I. Conjuntura Internacional
I.1 Interrogatório do CEO da TikTok pelo Senado americano é um novo lance da guerra comercial e tecnológica dos Estados Unidos contra a China
Em mais um lance da guerra tecnológica que os Estados Unidos fazem contra a China, o presidente-executivo do TikTok, Chew Shou Zi, foi submetido, em 23 de março, a horas de interrogatório pelo Comitê de Representantes sobre Energia e Comércio da Câmara dos Estados Unidos, sob alegação de que o TikTok era uma ferramenta usada pelo governo chinês para espionar os EUA e seus cidadãos. Ficou óbvio pela declaração inicial da presidente do comitê e pelas perguntas subsequentes e declarações de seus outros membros que eles haviam decidido, mesmo antes do início da audiência, que o aplicativo era uma ameaça ao estado e à sociedade americana.
De nada adiantou o CEO da empresa, nascido em Singapura, afirmar várias vezes que não havia nenhuma evidência de que o governo chinês tenha acesso aos dados dos mais de 140 milhões de usuários do aplicativo nos Estados Unidos. Tampouco convenceu os deputados a afirmação de que a empresa tem um plano de US$ 1,5 bilhão chamado Projeto Texas, que encaminharia todos os dados de usuários dos EUA para servidores domésticos pertencentes e mantidos pela gigante de software Oracle. Conforme informou o jornal o Estado de S. Paulo (23/03), “o acesso aos dados dos EUA seria gerenciado por funcionários dos EUA por meio de uma entidade separada chamada TikTok US Data Security, que emprega 1.500 pessoas, é administrada independentemente da ByteDance [a empresa chinesa proprietária do aplicativo] e seria monitorada por observadores externos. Os planos, porém, foram constantemente rechaçados pelos legisladores”.
Na semana anterior, o governo Biden ameaçou forçar os acionistas chineses do aplicativo a vender para proprietários americanos ou enfrentar uma possível proibição de todos os usuários americanos, reforçado na quinta-feira, quando o secretário de Estado Antony Blinken chamou o TikTok de uma ameaça à segurança nacional que “deveria ser encerrada de uma maneira ou outra”. Não é a primeira vez que os Estados Unidos tentam forçar a venda do aplicativo às grandes empresas de tecnologia americanas. Em 2020, o governo Trump tentou barrá-los nos Estados Unidos, mas não foi bem-sucedido, pois a própria Justiça americana, considerou a tentativa do governo ilegal.
O governo chinês repudiou as pressões do governo Biden de forçar a venda da empresa a empresários americanos. Conforme noticiou o Financial Times (23/3), “A China disse que “se opõe firmemente” a qualquer venda forçada do TikTok, denunciando a exigência de Washington de que o aplicativo de mídia social corte os laços com seu país de origem antes de uma audiência crucial nos EUA na quinta-feira. “Forçar a venda do TikTok prejudicará seriamente a confiança dos investidores de todo o mundo, inclusive da China, em investir nos Estados Unidos”, disse o Ministério do Comércio chinês. Acrescentou: “A China se opõe firmemente a isso”. Ele alertou que uma venda ou desinvestimento do TikTok envolve “exportação de tecnologia” que deve ser aprovada pelo governo chinês”.
Por trás de tudo isso, não só apenas questões de segurança que estão em jogo. Há, obviamente, grandes interesses comerciais. Conforme noticiou o South China Morning Posto, jornal de Hong Kong, em 24/03, “A receita de publicidade da empresa nos EUA foi de US$ 11 bilhões em 2022, um aumento de 200% em relação a 2021, de acordo com estimativas da empresa de pesquisa eMarketer”. Certamente, as concorrentes norte-americanas na área de redes sociais, como Facebook, Twitter e outras plataformas de mídia social baseadas nos Estados Unidos têm sentido o impacto da concorrência do TikTok em seu faturamento. Nunca é demais lembrar que tanto Facebook, quanto o Twitter, agora adquirido por Elon Musk, proprietário da Tesla, anunciaram recentemente a demissão de milhares de funcionários.
É preciso destacar ainda que as empresas chinesas na área de inteligência artificial possuem uma “vantagem natural” em relação a seus concorrentes no resto do mundo, que é a enorme base de dados a que elas têm acesso em seu próprio país para alimentar e aperfeiçoar seus algoritmos. Conforme destacou o Wall Street Journal (26/3), “A eficiência organizacional das empresas chinesas de internet é negligenciada por seus concorrentes americanos, dizem investidores, engenheiros e analistas. As empresas chinesas gastam generosamente para impulsionar seus aplicativos nos EUA. Eles aproveitam o bilhão de usuários de internet da China para testar as preferências do usuário e otimizar seus modelos de IA em casa, depois exportam a tecnologia para o exterior. “Eles estão matando totalmente em mercados onde precisam reiterar constantemente os produtos para atender às demandas dos usuários”, disse Guo Yu, ex-engenheiro sênior da ByteDance Ltd., controladora da TikTok, que trabalhou na empresa entre 2014 e 2020”.
A atual disputa em torno do TikTok é, portanto, apenas mais um lance na guerra tecnológica que os Estados Unidos travam contra a China para evitar que sejam superados pelos concorrentes chineses nas indústrias mais promissoras e com maior potencial de desenvolvimento e, portanto, de lucros, no futuro. A bola da vez é a TikTok, da mesma forma que há alguns anos o alvo foi a Huawei, empresa chinesa líder mundial no desenvolvimento de tecnologias e produção de equipamentos para a Internet 5G. A alegação de riscos de espionagem e ameaça à segurança nacional americana é sempre uma desculpa bastante conveniente para justificar a presença da mão pesada do Estado norte-americano para defender o monopólio de mercado para as chamadas BigTechs norte-americanas.
I.2 Nova crise bancária nos Estados Unidos e na Europa
A falência, em março, de dois bancos norte-americanos – o Silicon Valley Bank (SVB), da Califórnia, e o Signature Bank, de Nova Iorque – e a operação de resgate do Credit Suisse por meio da sua aquisição pelo UBS, acenderam os sinais de alerta no sistema financeiro mundial. Estaria o mundo na antessala de uma nova crise financeira global como a que abalou o mundo em 2008?
Não há indícios, até o momento, de que isso possa ocorrer, mesmo porque, pelo menos no caso do SVB, a falência não se deveu ao fato de o banco ter feito apostas em títulos da dívida de devedores duvidosos – os chamados “sub-primes”, como ocorreu em 2008 – mas, ao contrário, nos papéis mais seguros do mundo: os títulos do Tesouro Americano. Desta vez, o vilão da história parece ter sido a elevação das taxas de juros pelo Banco Central dos Estados Unidos, o FED.
