Darcy Ribeiro (Montes Claros-MG, 1922 – Brasília-DF, 1997) foi um dos mais importantes e prestigiados antropólogos, romancistas e políticos do Brasil.
Além da sua vasta e abrangente contribuição para o pensamento social brasileiro, foi responsável, enquanto funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, presidido pelo Marechal Cândido Rondon, pela criação do Museu do Índio (1953) e pela elaboração do projeto de criação do Parque Indígena do Xingu, efetivada em 1961. Como ministro da Educação do governo João Goulart, criou a Universidade de Brasília (UnB), sendo, inclusive, seu primeiro reitor. Como secretário de Educação do governo Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, esteve à frente da criação dos CIEPs, um dos mais arrojados projetos de educação pública no Brasil. Também estruturou a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), durante o segundo governo Brizola (1991-1994). Enquanto Senador pelo estado do Rio de Janeiro (1991-1997), foi relator da criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), também conhecida como Lei Darcy Ribeiro.
A sua teoria de Brasil insere-se no quadro maior da sua teoria do processo civilizatório, isto é, da evolução sociocultural-tecnológica, caracterizada pela sucessão progressista, entremeada de períodos regressistas, de etapas históricas dos modos coletivos de existência.
O Brasil surge, então, da expansão atlântica da etapa evolutiva que Darcy chama de Império Mercantil-Salvacionista, mais especificamente em sua versão ibérica. Oriunda da aliança entre a Coroa e o Papado nos albores da modernidade, essa formação era voltada para o atendimento tanto dos desígnios comerciais dos Estados ibéricos no contexto histórico do mercantilismo, quanto dos de conversão de nativos e ampliação da base de fiéis por parte da Igreja, reforçados após o rompimento da unidade espiritual na Europa ocidental pela Reforma Protestante.
O Brasil nasce, pois, do ponto de vista das relações materiais, como um empreendimento agromercantil-escravista heterônomo, comandado de além-mar, e, do ponto de vista espiritual, como um dos principais núcleos de irradiação da fé cristã e do poderio da Igreja Católica Apostólica Romana.
O Brasil desponta no panorama histórico, então, como filho ibero-americano da civilização ocidental-mediterrânea, herdeira da romanidade salvaguardada pela Igreja e berço do capitalismo mercantil, cujo prolongamento mundial por meio das Grandes Navegações resultou na incorporação histórica do continente americano à modernidade. O pioneirismo mercantil-salvacionista ibérico deu, assim, início a circuitos comerciais, militares e religiosos interoceânicos que criariam um verdadeiro sistema-mundo do qual o Brasil seria uma das mais ricas e disputadas províncias de exploração mercantilista.
O Brasil não seria, contudo, uma transplantação da Península Ibérica ou uma simples empresa comercial no interesse português. Na tipologia, elaborada por Darcy, de configurações histórico-sociais advindas da expansão marítima moderna, o Brasil foi incluído na categoria dos “povos novos”, originados da fusão de diferentes matrizes étnico-culturais atualizadas em novas sínteses, derivadas de forte e generalizado processo de miscigenação.
Nos termos de Darcy, o Brasil, então, não seria apenas um “moedor de gente” para a realização de atividades interessantes aos comandos ultramarinos, mas, também, um “criatório de gente”, capaz de abrigar a gênese de um povo original no sangue e na alma.
O Brasil diferiria, desse modo, dos povos transplantados (Estados Unidos, Austrália, Argentina e Uruguai, por exemplo), meros enxertos imigratórios de povos e nações já constituídos, dos povos testemunho (México, Peru e Bolívia), remanescentes de civilizações pré-colombianas derrotadas pelo expansionismo mercantil-salvacionista espanhol, e dos povos emergentes, surgidos na África e na Ásia com o processo de descolonização.
Nas palavras de Darcy:
“Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo, num novo modelo de estruturação societária” (Ribeiro, 2006 [1995], p. 17).
A mestiçagem e o sincretismo possibilitaram a organização histórica dos brasileiros em uma única etnia nacional em todo o território, uma façanha não apenas pelo ineditismo social, mas, também, pela coesão em toda a vastidão geográfica entremeada de variadas condições climato-botânicas.
