Na mesma semana em que o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, visitou a China, sob o pretexto de aliviar as tensões entre os dois países cujas relações se encontram em seu pior momento dos últimos 50 anos, o presidente Biden encarregou-se de azedar ainda mais o relacionamento bilateral, ao chamar o presidente da China de “ditador” em um encontro com doadores de campanha na Califórnia. A China, com razão, reagiu com indignação à provocação do mandatário norte-americano, qualificando-o de ridículo.
Está não é a primeira vez que Biden faz provocações gratuitas à China, apenas com o objetivo de agradar sua audiência de momento. Já em quatro ocasiões anteriores, quando perguntado se os Estados Unidos iriam em socorro de Taiwan, caso a China resolvesse retomar o controle da ilha, Biden respondeu de bate-pronto que sim, sinalizando a intenção de romper com os compromissos assumidos por ocasião da retomada das relações diplomáticas, em 1979, quando ficou estabelecido o princípio de uma só China, cujo representante legítimo, foi acordado, é a República Popular da China, o que implica dizer que Taiwan é um problema interno da China. Embora, nas quatro ocasiões, a Casa Branca tratou de desdizer o que Biden havia dito, ficou a nítida impressão de que a administração Biden estava mudando de posição e passando a assumir abertamente uma posição pró-independência da ilha.
É difícil saber exatamente por que Biden age dessa forma, mas o fato é que, seja pela razão que for, isso só piora o clima entre os dois países, cujas relações se deterioram a olhos vistos, sem nenhum benefício aparente para nenhum dos dois lados. Como pode a China acreditar que os Estados Unidos querem de fato melhorar as relações bilaterais se suas palavras não condizem com seus atos? Falam que não apoiam a independência de Taiwan, mas são o maior fornecedor de armas para a ilha. Falam em melhor as relações comerciais, mas não param de impor sanções de todo tipo à China. Desde o início do 118º Congresso dos EUA, em janeiro, foram apresentadas inúmeras propostas relacionadas à China, incluindo comércio, direitos humanos, finanças, energia, segurança, saúde pública, ciência e tecnologia, agricultura, Taiwan, Hong Kong, Xinjiang e Tibete.
Uma hipótese plausível é que os Estados Unidos se tornaram prisioneiros de sua própria narrativa em relação à China. Diante dos crescentes problemas enfrentados internamente, primeiro Trump e depois Biden resolveram eleger a China como a culpada pelas desventuras da economia americana. No discurso de Trump, que Biden pouco fez para mudar, a ameaça chinesa é o único grande obstáculo para fazer a “America Grande de Novo”. Com um orçamento militar que já beira um trilhão de dólares, enquanto quase 600 mil cidadãos norte-americanos estão vivendo nas ruas, era igualmente preciso inventar um inimigo à altura, perigoso e poderoso o suficiente para justificar esse permanente orçamento de guerra em prejuízo do bem-estar da população norte-americana.
Tanto Trump e agora Biden foram ao mesmo tempo protagonistas e prisioneiros dessa falsa narrativa que inflamou a opinião pública americana. Como agora dizer que não é bem é assim, quando 76% da população norte-americana tem uma avaliação negativa da China, segundo o Pew Research Center?
Em entrevista recente à revista The Economist, o agora centenário Henri Kissinger alertou que essas falsas narrativas tinham o potencial de levar os dois países à guerra. Como afirmou Stephen Roach em livro recente em que discute o tema (Accidental Conflict America, China and the Clash of False Narratives), “A falsa narrativa é uma desculpa conveniente para a infeliz tendência da América de se esquivar da responsabilidade por seus próprios problemas e, em vez disso, prosseguir com a guerra de propaganda de um jogo de culpa cada vez mais traiçoeiro”.
Infelizmente Biden não tem capacidade e nem condições de liderar os Estados Unidos e muito menos o chamado Ocidente em uma outra direção que não leve ao agravamento do conflito entre as duas potências. Refém da opinião pública e da falsa narrativa que ele próprio ajudou a criar não lhe resta alternativa que não seja continuar a brandir a ameaça chinesa como um desafio existencial para os Estados Unidos, mesmo que isso não seja verdade. Se isso vai levar a uma nova guerra não se pode prever, mas tem potencial para isso.