Os bancos são instituições que, dentre outras coisas, realizam a chamada intermediação financeira, ou seja, captam recursos dos depositantes a curto prazo para emprestá-los para quem necessite de recursos a mais longo prazo para adquirir um imóvel, um bem de consumo durável ou realizar um investimento. Os bancos são também instituições capazes de criar dinheiro – a chamada moeda escritural – por meio desse mesmo sistema de empréstimos. Cientes de que nem todos os depositantes irão retirar seu dinheiro ao mesmo tempo, os bancos mantêm em caixa depositada no Banco Central apenas uma fração dos depósitos à vista e emprestam a diferença. Quanto menor a fração dos depósitos à vista mantidos em caixa ou em depósitos no BC, maior será o chamado multiplicador bancário, ou seja, a quantidade de moeda escritural que o banco será capaz de criar pelo sistema de empréstimos. Por exemplo, se um banco receber um depósito de R$ 100 e mantiver apenas R$ 20 no caixa, emprestando os outros R$ 80, depois de sucessivas rodadas em que o dinheiro for emprestado, retornar ao banco na forma de novo depósito e for emprestado novamente, sempre mantida essa proporção de 20%, será criado ao fim um volume total de empréstimos e, portanto, de moeda escritural, de R$ 500. É por essa razão que os bancos centrais, quando querem realizar um aperto monetário, ou seja, tirar dinheiro de circulação, elevam os depósitos compulsórios dos bancos comerciais no Banco Central, diminuindo, assim, a capacidade dos bancos de criar dinheiro.
Essas duas características dos bancos – captar dinheiro à vista e emprestar a prazo e criar dinheiro por meio do sistema de crédito – tornam os bancos naturalmente expostos a crises. Se todos os depositantes de um banco resolvessem sacar seu dinheiro simultaneamente, qualquer banco do mundo faliria. O que impede que isso ocorra são, em primeiro lugar, a confiança que os depositantes têm em determinada instituição financeira e, não menos relevante, as garantias que os governos oferecem para os depósitos até um determinando valor (no caso dos Estados Unidos, US$ 250 mil). Também contribuem para dar maior estabilidade ao sistema as diversas medidas prudenciais estabelecidas pelos governos e bancos centrais em nível nacional e internacional, sendo a mais relevante delas a exigência de que um determinado percentual do dinheiro emprestado pelo banco seja garantido pelo capital próprio dos acionistas do banco. No caso do acordo de Basiléia III, estabelecido em 2009, para dar maior estabilidade ao sistema financeiro global depois da crise de 2008, esse percentual é 7%. Ou seja, pelo menos 7% dos depósitos têm quer estar garantidos pelo capital próprio do banco. Essas medidas visam reduzir o “risco moral” sempre presente no negócio bancário, pois se o banqueiro não correr nenhum risco com o capital próprio, poderá agir de forma imprudente aumentando o risco dos depositantes.
Tudo indica que os casos do SVB e do Credit Suisse sejam isolados, que por razões diferentes experimentaram uma corrida de seus depositantes para sacar seus depósitos, levando-os à insolvência. Mas o fato de a corrida dos correntistas para sacar o dinheiro ter ocorrido logo depois de os acionistas não terem aceitado realizar novo aporte de capital para equilibrar o descasamento entre ativos e passivos dos bancos não é coincidência e apenas confirma que a corrente sempre quebra em seu elo mais fraco. Ou seja, todas as crises começam a partir de eventos discretos – como a quebra do Leman Brothers, em 2008 – que acabam se tornando sistêmicas na medida em que o pânico se espalha. Um fato importante a destacar no caso do SVB e do Credit Suisse é o papel das redes sociais. Em ambos os casos, a negativa dos acionistas em fazer novos aportes de capital gerou alguns comentários nas redes sociais de que os bancos “estavam quebrados”. Tais comentários se espalharam rapidamente, tornando-se uma profecia autorrealizável, uma vez que, como sabemos, todos os bancos trabalham alavancados e nenhum banco, por mais sólido que fosse, resistiria a uma corrida generalizada de seus correntistas para sacar seus fundos ali depositados e/ou aplicados.
Mas para além desse efeito dos “memes” há um substrato real na crise dos dois bancos que representa um risco para o sistema financeiro como um todo. O primeiro fato a destacar é a elevação na taxa de juros que foi promovida pelo Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, nos últimos meses. No caso do SVB, por exemplo, de acordo com o noticiário da imprensa, o banco havia feito grandes investimentos em títulos do Tesouro dos Estados Unidos e isso foi uma das causas imediatas de sua ruína. Expliquemos. Se como informa a imprensa, o SVB havia comprado grande quantidade de títulos do Tesouro americano na fase em que os juros eram mais baixos, seria inevitável que ele teria grandes prejuízos se tivesse que vender uma grande quantidade de títulos para fazer caixa e atender a demanda dos clientes em um momento em que os juros estavam mais altos.
Como explica Celso Ming no Estadão (15/03), “É fácil entender por que o Treasury pode se desvalorizar e deixar um grande banco na pior, como aconteceu. Se os juros sobem rapidamente, os detentores de títulos não conseguem revendê-los no mercado pelo mesmo preço de face. Numa conta sem rigor aritmético, um Treasury de US$ 1 mil que paga juros de 2% ao ano rende US$ 20 ao ano. Se os juros sobem para 5% ao ano, o novo Treasury paga US$ 50 ao ano. Para render os mesmos US$ 50, o título de US$ 1 mil com juros contratuais de 2% ao ano tem de ser negociado no mercado a US$ 953. No caso do Silicon Valley, os correntistas correram aos saques – o banco teve de vender seus ativos a preços mais baixos e, de uma hora para outra, ficou sem caixa”. Segundo informou a imprensa (NYT 13/03), para tentar levantar os US$ 2 bilhões, o banco foi forçado a vender uma carteira de títulos com prejuízo de US$ 1,8 bilhão.
O segundo fato a destacar está relacionado com o relaxamento das regras prudenciais. A crise de 2008 foi facilitada pelo relaxamento das regras prudenciais estabelecidas nos Estados Unidos pelo governo Roosevelt depois da crise de 1929 – a Lei Glass-Steagall, que separou os bancos comerciais dos bancos de investimento e criou a Federal Deposit Insurance Corporation. Tal relaxamento permitiu aos bancos realizar as estripulias financeiras que desaguaram na crise de 2008. Conforme destaca Belluzzo, “Os grandes conglomerados financeiros buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo o processo de alavancagem para impulsionar a inflação de ativos. Tais estripulias encontraram seu destino na crise de 2007/2008. Esse episódio de euforia global e alavancagem excessiva também terminaria em um crash espetacular não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais”.
Em 2010, o Dodd–Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act foi aprovado, no governo Obama, com o objetivo de evitar a assunção excessiva de riscos que levou à crise financeira de 2008. Mas em 2016, já no governo Trump, muitas das medidas foram novamente relaxadas. Como lembra Joseph Stiglitz, prêmio Novel de economia, “[Jerome] Powell [atual presidente do FED], que fez parte da equipe reguladora do ex-presidente Donald Trump e trabalhou para enfraquecer os regulamentos bancários Dodd-Frank promulgados após o colapso financeiro de 2008, a fim de libertar os bancos “menores” dos padrões aplicados aos bancos maiores e sistemicamente importantes”. Foi graças a esse relaxamento que o SVB pode, por exemplo, evadir-se do teste de estresse que teria mostrado a fragilidade do banco no caso de uma elevação substancial dos juros, como de fato ocorreu.
