de origem sikh, considerado a principal liderança do movimento separatista sikh no exterior e taxado pelo governo indiano como terrorista, colocou os holofotes da imprensa internacional sobre a Índia nas últimas semanas. O caso do assassinato do separatista sikh deixou os Estados Unidos, que vêm cortejando a Índia, nos últimos anos, em sua estratégia de confrontar a China na região do Pacífico, em situação desconfortável. Ao se calar diante da denúncia canadense, evidencia uma vez mais que o discurso americano de que baseia sua aliança com a Índia em princípios e no compartilhamento de valores democráticos é apenas uma cortina de fumaça para ocultar seus reais interesses.
A Índia, no ano passado, ultrapassou a China como o país mais populoso do planeta, embora sob os demais aspectos não seja páreo para o gigante chinês. Também é a economia que mais deve crescer no mundo, em 2023. No primeiro trimestre deste ano, o PIB indiano cresceu 7,8%. A Índia é hoje a quinta maior economia do mundo, tendo deixado para trás concorrentes, como o Brasil. Poderá se tornar a segunda por volta de 2050, quando se espera que China e Índia ultrapassem os Estados Unidos. Em 2011, a participação da Índia no PIB global era de 2,5% e a do Brasil, 3,5%. Em 2022, a situação se inverteu: a Índia teve 3,4% e o Brasil caiu para 1,9%. A Índia continuará a ser, entretanto, um país muito pobre com um PIB/per capita de cerca de ¼ do PIB/capita do Brasil (US$ 8.900 no Brasil e US$ 2.300 na Índia), situação que deve perdurar, ainda, por muitas décadas, devido à imensa desigualdade social e regional naquele país e à imensa massa de pobres.
Em nível regional, a Índia tem intenção de disputar com a China a primazia na Ásia, embora, por todas as métricas que se utilize, esteja muito distante da China. Isso não a impede, contudo, de tentar também construir seu discurso de civilização milenar para se contrapor à China. Como afirma Maria Cristina Fernandes em reportagem para o jornal Valor (06/09), “Em entrevista à agência de notícias Press Trust of India, no início desta semana, Modi deixou claro que não permitirá que a China reivindique sozinha a condição de civilização milenar que volta ao apogeu: “Por um longo tempo na história mundial, a Índia foi uma das maiores economias do mundo. Mais tarde, devido ao impacto da colonização, nossa pegada mundial se reduziu, mas agora a Índia está novamente em ascensão”.
O que, entretanto, chama mais a atenção no caso da Índia, no jogo da geopolítica mundial, é a tentativa dos Estados Unidos de atrai-la para sua órbita em sua estratégia de confrontar militarmente a China na região do chamado Indo-Pacífico. A expectativa dos Estados Unidos é de que, na eventualidade de um confronto militar com a China, por causa de Taiwan, a Índia coloque suas forças armadas sob o comando centralizado dos Estados Unidos na região. Embora a Índia veja com simpatia esse movimento de aproximação com os Estados Unidos, pelas vantagens imediatas que pode obter em sua estratégia de acelerar o seu desenvolvimento e melhorar suas capacidades militares, é pouco provável que os indianos embarquem na estratégia militar dos Estados Unidos em eventual confrontação entre Estados Unidos e China, pegando em armas contra seu poderoso vizinho.
A Índia tem consciência de que comparativamente à China seu poder econômico e militar é muito limitado e não parece estar disposta a enfrentar um adversário poderoso com quem partilha uma problemática fronteira de milhares de quilômetros. Como afirmou Ashley J. Tellis, em artigo recente na Foreign Affairs (maio de 2023), “embora a China seja claramente o adversário mais intimidador da Índia, Nova Deli ainda procura evitar fazer qualquer coisa que resulte numa ruptura irrevogável com Pequim. Os dirigentes políticos indianos estão perfeitamente conscientes da gritante disparidade entre o poder nacional chinês e indiano, que não será corrigida tão cedo. A relativa fraqueza de Nova Deli obriga- a evitar provocar Pequim, como certamente faria ao aderir a uma campanha militar liderada pelos EUA contra ela. A Índia também não pode escapar à sua proximidade física com a China. Os dois países partilham uma longa fronteira, pelo que Pequim pode ameaçar a segurança indiana de formas significativas – uma capacidade que só aumentou nos últimos anos. Consequentemente, a parceria de segurança da Índia com os Estados Unidos permanecerá fundamentalmente assimétrica durante muito tempo. Nova Deli deseja o apoio americano no seu próprio confronto com a China, ao mesmo tempo que pretende evitar se envolver em qualquer confronto EUA-China que não afete diretamente as suas próprias ações”.
A Índia está interessada nessa aliança com os Estados Unidos sobretudo como forma de ter acesso às tecnologias mais avançadas dos Estados Unidos na área de defesa, mas com o claro objetivo de desenvolver sua própria indústria de defesa e não de se tornar um peão dos Estados Unidos na região. A prioridade da Índia é receber assistência dos Estados Unidos para construir suas próprias capacidades nacionais de forma a lidar com as ameaças futuras de maneira independente. Nunca é demais lembrar que a Índia se recusou a condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia e mantém fortes laços com Moscou, seja na área militar, seja na esfera comercial, assim como a França e o Japão. Ou seja, enquanto os Estados Unidos pensam em usar a Índia em sua estratégia de confronto com a China, a Índia pensa mais ou menos a mesma coisa, mas em sentido oposto: usar os Estados Unidos em sua estratégia de embate com a China. É muito pouco provável, portanto, que em um eventual confronto militar entre Estados Unidos e China no leste ou sudeste da Ásia a Índia se arrisque a se envolver militarmente.