Contrariando as expectativas criadas nas eleições primárias na Argentina, que apontavam Javier Milei como o favorito, o peronista Sergio Massa venceu o primeiro turno, obtendo 36,7% dos votos, contra 30% de Milei e 23,8% da coalização de centro-direita (JxC), Patricia Bullrich. Deve ter contribuído para a surpreende vitória de Massa, além da grande força do peronismo na província de Buenos Aires, o maior colégio eleitoral do país, sua imagem moderada e seu apelo à unidade nacional. Para um país exaurido por sucessivas crises econômicas nas últimas duas décadas, o discurso radical de Javier Milei, se por um lado seduziu parte do eleitorado, nomeadamente os mais jovens, por outro lado assustou a maior parte dos eleitores que valoriza a presença do Estado na economia e na sociedade como um todo.
Ao propor reduzir drasticamente o tamanho do Estado, cortar radicalmente os gastos públicos, nomeadamente os sociais, fechar o banco central e substituir a moeda nacional pelo dólar norte-americano, Milei alienou-se da maioria do eleitorado, que apesar da crise e da desconfiança em relação à classe política tem consciência de que o Estado nacional é a única instituição capaz de organizar a vida em sociedade. Suprimi-lo, como Milei, na prática, propõe significa implantar a anarquia total na sociedade. Como afirmou Lourdes Puentes, cientista política e Diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina (UCA) (O Estado de S. Paulo (23/10), “Na Argentina, se bem houve uma reação bem forte contra a classe política, há um convencimento na população de que o Estado é necessário, há uma grande consciência dos direitos, e Massa utilizou esse discurso para apontar Milei como alguém que iria atacar esses direitos. Nesse momento ele começou a fazer sentido para uma população que apesar de estar cansada da política acredita no Estado e tem consciência de direitos”.
Milei faz parte de uma nova tendência de ultradireita na América Latina e mundial que se traveste de apolítica apenas para se aproveitar do desencanto dos eleitores com os partidos políticos tradicionais para chegar ao poder e fazer o jogo dos super-ricos e do mercado financeiro para os quais o Estado é necessário apenas para manter a ordem, garantir os direitos de propriedade e administrar o mecanismo da dívida pública como instrumento de valorização do capital financeiro especulativo. O resto, inclusive a justiça, cada um faça com as próprias mãos, comprando armas. É o retorno ao estado hobbesiano, em que o homem é o lobo do homem. A eleição argentina dividiu o Brasil entre os seguidores do presidente Lula em apoio ao candidato peronista e os seguidores do ex-presidente Bolsonaro que cerraram fileiras em torno de Milei.
É difícil prever o resultado do segundo turno que ocorrerá em três semanas, mas está claro que dependerá do comportamento dos eleitores de Patrícia Bullrich. Sua força eleitoral está sobretudo na cidade de Buenos Aires. Conforme informa matéria de Carolina Marins no jornal o Estado de São Paulo (19/10), analisando o cenário eleitoral alguns dias antes do primeiro turno, “Buenos Aires serve como vitrine para a coalizão opositora ao governo. Seu líder, o ex-presidente Mauricio Macri, foi prefeito da cidade antes de se lançar nacionalmente. Um caminho que é natural dentro do Proposta Republicana (PRO), seu partido.” Esperava-se que o mesmo ocorresse com Horacio Rodríguez Larreta, atual prefeito, que tentou ser candidato a presidente. Mas, frente ao sentimento de cansaço do argentino, foi Bullrich, com seu discurso de segurança (e o apoio de Macri), que ganhou a vaga.
Nem Milei nem o peronismo conseguem até o momento se sobressair na disputa portenha. “O eleitorado da cidade de Buenos Aires é um eleitorado que há muitos anos vota na aliança entre PRO, União Cívica Radical e Coalizão Cívica, que formam o Juntos pela Mudança”, explica Facundo Galván, professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires. “Os setores médios não estão inclinados a votar em opções peronistas ou outsiders. Historicamente, a capital é mais progressista e mais de classe média.” “A cidade de Buenos Aires é o setor dos conservadores, nunca foi governada pelo peronismo, sempre foi governada pelos partidos conservadores e sempre esteve mais associada aos setores do radicalismo (corrente política), depois ao PRO, quando surgiu como um partido”, acrescenta o cientista político e sociólogo Sebastián Cruz Barbosa.
De qualquer modo, para que Milei saia vitorioso no segundo turno será preciso que todos os eleitores de Patrícia Bullrich votem em Milei, o que parece ser algo difícil, dada a tendência moderada de grande parte desse eleitorado.