A verdade é que os bancos estão o tempo todo procurando encontrar formas de driblar as regulações financeiras com o objetivo de criar novos produtos que permitam obter o máximo retorno com o máximo de liquidez, o que torna o sistema financeiro inerentemente propenso ao risco e à instabilidade. E quanto maior a profundidade do sistema, ou seja, quanto mais as operações no lado real da economia são intermediadas pelo sistema de crédito, e sua amplitude, ou seja, a quantidade de produtos financeiros disponíveis para as famílias alocarem sua riqueza, maior será o risco de que perturbações no sistema financeiro se transformem em crises econômicas graves.
Da mesma forma como as inovações tecnológicas contribuem para aumentar a volatilidade do sistema, também poderiam contribuir para torná-lo mais estável. Uma delas, por exemplo, seria permitir, por meio da criação de moedas digitais dos bancos centrais, que as pessoas tivessem contas diretamente no Banco Central, como propõem Jan Eeckhout (Project Syndicate 23/3) e Martin Wolf, do FT (21/3). Segundo este último, “os membros do público também poderiam, agora, deter dinheiro no Banco Central diretamente, o que era impossível quando o acesso a bancos exigia redes de agências; hoje, seria possível para todos deter moedas digitais do Banco Central, que são perfeitamente seguras, em qualquer montante. Essa ideia tornaria o Banco Central o fornecedor monopolista de dinheiro na economia. A gestão do sistema de pagamento digital poderia então ser entregue a empresas de tecnologia. O dinheiro criado pelos bancos centrais poderia ser utilizado para financiar o governo (substituindo os títulos do governo) ou ser investido de outras formas. Enquanto isso, a intermediação de risco seria feita por fundos mútuos, cujo valor se movimentaria com o mercado. Ou, de forma menos radical, a intermediação poderia ser feita por instituições bancárias, mas instituições financiadas por uma mistura de ações, títulos e depósitos a prazo, e não depósitos à vista”. Obviamente os bancos não querem nem ouvir falar disso.
I.3 O fim da guerra na Ucrânia depende dos Estados Unidos
A única forma de acabar com a guerra na Ucrânia, no curto prazo, é a adoção de um cessar fogo imediato e a abertura de negociações intermediadas por países não diretamente envolvidos no conflito. É o que recentemente foi proposto pelo Brasil e também o que propôs a China a Moscou. Isso teria inúmeras vantagens para os dois lados em conflito, a começar pela interrupção da carnificina em que se tornou a guerra, como evidenciado pela mortandade que está ocorrendo na batalha pela tomada de Bakhmut.
Aparentemente os russos aceitam a ideia, mas para se materializar ela dependeria da aceitação também por parte dos Estados Unidos, que não querem nem ouvir falar do assunto, seja porque reduziria seu protagonismo, seja porque daria protagonismo a países que os norte-americanos consideram, na verdade, aliados dos russos e não independentes, como é o caso da China e, em certa medida, do Brasil. Na sua visão maniqueísta de mundo, quem não está no lado deles nessa guerra está automaticamente no lado russo, não havendo espaço para neutralidade.
Conforme destacou o South China Morning Post (24/3), “A China não tem um plano de paz completo para a guerra na Ucrânia. Mas isso é uma vantagem, não uma falha. O que tem feito é apelar a um cessar-fogo imediato, após o que os dois combatentes decidirão como proceder com a ajuda de uma mediação externa, com um grande papel presumivelmente reservado à China. Moscou aceitou a ideia; Kyiv está estudando isso. Este último pode, no final, rejeitá-lo. Mas, por enquanto, está levando Pequim a sério. Não, dizem Washington e a Otan. Mas os combatentes, cujos maridos, filhos e filhas estão morrendo, não deveriam decidir o que é melhor para eles, especialmente os ucranianos? O Ocidente passou um ano pedindo à China que interviesse em seu nome e a denunciou por não o fazer. Mas por que a China deveria agir como um parceiro minoritário dos Estados Unidos quando este último praticamente lançou uma nova guerra fria contra ela? Agora que a China decidiu intervir por sua própria iniciativa, Washington-Nato rejeitou sua proposta de imediato. Mais vitríolo agora deve ser expresso para tentar enterrá-lo rapidamente. Isso porque a visita de Xi Jinping a Moscou renovou o apelo chinês à paz”.
Mantidas as condições atuais, mesmo com os Estados Unidos e seus aliados da Otan fornecendo armas e munições para os ucranianos indefinidamente, vai chegar uma hora, não importa quantos anos leve, que não haverá mais gente apta para lutar, principalmente no lado da Ucrânia, cuja população é bem menor do que a russa. Mas até que se chegue nesse ponto, quantos milhares de jovens ainda vão precisar morrer nesse terrível moedor de carne em que se tornou a guerra na Ucrânia?
E mesmo que supostamente a Ucrânia “vença” a guerra, hipótese bastante improvável, a que terá sido reduzido o território ucraniano depois de alguns anos de conflito contínuo com sua infraestrutura urbana, de transportes, energia e telecomunicações sendo massacrada diariamente pelos bombardeios russos? Mais de uma vez já afirmamos que os russos não entregarão as áreas já ocupadas, mesmo porque há uma população local pró-Russa nessas regiões, que desde 2014 vêm suportando uma violenta guerra civil porque querem separar-se do regime de Kiev. Segundo o SCMP, “Como até mesmo muitos especialistas militares ocidentais não esperam que a Ucrânia recupere todos os seus antigos territórios, o propósito de encorajar os ucranianos a continuar lutando é o mesmo que o fornecimento de armas e apoio dos EUA aos velhos mujahideen afegãos contra a invasão e ocupação soviética – para derrubar o regime em Moscou e degradar o exército russo por pelo menos uma ou duas gerações. O problema é que, a essa altura, a Ucrânia como país e sua população masculina em idade produtiva terão sido dizimadas. Mas essa é uma preocupação distante de Washington”.
