Analistas ocidentais das mais diversas correntes têm sido quase unânimes em afirmar que uma guerra entre Estados Unidos e China tendo a questão de Taiwan como detonador do conflito é inevitável e que há muito pouco a ser feito para evitá-la. O que variam são as justificativas que oferecem para esse funesto desfecho.
Enquanto alguns tentam justificar a inevitabilidade do embate como resultante de uma suposta atitude agressiva da China no seu entorno regional (uma possível invasão de Taiwan, domínio sobre o Mar do Sul da China, problemas de fronteira com a Índia etc.) e da “necessária” ação dos Estados Unidos para “defender” seus aliados, outros, menos cínicos e mais realistas, veem o conflito como a resposta inevitável de uma potência hegemônica estabelecida, no caso os Estados Unidos, contra uma potência ascendente, no caso a China, que ameaça tirá-la do topo da pirâmide da ordem global.
Uma rápida passagem de olhos nos títulos e manchetes dos artigos publicados no mês de agosto sobre o tema dá uma ideia do clima que vai se armando: “America must consider the risk a war over Taiwan could go nuclear”, adverte o Financial Times em 22/08; “The Coming War Over Taiwan”, anunciou o Wall Street Journal em 04/08; “America Must Prepare for a War Over Taiwan”, trombeteou a Foreing Affairs, em sua edição de agosto. O mesmo Financial Times (08/08) lamentou o “Dangerous fatalism about a US-China war”, torcendo para que os dois lados estejam blefando. Também não faltaram artigos tentando relativizar esse risco ou fazendo recomendações de como evitar o pior. A revista inglesa The Economist, em sua edição de 11/08, publicou artigo com o título “How to prevent a war between America and China over Taiwan”, no qual sugere ser preciso “convencer” a China de que é melhor para ela não invadir Taiwan.
A bem da verdade não é de hoje que esse “inevitável” confronto entre Estados Unidos e China vem sendo anunciado. O livro de Graham Allison, “Destined for War. Can American and China Escape Thucyidide’s Trap”, publicado em 2017, nos Estados Unidos e recentemente traduzido para o português (A Caminho do Guerra) tornou-se uma referência sobre o tema. Nele, o autor afirma que embora a guerra entre EUA e China não seja inevitável, as duas nações correm o risco de cair na armadilha mortal identificada originalmente pelo historiador grego Tucídides, ao descrever a guerra que devastou Atenas e Esparta, as duas principais cidades-Estados da Grécia clássica há dois milênios e meio. Segundo Allison, “China e Estados Unidos estão em rota de colisão – a menos que tomem medidas difíceis e dolorosas para evitar uma guerra”.
O artigo “The Inevitable Rivalry America, China, and the Tragedy of Great-Power Politics” de John J. Mearsheimer, publicado na edição de novembro de 2021 da Foreign Affairs, apresenta uma visão que o autor considera realista sobre o tema e conclui que “A força motriz por trás dessa rivalidade entre grandes potências é estrutural, o que significa que o problema não pode ser eliminado com políticas inteligentes. A única coisa que poderia mudar a dinâmica subjacente seria uma grande crise que interrompesse a ascensão da China – uma eventualidade que parece improvável, considerando o longo histórico de estabilidade, competência e crescimento econômico do país. E assim uma perigosa competição de segurança é quase inevitável”.
Embora a ocorrência de uma guerra entre a primeira e a segunda potência mundial talvez já tenha passado do terreno do “possível”, com certeza ainda não chegou no “inevitável”. A China, se quisesse, já teria recuperado Taiwan à força em muitas ocasiões no passado. Entretanto nunca o fez, exatamente porque sempre procurou alcançar a reunificação de forma pacífica. Da mesma forma, a questão do Mar do Sul da China se arrasta desde 1947, quando foi traçada a linha de nove pontos, que define a área sobre a qual, por razões históricas, a China reivindica soberania quando o presidente do país era ainda Chiang Kai-shek. Não tem nada a ver, portanto, com uma suposta atitude agressiva dos comunistas, como os EUA tentam pintar.
Como lembra o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira em excelente reportagem sobre o tema[i], “Essa linha é o resultado da Conferência do Cairo, anunciada em 27 de novembro de 1943, depois do encontro de Chiang Kai-Shek, representante do governo nacionalista republicano chinês, ainda com a participação dos comunistas, com o presidente Roosevelt, dos EUA, e o primeiro-ministro britânico, Churchill, para tratar da aliança na guerra contra o Japão. A primeira cláusula dizia o seguinte: “que o Japão seja desalojado de todas as ilhas do Pacífico que tenha apreendido ou ocupado deste a Primeira Guerra Mundial de 1914”. A China vem, portanto, tratando diplomaticamente dessas duas questões – Taiwan e Mar do Sul da China – há pelo menos sete décadas e a deterioração recente do clima em torno do assunto se deve, ao contrário do se apregoa, não a uma atitude agressiva da China, mas sim dos EUA, tanto dando sinais à liderança do separatista Partido Democrático Progressista (DPP) de Taiwan de que os apoiariam militarmente no caso de uma eventual declaração de independência, quanto navegando com navios de guerra em áreas territoriais chinesas, como fizeram em 26 de outubro de 2015, quando o governo Barak Obama “Avisou que o USS Lassen, um destróier do tipo mais avançado do arsenal da marinha de guerra, carregado de mísseis e acompanhado de aviões de reconhecimento e proteção, dentro de 24 horas faria um roteiro que o levaria a menos de 12 milhas marítimas de uma das ilhas criadas pelos chineses no arquipélago Spratly, dentro das áreas territoriais pretendidas como chinesas”[ii].
Afirmar, portanto, que uma guerra entre EUA e China é inevitável é, no fundo, admitir que os Estados Unidos darão início a essa guerra, pois da parte chinesa não há nada que indique, por seu histórico de atuação na região, que ela pretenda iniciar um conflito militar, a não ser que seja para se defender de alguma agressão dos Estados Unidos.
Uma guerra entre Estados Unidos e China seria ruinosa, não apenas para ambos, mas para todo o mundo. Um conflito militar entre os dois países fatalmente teria um impacto tremendo sobre a economia mundial, podendo jogar o mundo em uma situação de depressão econômica que poderia levar anos para ser revertida. Artigo do Wall Street Journal lembra que “As consequências econômicas [de uma guerra] também seriam horríveis. Vias fluviais vitais se tornariam galerias de tiro; o mundo pode se ver isolado dos mais de 90% dos semicondutores de ponta que são fabricados em Taiwan. De acordo com a RAND Corporation, um ano de luta reduziria o produto interno bruto dos Estados Unidos em 5% a 10% e o da China em 25% a 35%. Uma depressão global estaria praticamente garantida”.
[i] Pereira, R. R. A China se Levanta. Manifesto Jornalismo. Caderno Especial IV. Dezembro de 2018.
[ii] Idem, ibidem.