Enquanto a Guerra na Ucrânia vai ceifando vidas e destruindo infraestrutura e capacidade produtiva, uma outra guerra – a das narrativas – vai sendo travada nas páginas de jornais e no noticiário da tevê e da Internet. Enquanto na primeira a Rússia leva ampla vantagem, na segunda o que [ainda] prevalece, pelo menos no Ocidente, é a versão de que a guerra na Ucrânia é o resultado de um ataque não provocado àquele país por uma potência militar agressiva que representa uma ameaça para o mundo livre. De certa forma é a mesma narrativa que se tenta construir em relação à China. Como afirmou em artigo recente Joseph S. Nye, Jr. (Project Syndicate (15/06), ao falar sobre as lições da guerra na Ucrânia, “A guerra de informações faz a diferença. Como John Arquilla, de Rand, apontou duas décadas atrás, os resultados da guerra moderna dependem não apenas de qual exército vence, mas também de “qual história vence”.
O objetivo dessa guerra de narrativas é isolar a Rússia perante a opinião pública internacional e demonizar o presidente Vladimir Putin para, com isso, justificar tanto as duras sanções econômicas impostas ao país, quanto os sacrifícios cada vez maiores que estão sendo determinados ao resto do mundo pelo prolongamento desnecessário do conflito que poderia já estar encerrado não fosse a ajuda militar que a Ucrânia vem recebendo de seus aliados da Otan, principalmente dos Estados Unidos.
Comentaristas prestigiados no Ocidente, como o jornalista norte-americano Thomas Friedman que, aliás, escreveu um artigo interessante no início do conflito, justamente chamando a atenção para a responsabilidade do Ocidente no desencadeamento do conflito, vêm escrevendo artigos sobre a guerra, que são reproduzidos por uma centena de jornais mundo afora, com o propósito de estabelecer paralelos sem nenhuma verossimilhança, apenas com o objetivo de caracterizar a Rússia e Putin como agressores movidos pelo frio desejo de conquista.
Em artigo reproduzido no jornal Estado de São Paulo (02/06), Friedman afirmou: “Esta invasão — com soldados russos indiscriminadamente bombardeando prédios residenciais e hospitais na Ucrânia, matando civis, saqueando lares, estuprando mulheres e criando a maior crise de refugiados na Europa desde a 2.ª Guerra — cada vez mais é vista como uma reprise no século 21 da investida de Hitler contra o restante da Europa, que começou em setembro de 1939 com o ataque alemão contra a Polônia”. Esse paralelo não faz o menor sentido: Putin não quer dominar a Europa e tampouco quer ser dominado pela Europa e pelos Estados Unidos.
Mas mesmo esta segunda guerra não está sendo fácil de vencer pelo Ocidente. Apesar de todo o esforço da mídia ocidental de apresentar o conflito como resultado de uma agressão não-provocada por parte dos russos, não é o que pensam e vocalizam personalidades insuspeitas, como o Papa Francisco. Como noticiou o jornal Valor (15/6), “Em seu comentário mais direto sobre a guerra, o papa Francisco condenou ontem a “crueldade” e a “ferocidade” das tropas russas na Ucrânia. Em entrevista com jornalistas europeus, ele disse, no entanto, que “não há bons e maus” no conflito, afirmando que “de certa forma a Rússia se viu pressionada pela expansão da Otan [a aliança militar ocidental] para o leste”
Os países que até agora se negaram a condenar a Rússia abrigam mais da metade da humanidade. Prova de que a Rússia não está isolada como se quer fazer crer, foi o Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, também conhecido como “Davos da Rússia”, realizado entre 15 e 18 de junho, na sua antiga capital imperial. Apesar das medidas tomadas por alguns países hostis à Russia para impedir a participação da comunidade de negócios e funcionários de governo no fórum, estiveram presentes mais de 14.000 pessoas de 130 países, com 81 países enviando representantes oficiais.
Na seção plenária do evento, o presidente russo Vladimir Putin e o presidente da República do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, participaram presencialmente e o presidente da China, Xi Jinping, e o do Egito, Abdel Fattah el Sisi, enviaram vídeo-mensagens. Mais de 130 funcionários de alto escalão de dezenas de países compareceram ao evento, incluídos vice-presidentes, primeiros-ministros, prefeitos e governadores, ministros de relações exteriores, chefes de parlamentos e representantes de destacadas organizações e associações internacionais. O fórum foi coberto por 3.500 veículos de mídia de 33 países: Armenia, Azerbaijão, Bósnia and Herzegovina, China, Egito, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, República Popular do Donetsk, Índia, Iraque, Japão, Cazaquistão, Líbano, Moldávia, Holanda, Paquistão, Catar, Bielo-Rússia, Arábia Saudita, Sérvia, Singapura, Suíça, Síria, Turquia, Emirados Árabe Unidos, Uzbequistão, Reino Unidos, Estados Unidos, Venezuela e Vietnã.
No encerramento, o presidente Vladimir Putin aproveitou para lembrar que as sanções econômicas afetam mais a Europa do que a Rússia e que a Rússia irá florescer mesmo sem o Ocidente. Conforme informou o Wall Street Journal (13/06), o superávit da conta corrente da Rússia subiu para US$ 110,3 bilhões nos primeiros quatro meses do ano de U $ 32,1 bilhões no mesmo período do ano passado. Aproveitou ainda para fazer um comentário a respeito do fato de a Comissão Europeia ter naquele mesmo dia, 17 de junho, formalmente recomendado que a Ucrânia adquira o status de candidata a membro da União Europeia. Segundo informou o New York Times (19/06), Putin afirmou que a Rússia não teria nada contra a Ucrânia ingressando no bloco europeu. “A União Europeia não é “uma organização militar”, como a Otan, disse ele, e é “a decisão soberana de qualquer país” querer se juntar a ela. “Nunca fomos contra isso – sempre fomos contra a expansão militar no território ucraniano porque isso ameaça nossa segurança”, disse Putin. “Mas, quanto à integração econômica, por favor, pelo amor de Deus, é a escolha deles”.