Como afirmou Alex Lo, do South China Morning Post, jornal de Hong Kong, em 10/03: “A esta altura, vale a pena pensar em que tipo de vida aguarda os cidadãos comuns da Ucrânia. A maioria de nós provavelmente assume que dependerá de eles ganharem ou perderem a guerra contra a Rússia. Mas se você “seguir o dinheiro” é sempre uma boa ideia, de grandes investidores ocidentais, private equity e oligarcas ucranianos, você pode concluir que, ganhando ou perdendo, não será um final feliz para a maioria dos ucranianos. Ser recolonizado pela Rússia será um inferno para muitos. Mas ser controlado pelos interesses comerciais ocidentais, especialmente dos EUA, também não será um piquenique. A grande mídia noticiosa criou a impressão de que haverá algum tipo de Plano Marshall para reconstruir o país. Mas, se um novo estudo do Oakland Institute, com sede na Califórnia, servir de referência, o fim da guerra, supondo que se assemelhe a uma vitória, será mais parecido com a Rússia após o colapso da União Soviética. Um drástico programa de ajuste estrutural aguarda, graças às condições de empréstimo ocidentais. Isso significa privatizações rápidas e investimentos estrangeiros irrestritos que se safam cobrando centavos de dólar pelos ativos mais valiosos, para aqueles com as conexões certas para pegar o negócio. Enquanto isso, o bem-estar social e as redes de segurança saem pela janela”.
I.4 Qual o significado da visita de Xi Jinping a Moscou?
Praticamente toda a imprensa e analistas ocidentais interpretaram a visita de Xi Jinping a Moscou no final de março como um gesto calculado com o objetivo de demonstrar apoio ao presidente Putin na Guerra na Ucrânia e fortalecer a aliança entre China e Rússia em sua luta contra o Ocidente. Trata-se, contudo, de uma análise equivocada. Para começar, a China não apoia a Rússia na guerra na Ucrânia e muito menos tem fornecido ou pretende fornecer equipamentos e munições para os russos. Em segundo lugar a China não está interessada em formar uma aliança anti-Ocidente. Deseja apenas não se deixar isolar pelos Estados Unidos e para isso procura fortalecer seus laços de cooperação com países com que tem interesses comuns.
No caso específico da Rússia, é preciso lembrar que Rússia e China são países vizinhos que compartilham 4.250 quilômetros de fronteira, são membros do grupo Brics, da Organização para a Cooperação de Xangai e possuem laços de cooperação históricos. Nunca é demais lembrar que por ocasião da fundação de República Popular da China, a ex-URSS foi fundamental para o início do processo de desenvolvimento do país. De 1953 a 1956, quando foi posto em marcha o Primeiro Plano Quinquenal de Desenvolvimento da jovem república chinesa, 156 projetos industriais foram iniciados com apoio da URSS, que oferecia treinamento massivo e assistência técnica com os seis mil consultores que havia enviado à China.
Quando, portanto, China e Rússia assinaram um novo acordo de cooperação econômica até 2030, em 18 de março último, por ocasião da visita do presidente Xi Jinping a Moscou e o presidente chinês declarou que China e Rússia são sócios estratégicos, nada mais fez do que reafirmar o óbvio, ou seja, duas grandes potências vizinhas têm muito a ganhar se mantiveram relações harmoniosas entre si, tal como ocorre, por exemplo, entre Estados Unidos e Canadá.
Quanto à guerra na Ucrânia, diferentemente dos Estados Unidos, que veem na perpetuação do conflito uma forma de desgastar a Rússia, a China deseja o fim mais rápido o possível do confronto. Por isso apresentou o plano de paz de 12 pontos, cujo primeiro é o respeito pela “soberania de todos os países” e por “sua integridade territorial”. Afirmar, portanto, que a China estaria apoiando a Rússia em sua guerra contra a Ucrânia e até estaria considerando enviar armamentos para os russos é uma invencionice dos Estados Unidos e seus aliados da Otan, que na verdade não estão interessados em acabar a guerra, mas desgastar o máximo possível a Rússia, mesmo que isso custe a vida de mais alguns milhares de soldados ucranianos e russos.
Quanto à propalada aliança contra o Ocidente que a China estaria tentando implantar, na verdade o que ocorre é exatamente o oposto, ou seja, são os Estados Unidos que estão tentando expandir a Otan e sua lógica belicista para a Ásia com o objetivo de construir uma aliança militar contra a China.
Têm sido recorrentes as tentativas de produzir falsas narrativas a respeito da China para justificar as agressões que têm sido feitas contra o país asiático, com o objetivo de obstar seu esforço de desenvolvimento. Aliás, não é de hoje o costume de observadores ocidentais de olhar a China como uma imagem distorcida de seus próprios países, de modo que aquilo que falam da China diz mais de si próprios do que da própria China. O historiador americano, Jonathan Spence – autor de clássicos como “Em Busca da China Moderna”, com tradução em português e o “O grande continente do Khan – A China nas mentes ocidentais”, ainda sem tradução – chama atenção para o fato de que as narrativas de Marco Polo sobre a China, em seu livro de memórias – As Viagens de Marco Polo – pareciam ter mais em comum com sua nativa Itália do que tinha com a realidade da China do seu tempo e pergunta a respeito de sua descrição: “É realmente a China ou uma imagem invertida de Veneza?”. Há até quem duvide de Marco Polo tenha estado realmente na China.
Em livro recentemente publicado pelo economista norte-americano Stephen Roach – Accidental Conflit. America, China and the Clash of False Narratives – o autor chama atenção para o fato que em grande medida o conflito Estados Unidos – China se dá por causa de falsas narrativas que os norte-americanos criaram em relação à China, as quais decorrem da tentativa de olhar a China como uma imagem distorcida de si próprios.
I.5 Guerra dos Chips
Em seu esforço para barrar o avanço tecnológico da China, o governo Biden vem ampliando as restrições para o acesso por parte dos chineses às tecnologias para produção de semicondutores avançados desenvolvidas no Ocidente. A justificativa oficial é impedir que a China utilize essas tecnologias para fins militares, pondo em risco a segurança dos Estados Unidos e seus aliados da Otan. Mas o que está realmente em jogo é o receio norte-americano de que a China os ultrapasse como país líder no desenvolvimento de tecnologias de ponta, colocando, assim, em risco a supremacia mundial das empresas norte-americanas na fronteira tecnológica.
Da mesma forma, a cada vez mais ameaçadora atitude dos Estados Unidos em relação aos esforços da China de promover a reunificação do país, trazendo a ilha rebelde de Taiwan de volta ao regaço da nação chinesa, está diretamente relacionada ao fato de que nenhuma empresa nos Estados Unidos, Europa, Japão ou China está capacitada a produzir os chips mais avançados, utilizados, por exemplo, nos Iphones da Apple. Conforme destaca Cris Miller, autor do livro “Chip War. The Fight for the World’s Most Critical Technology”, publicado em 2022, uma única fábrica do mundo, localizada em um único edifício é capaz de fazê-lo. Trata-se da Fábrica 18, da empresa taiwanesa TSMC – Taiwan Semicondutor Manufacturing Company, que já fabricou cerca de um quintilhão desses chips. Ainda segundo o autor, a indústria mundial de chips produziu, em 2021, mais transistores do que a quantidade combinada de todos os bens produzidos por todas as outras companhias, em todas as outras indústrias, em toda a história humana.
Um movimento que começou no governo Trump com um foco restrito a uma única empresa chinesa – a Huawei – com o objetivo de impedir que a espinha dorsal da nova rede mundial de telecomunicações – o 5G – fosse construída com equipamentos chineses, foi sendo crescentemente ampliado no governo Biden visando alcançar todas as empresas chinesas de alta tecnologia.
Depois de uma série de medidas visando proibir o acesso das empresas chinesas aos microprocessadores mais avançados produzidos por empresas norte-americanas, o passo seguinte foi proibir que os outros países que utilizem qualquer tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos exportem seus produtos para a China. Conforme noticiou o jornal o Estado de São Paulo em 10 de março, “O governo da Holanda impôs ontem restrições adicionais à exportação de máquinas que fabricam chips de processadores avançados, juntando-se a um esforço dos EUA para limitar o acesso da China aos materiais usados na produção de chips. A Holanda é a maior produtora mundial de componentes e maquinários-chave para a fabricação de microprocessadores. O país estava sob pressão dos EUA para adotar restrições semelhantes às impostas pelo governo americano, no ano passado. Os detalhes do que a Holanda e o Japão fecharam com os EUA em janeiro, para limitar as vendas para a China, vieram a público na quarta-feira. Agora, as empresas terão de solicitar licenças para exportar essa tecnologia”. Ainda segundo o mesmo jornal (09/03), “No ano passado, os EUA aprovaram a Lei dos Chips, um pacote de US$ 52 bilhões para estimular a indústria, reduzir a dependência de países asiáticos e manter o país à frente da China na guerra tecnológica”.
Como parte do mesmo esforço para impedir o avanço tecnológico da China, o governo americano vem considerando tomar outras medidas restritivas. Conforme noticiou o Wall Street Journal (07/03), “A administração Biden está preparando um novo programa que pode proibir o investimento dos EUA em certos setores na China, um novo passo para proteger as vantagens tecnológicas dos EUA durante uma competição crescente entre as duas maiores economias do mundo”. Ainda segundo o WSJ (09/03), “O Departamento de Comércio dos EUA mirou na quinta-feira mais de duas dúzias de entidades chinesas com restrições à exportação, parte de um esforço mais amplo do governo Biden para mitigar o que diz ser uma crescente ameaça à segurança nacional da China. (…) As listagens de entidades restringem as vendas a empresas-alvo, a menos que os exportadores obtenham uma licença do governo dos EUA. As empresas adicionadas à lista de entidades incluíam subsidiárias da empresa chinesa de genética BGI, da empresa de computação em nuvem Inspur e de várias empresas de eletrônicos”. As empresas chinesas na lista de entidades do departamento de comércio dos Estados Unidos, que já são mais de 600, precisam atender aos requisitos de licença para exportar ou transferir itens específicos, incluindo tecnologia dos EUA.
I.6 Protestos na França contra as reformas de Macron evidenciam o fracasso do neoliberalismo
O governo do presidente Emmanuel Macron enfrentou greves nas últimas semanas, em protesto contra seu plano de elevar a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos na França. A maioria dos partidos de oposição e a maioria dos franceses se colocam resolutamente contra a reforma no sistema de aposentadoria. Os opositores acusam o governo de desmantelar com brutalidade direitos duramente adquiridos em um Estado de bem-estar social moderno. Uma aliança de esquerda de oposição, afirma que seria mais justo taxar “superlucros” ou os ricos. Um imposto de 2% sobre os ativos dos bilionários franceses, sugeriu um relatório do instituto Oxfam na França, aniquilaria o déficit nas aposentadorias da noite para o dia. Segundo o governo, o déficit da previdência será de € 14 bilhões (US$ 15,2 bilhões) em 2030. A diminuição nas horas laborais, projetada originalmente para proteger trabalhadores de abusos, tornou-se parte da história da França no pós-guerra. Em 1982, François Mitterrand baixou a idade mínima de aposentadoria de 65 para 60 anos. Duas décadas depois, a França introduziu a semana laboral de 35 horas. A fatia de franceses que consideram trabalhar “muito importante” caiu de 60% em 1990 para apenas 24% em 2021, de acordo com o instituto de pesquisas Ifop. A pandemia acelerou essa mudança, afirma Romain Bendavid, em um artigo para a Fondation Jean-Jaurès, um centro de análise. Até 2022, apenas 40% dos franceses afirmavam preferir ganhar mais e ter menos tempo livre, contra 63% em 2008 (The Economist, 10/03/2023).
A criação do chamado “estado de bem-estar social” na Europa no imediato pós-guerra coincidiu com os chamados “30 anos gloriosos do capitalismo mundial” que se estenderam do final da II Guerra, em 1945, até meados da década da 1970. Baseou-se em um modelo de regulação da economia capitalista que garantia que os ganhos de produtividade fossem em parte transferidos para os trabalhadores tanto na forma de melhores salários como de benefícios sociais. Tal modelo de regulação começou a desmoronar em meados dos anos 70 quando, diante da redução das taxas de lucro, uma série de reformas passaram a ser implementadas visando reduzir os custos de produção das empresas com o objetivo de recuperar sua lucratividade.
Foi nesse período que ascenderam ao poder Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, abrindo caminho para o abandono das políticas keynesianas em favor do neoliberalismo. A essência do pensamento neoliberal é o retorno às políticas do lessez-faire, que caracterizaram a fase inicial do capitalismo industrial na Europa, quando a ausência de regulação do Estado permitia aos capitalistas impor aos trabalhadores jornadas extenuantes de trabalho, inclusive para mulheres e crianças.
Desde então o que vem ocorrendo na Europa e no resto do mundo é o desmonte paulatino do que restou estado de bem-estar social implantado no pós-Guerra. Retirada de direitos trabalhistas, aumento das jornadas de trabalho, aumento da idade de aposentadoria, redução de impostos para os mais ricos são características do novo modo de regulação da economia capitalista neoliberal em todo o mundo, uma espécie de “capitalismo com a faca na garganta e sangue nos olhos” em que a regra é que não há regras e só os mais ousados sobrevivem.
A consequência disso tem sido o aumento sem precedentes da desigualdade social. Ao mesmo tempo que o número de bilionários aumenta em todo o mundo, o número de miseráveis aumenta na mesma proporção. A quantidade de pessoas vivendo nas ruas das grandes metrópoles, de jovens desempregados, sem perspectiva de futuro, de cidades dominadas por gangs de criminosos e traficantes é o retrato cruel desse novo mundo. A proporção de pessoas trabalhando em empregos informais, sem nenhum direito social, já é maior, em muitos lugares ao número de trabalhadores protegidos pelas leis trabalhistas estabelecidas antes da década de 1970. A chamada “uberização” da economia mostra o lado perverso das transformações em curso, em que a tecnologia está a serviço do enriquecimento de poucos e da pauperização da maioria.
O presidente Macron, na França, é um representante típico dessa modernidade neoliberal e vem trabalhando para tornar a França, um dos últimos bastiões do estado de bem-estar social do pós-guerra, mais parecida com o resto do mundo. A justificativa é que sem essas reformas a França perde competividade frente aos seus concorrentes que já desmantelaram o estado de bem-estar social no passado. É uma espécie de corrida para o fundo, onde o que nos espera no fim do túnel é o retorno à barbárie. Os trabalhadores franceses resistem, mas pouco podem fazer a respeito. Como diz a bíblia, para que uma nova planta nasça é preciso que a semente apodreça.
I.7 As “Duas Seções” de 2023 e as três revoluções chinesas
A tomada do poder pelas forças comandadas por Mao Tsé-tung, em 1949, e a subsequente criação da República Popular da China foi a primeira revolução chinesa. O início do período de reforma e abertura, em 1978, sob o mando de Deng Xiaoping, marcou o início da segunda. Durante 30 anos, entre 1978 e 2008, a China cresceu a taxas superiores a 10% ao ano, logrando transformar-se de um país pobre na segunda maior economia do planeta e no principal exportador mundial de manufaturas.
Essa velocidade de crescimento de quebrar o pescoço cobrou seu preço: como previra Deng Xiaoping, uns ficaram ricos primeiros que os outros e a desigualdade social aumentou; problemas ambientais comprometeram a qualidade de vida; especulação imobiliária dificultou o acesso à moradia para os jovens e os mais pobres; a política de filho único está levando ao envelhecimento precoce da população chinesa; superávits recorrentes no comércio externo desencadearam conflitos comerciais; a corrupção tornou-se um problema grave, distanciando o povo do partido.
A liquidação de centenas de milhares de empresas estatais, no início da década de 1990, cortou de forma abrupta a rede de proteção social do modelo socialista, que garantia emprego vitalício, moradia, educação, lazer e aposentadoria para todos os trabalhadores urbanos, obrigando as famílias a poupar para fazer frente às novas contingências e reduzir seu consumo. Para manter a economia crescendo, com o consumo restringido, os sucessivos governos apelaram para grandes investimentos em infraestrutura e para a demanda externa.
Tudo isso levou a que, no início do século XXI, a China apresentasse uma série de desbalanceamentos que se não corrigidos a tempo poderiam comprometer seu futuro. O premiê Wen Jiabao, em uma conferência para a imprensa ao final do Congresso Nacional do Povo, em 2007, sintetizou essas preocupações, afirmando que depois de 30 anos de milagre econômico a China estava arriscada a tornar-se crescentemente instável, desbalanceada, descoordenada e insustentável. Os 30 anos de milagre econômico tinham cumprido o seu papel, mas agora era preciso lidar seriamente com esses quatro “uns” como ficou conhecida a afirmação de Wen Jiabao (unstable, unbalanced, uncoordinated and unsustainable).
Foi essa a China que Xi Jinping herdou de seus antecessores, em 2013. Determinado a enfrentar esses quatro “uns” formulou uma nova estratégia que acabou consubstanciada no que ficou conhecido como o “Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era”, posteriormente acrescentada à Constituição do Partido, equiparando assim o pensamento de Mao Zedong e Deng Xiaoping. A foco dessa “terceira revolução chinesa” é, portanto, o enfrentamento desses desequilíbrios do período anterior, com o objetivo de tornar a China uma economia socialista avançada até 2049. Sua essência é a melhoria da governança da China, para que, o papel do partido é essencial. Daí a campanha inclemente que Xi Jinping desencadeou contra a corrupção na China.
As “duas seções de 2023”, realizadas neste mês de março, como são chamadas as seções conjuntas do Congresso Nacional do Povo, órgão legislativo, e do Comitê Nacional da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, órgão consultivo, ao confirmarem um terceiro mandato a Xi Jinping como presidente da República Popular da China sinalizam para a continuidade dessa nova estratégia de desenvolvimento, tendo como referência o ano de 2049. Uma característica importante dessa nova fase, além no foco na melhoria da governança do país, será uma ênfase maior na qualidade e menos na quantidade.
Não que o crescimento econômico e, sobretudo a geração de empregos deixe de ser importante. A China precisa continuar a criar dez milhões de postos de trabalho por ano para manter a estabilidade social. Mas até porque o tamanho absoluto alcançado pela economia já não comporta taxas de crescimento tão altas, as metas de crescimento serão mais modestas, embora ainda elevadas para os padrões mundiais, na ordem de 5% ao ano.
Mas, certamente, preocupações com desenvolvimento científico e tecnológico, como o domínio completo de todo o ciclo de produção de semicondutores ocuparão um lugar de maior destaque. No plano internacional, uma política externa mais ativa, até para fazer frente às tentativas de isolamento do país por parte dos Estados Unidos, será implementada, tendo como principais instrumentos o projeto Cinturão e Rota (Belt and Road Iniciative – BRI).
A reunificação completa do país, com o tão esperado retorno de Taiwan, ao lado de Hong Kong e Macau, ao seio da nação chinesa também será uma prioridade. Qualquer tentativa por parte das forças separatistas de promover a independência de Taiwan, mesmo que com apoio militar dos Estados Unidos, será respondida à altura.
I.8 Mesmo indiciado, Trump continua no centro da política americana
Falem mal, mas falem de mim. Parece ser essa a estratégia de Donald Trump para retornar como candidato republicano para as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2024. Segundo noticiou o Wall Street Journal (30/3), Trump foi indiciado por seu papel em pagar suborno a uma estrela pornô na véspera da eleição de 2016, marcando a primeira vez na história americana que um ex-presidente enfrenta acusações criminais. O grande júri devolveu o indiciamento de Trump após uma votação na quinta-feira (30/3), dando início a um processo no qual o ex-presidente deve vir a Nova York para enfrentar as acusações. A acusação, solicitada pelo escritório do procurador distrital de Manhattan, Alvin Bragg, não é pública. Em Nova York, os juízes rotineiramente mantêm as acusações em segredo até que os réus façam sua primeira aparição no tribunal.
Mesmo que seja condenado, o que parece pouco provável dado o exército de advogados que mobilizou para sua defesa, e nos Estados Unidos isso faz uma enorme diferença, o fato não o impede de concorrer à presidência da República. Além do mais, trata-se de um caso estadual, não federal. Como destacou o jornal, “É improvável que o caso estadual em Nova York tenha qualquer influência legal na candidatura presidencial de Trump, mesmo que ele seja condenado. A Constituição dos EUA não exige que os candidatos ao cargo mais alto tenham um histórico limpo, e há um consenso legal de que os estados estão proibidos de impor suas próprias restrições aos candidatos presidenciais”.
Ainda segundo o jornal, a acusação pode interferir em suas pretensões políticas por caminhos diferentes: “Ele mostrou resiliência entre seus apoiadores em meio a inúmeras questões legais e controversas e já usou a ameaça de processo como ponto de encontro para arrecadar fundos de campanha e argumentar que está sendo acusado injustamente por motivos políticos. Ao mesmo tempo, a posição de Trump diminuiu entre alguns republicanos, mostraram várias pesquisas, e o caso pode tornar alguns eleitores mais propensos a apoiar outro candidato”.
O fato é que se a superexposição de Trump pode garantir-lhe a indicação do partido Republicano para a corrida presidencial de 2024, as chances de ser novamente derrotado por Biden também aumentam. Segundo o mesmo WSJ, “No geral, 57% dos americanos acham que Trump deveria ser desqualificado para concorrer novamente caso enfrente acusações criminais, mas entre os republicanos, 75% acham que isso não deveria ser desqualificado, de acordo com uma pesquisa da Quinnipiac University divulgada esta semana. E 93% dos republicanos, mais 70% dos eleitores independentes acham que o caso de Nova York é motivado principalmente pela política, em comparação com 66% dos democratas que acham que o caso é motivado principalmente pela lei, mostrou a pesquisa. O ex-presidente viu seu status de favorito aumentar em várias pesquisas recentes”.
II. Conjuntura Nacional
II.1 Governo Lula se aproxima dos 100 dias sem rumo claro
As circunstâncias que envolveram a eleição de Lula já anunciavam que seu terceiro governo não seria um passeio no parque. Mas as dificuldades que o governo está enfrentando para engatar um projeto político e econômico que aponte um rumo claro para o País aparentemente não se originam apenas da má-vontade da oposição. A impressão que se tem é que há muito bate-cabeça no próprio governo. Pior, além das disputas por picuinhas, a fragmentação do governo em torno de um cem número de agendas, por vezes até conflitantes, coloca o presidente na posição de árbitro dentro de seu próprio governo e não de comandante de um só corpo que marcha em ordem unida. A questão climática e ambiental é importante, mas não pode ser a principal preocupação do governo. Os nove milhões de desempregados e 21 milhões de trabalhadores subutilizados precisam que o Brasil volte a crescer.
Lula tem afirmado, corretamente, que o País precisa voltar a crescer, mas além do desejo, não parece saber muito bem como fazer isso. A economia vem de um quadro de desaceleração desde o terceiro trimestre do ano passado e as projeções apontam que a economia brasileira deve crescer menos de 1% este ano. A inflação não dá mostras de ceder facilmente. A falta de sintonia entre o governo e o Banco Central é um complicador e tanto. Ao manter as taxas de juros em 13,75%, o BC está fazendo todo o esforço para que a tentativa do ministro Haddad de apresentar um novo marco fiscal que tranquilize o mercado se transforme em mero exercício de enxugar gelo, pois a dívida pública vai continuar subindo só com os juros da dívida.
O quadro internacional tampouco é favorável ao crescimento. A China, principal motor por trás do crescimento do PIB do agronegócio brasileiro, está recalibrando suas taxas de crescimento para números mais modestos. A Guerra na Ucrânia pode atravessar o ano. O país está carente de boas notícias na área da economia. Talvez um megapacote de investimentos chineses, como se especula para a próxima visita de Lula à China, pudesse ajudar a virar o jogo.
II.2 Visita de Lula à China pode abrir novas perspectivas para o Brasil
A visita do Presidente Lula à China poderá abrir um novo capítulo na história das relações bilaterais entre o Brasil e a China e contribuir para elevar as relações China-América Latina para um novo patamar. Entre os importantes temas que estarão em discussão entre os dois países, a adesão formal do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota certamente será um deles. Embora a visita atual do presidente Lula não tenha como objetivo principal a discussão sobre esse tema específico e esteja mais focada na ampliação e fortalecimento da cooperação bilateral tanto em áreas nas quais a cooperação bilateral já é forte, como também em novas áreas, a atual visita abre o caminho para um novo salto nas relações bilaterais e certamente levará à formalização, no curto prazo, da adesão do Brasil ao projeto, abrindo, assim, um novo capítulo na relação entre os dois países.
Certamente o encontro pessoal entre o presidente Lula e o presidente Xi Jinping resultará no fortalecimento ainda maior dos laços de cooperação e amizade entre os dois países, principalmente porque em muitos aspectos a visão de mundo do presidente Lula está totalmente de acordo com o que o presidente Xi Jinping vem propondo nos fóruns internacionais. Importantes figuras do atual governo na área das relações internacionais, como o ex-ministro Celso Amorim, pessoa próxima do presidente e seu principal conselheiro na área de relações internacionais, já se manifestou favoravelmente à adesão do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota e não vê motivos para que o Brasil não adira formalmente ao projeto.
Com exceção do Paraguai, com quem a República Popular da China não possuiu relações diplomáticas, Brasil e Colômbia são dos dois únicos países da América do Sul que ainda não aderiram formalmente à BRI, o que não tem impedido, entretanto, de o Brasil ser o maior receptor de investimentos chineses na região. A sua adesão formal, entretanto, abriria caminho não apenas para uma nova onda de investimentos chineses no Brasil, como também consolidaria definitivamente a parceria China-América Latina, representando e enterro simbólico da famigerada Doutrina Monroe, segundo a qual a região deveria estar para sempre subordinada à influência política e econômica dos Estados Unidos, que consideram a região o seu quintal.
Há séculos o desenvolvimento da região tem estado subordinado aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos no hemisfério, o que, por diversas razões tem se constituído em obstáculo para a superação do atraso econômico e social que caracteriza a região desde os tempos coloniais. Estão bem registrados pela história os diversos momentos em que, por razões geopolíticas e ideológicas, as diversas tentativas de encontrar um caminho alternativo de desenvolvimento para os países da região foram abortadas pelas elites locais com o apoio explícito norte-americano.
A busca por um novo modelo de desenvolvimento é uma aspiração das forças progressistas da região comprometidas com a soberania nacional e o bem-estar do povo e, pela primeira vez na história, a China oferece uma alternativa viável, que devidamente adaptada às condições e realidades locais pode representar a abertura de um novo capítulo na história da região. A parceria entre China e América Latina, aí incluído o Brasil, será importante, não apenas pelo exemplo da China, mas por meio de ações concretas, baseadas no princípio dos ganhos mútuos, que poderá fazer toda a diferença para o futuro.
Dentre as inúmeras possibilidades, destacaríamos duas que serão fundamentais para a economia do futuro: a economia verde e as tecnologias de ponta. Na área ambiental, uma parceria entre Brasil e China, poderia romper com o atual impasse entre o desejo de desenvolvimento do país e as pressões que o Brasil recebe dos Estados Unidos e da União Europeia para se resignar à condição de reserva ambiental do planeta. Uma parceria entre o Brasil e a China na defesa da floresta amazônica poderia abrir um novo caminho que pudesse combinar o uso econômico dos recursos da região, em benefício do País e das populações locais, com a preservação da floresta, graças às tecnologias e experiência que a China vem desenvolvimento na área ambiental que procuram conciliar a preservação do meio-ambiente com a necessidade de desenvolvimento. Melhor do que ninguém a China sabe da importância do desenvolvimento e da preservação do meio-ambiente e a cooperação técnica, econômica e financeira nessa área poderia ajudar o Brasil e os países da região a encontrar o equilíbrio necessário entre desenvolvimento e preservação ambiental.
Na área tecnológica, essa parceria poderia abrir igualmente um novo caminho para a inserção do Brasil e outros países da região nas cadeias globais de suprimento de bens industriais e tecnológicos de maior valor agregado. Depois da pandemia da Covid-19 muito se falou de reorganização das cadeias de suprimento globais que poderiam, em tese, beneficiar a região, mas de concreto praticamente nada ocorreu até o momento. Não é do interesse das grandes multinacionais na área de tecnologia de ponta do Ocidente, como semicondutores e indústria farmacêutica, entre outras, transferir para a região atividades de maior valor agregado. Os acordos que serão assinados entre Brasil e China nessas áreas na visita do presidente Lula à China mostram que há um mundo de possibilidades que poderiam ser melhor exploradas elevar não apenas à reversão do processo de desindustrialização pelo qual os países da região, nomeadamente o Brasil, passam atualmente, como poderia representar a entrada da região no mundo da chamada Quarta Revolução Industrial não apenas como fornecedor de matérias-primas, mas também como produtor de bens de maior valor agregado e desenvolvimento de tecnologias.
II.3 Novo arcabouço fiscal procura agradar a gregos e troianos
Finalmente o governo divulgou o novo arcabouço fiscal que substitui o teto de gastos, criado em 2017 durante a gestão de Michel Temer, e posto a pique por Paulo Guedes e o governo Bolsonaro. Conforme noticiou a imprensa (Valor 30/3), a proposta do novo arcabouço fiscal estabelece um limite para o crescimento das despesas em relação às receitas, metas para o resultado primário e um piso para investimentos. A proposta inclui um sistema de “bandas”, que dão flexibilidade ao governo para promover ajustes de acordo com o ciclo econômico.
O novo arcabouço limita o crescimento das despesas a 70% da variação da receita primária nos últimos 12 meses, período entre julho de um ano e junho do outro, para permitir a inclusão das metas no Orçamento, enviado em agosto ao Congresso. Ou seja, se a arrecadação do governo avançar R$ 100 bilhões no período, os gastos poderão ser elevados em R$ 70 bilhões no ano seguinte. Há também uma segunda regra para esse aumento, que vale independentemente do aumento da arrecadação. A proposta estabelece um intervalo fixo de crescimento real (descontada a inflação do período) para as despesas, que varia de 0,6% e 2,5% em relação ao ano anterior. Isso dá ao plano um caráter anticíclico.
O piso mínimo de 0,6% garante ao governo margem de manobra de evitar um corte brusco nos gastos públicos se houver uma queda na arrecadação. Por outro lado, o limite de 2,5% impede um aumento descontrolado das despesas em caso de avanço das receitas. A principal diferença em relação ao antigo teto de gastos é que, atualmente, as despesas são corrigidas apenas conforme a inflação, ou seja, sem crescimento real entre um ano e outro.
Ficam de fora das regras os repasses do Fundo de Manutenção do Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e a ajuda financeira do governo federal a Estados e municípios para bancar o novo piso da enfermagem, ambos previstos na Constituição. Há também um piso mínimo de R$ 70 bilhões em investimentos, que será corrigido pela inflação ao longo dos próximos anos.
As regras têm como objetivo tirar as contas do governo do vermelho. Para este ano, a previsão é ter um déficit primário (saldo entre as receitas e as despesas, descontado o pagamento dos juros da dívida) de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2024, o objetivo é zerar esse déficit. O plano prevê um superávit de 0,5% em 2025, e de 1% em 2026.
Visto no seu conjunto, o plano procura, aparentemente, agradar a gregos e troianos, mas corre o risco de não agradar a ninguém e tampouco criar as condições para que a economia volte a crescer no curto prazo. O piso de 0,6% para o crescimento das despesas pode ser insuficiente para enfrentar um cenário de crise. Por outro lado, o fato de permitir um crescimento real das despesas mesmo sem aumento da arrecadação reduz a credibilidade do plano para os fiscalistas. Faria melhor o governo, se primeiro definisse aonde quer chegar para depois pensar nos meios para atingir suas metas e não contrário: definir primeiro os meios e ver depois o que dá para fazer. Não foi para isso que foi eleito.
II.4 União Europeia dá facada nas costas do Brasil e do Mercosul
O Acordo de Livre-Comércio entre a União Europeia e o Mercosul, negociado por 20 anos e finalmente assinado em 2019, foi posto em modo de espera no ano passado porque os europeus alegaram que o desmonte da política ambiental de Bolsonaro impedia que o processo de ratificação pudesse ir adiante. A promessa era que, eleito no Brasil um novo governo que levasse a sério o combate ao desmatamento e a defesa do meio ambiente o acordo seria finalmente implementado. Doce ilusão. Apesar de tudo o que governo tem feito em matéria ambiental, tendo, inclusive, indicado para ministra do meio ambiente uma pessoa que praticamente representa os interesses dos governos e ONGs europeias em matéria de meio ambiente no Brasil, os europeus mais uma vez mostraram que o que de fato impede a concretização do acordo não são as questões ambientais, que apenas servem de biombo para camuflar o protecionismo europeu em matéria de agricultura.
Nas discussões em curso para a implementação do acordo os europeus apresentaram uma lista de novas exigências na área ambiental que nunca foram postas em nenhum tratado que tenham assinado até hoje. Além disso, transformaram compromissos voluntários do País assumidos nos acordos multilaterais como obrigações vinculantes, num tratado bilateral entre dois blocos. Conforme noticiou a imprensa (Valor, 23/3), “O documento europeu faz nada menos de 19 referências ao Acordo do Clima de Paris, portanto como um dos elementos essenciais do Acordo UE-Mercosul. E em uma delas, o significado, visto do cone sul, é que um eventual descumprimento das metas individuais no Acordo de Paris poderia resultar em suspensão das concessões acertadas no acordo UE-Mercosul”. Para acrescentar escárnio à injúria, vazaram o documento, que está sendo discutido em sigilo, para um grupo de organizações não governamentais (ONGs) que se apressaram em declarar insuficientes as demandas de Bruxelas ao Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Segundo noticiou a imprensa, o gesto causou profundo mal-estar no Itamaraty, já que rompeu a boa-fé do processo e ainda criou uma pressão ainda mais elevada para que as exigências fossem aprofundadas. Conforme informou o UOL (26/3), “Internamente, o Itamaraty insiste que está disposto a continuar negociando. Mas em uma recente entrevista, o chanceler brasileiro Mauro Vieira não escondeu suas críticas aos europeus, alertando que o Brasil não aceitaria medidas unilaterais e nem condições impostas sobre como cada país do Mercosul deveria lidar com suas realidades. Para membros do governo, os europeus estão revelando sua face protecionista, uma vez mais”.