A unidade étnico-cultural brasileira não significaria, todavia, homogeneidade. Diferentes tipos sócio-regionais brasileiros, originados de condições formativas diversas, coexistiriam na mesma nacionalidade. Na classificação de Darcy, haveria o Brasil crioulo, desenvolvido a partir da cultura escravista-açucareira da zona da mata do Nordeste; o Brasil sertanejo, organizado em torno do pastoreio desde o interior árido do Nordeste até o Centro-Oeste; o Brasil caboclo, formado por esparsos contingentes demográficos amazônicos, mormente ocupados em atividades extrativistas; o Brasil caipira, de matriz bandeirante-mameluca, espraiado pelo oeste brasileiro inicialmente em busca de ouro e diamantes e, posteriormente, engajado na cultura do café e na industrialização subsequente; o Brasil gaúcho, tanto o matuto-açoriano quanto o gringo-caipira das áreas colonizadas por imigrantes italianos e alemães, modelado pelo pastoreio nas campinas sulistas.
Se Darcy celebra a diversidade sócio-regional na unidade nacional brasileira, por outro lado, deplora que essa unidade ainda não tivesse ensejado uma relação menos hierárquica e desigual entre as minorias oligárquicas e as maiorias populares. Na estratificação social definida pelo autor, as primeiras, compostas pelo patronato tradicional (latifundiários) e moderno (grandes empresários) e pelo patriciado estatal (político, militar e tecnoburocrático) e civil (eminências e celebridades), associados de maneira auxiliar ao capital estrangeiro, arrematariam, frequentemente de forma violenta e com a conivência dos setores intermediários, a parte do leão das riquezas produzidas pelo suor das classes subalternas (campesinato e operariado) e da vasta massa marginal alheia às relações formais de trabalho características do moderno industrialismo (Ribeiro, 2006 [1995], p. 193).
Darcy, entretanto, não escamoteia o fato de, em momentos de crise das estruturas tradicionais de poder, despontar, do âmago das oligarquias, segmentos não alinhados a elas, verdadeiras “antielites” capazes de aliar-se às camadas populares, elevando-as ao primeiro plano político pela remodelação das instituições num sentido nacionalista e progressista. Tais regimes, alcunhados por Darcy de nacionalistas-modernizadores, seriam representados no Brasil, segundo ele, pelos governos de Getúlio Vargas e João Goulart. Apesar disso, o nacionalismo modernizador encontraria estreitos limites para a sua ação reformista, dificilmente abolindo as persistentes desigualdades sócio-político-econômicas, particularmente graves no caso brasileiro.
Essas desigualdades, ao sustentarem a permanência, em nosso País, dos aspectos mais espoliativos herdados da ordem mercantil-escravista, obstavam o fortalecimento de laços genuínos de solidariedade social, degradavam o sentimento de pertencimento comum à Nação, mantinham os vínculos (neo)coloniais de subordinação aos centros metropolitanos exteriores e impediam a formação de um projeto nacional de soberania e desenvolvimento autônomo para erguer o Brasil e fazê-lo andar sobre os próprios pés.
A análise lúgubre das assimetrias de poder no Brasil não transige, todavia, com o pessimismo paralisante. Darcy vê o Brasil como problema, como um País imerso em contradições que obstaculizam o prosseguimento de sua construção inacabada. Mas, sobretudo, e justamente em razão dessas dificuldades, entende nosso País como solução, como portador de uma elevada e generosa missão no plano da humanidade.
Sendo o Brasil a maior nação neolatina do mundo e o principal herdeiro de Roma, dotado de uma capacidade inigualável de assimilação dos mais variados povos e culturas sem perda da sua identidade, bem como de encontrar a alegria e a vitalidade em meio às agruras do subdesenvolvimento, estaria destinado a ser a Nova Roma, um Império mestiço, tropical e verdadeiramente universal, ainda melhor que a antiga Roma por incorporar as humanidades negras e ameríndias.
Mais ainda, caberia ao Brasil liderar a integração ibero-americana contra o antagonista comum, a América anglo-saxônica, de modo a fazer prevalecer o humanismo ocidental, originado na latinidade romano-católica mediterrânea da qual seríamos os principais rebentos, em detrimento do imperialismo anglo-saxão, baseado nos valores individualistas da Reforma Protestante e do Iluminismo, estranhos e até mesmo opostos à nossa matriz histórica romana.
O Brasil, reconciliado consigo próprio, seria, dessa forma, não apenas mais um País no concerto mundial de nações, mas o expoente da civilização ocidental, capaz de orientar o mundo em valores nobres e generosos de convivência pacífica e miscível com todas as raças e culturas. Representaria, assim, a antítese a todo imperialismo, racismo e desrespeito à autodeterminação dos povos e das civilizações. O Brasil, a “mais bela e luminosa província da Terra” (Ribeiro, 2006 [1995], p. 411), seria a solução não só para os nossos compatriotas, mas para toda a humanidade, erigindo-se em farol de toda a raça humana. A brasilidade, por conseguinte, erigir-se-ia no cume do processo civilizatório mundial, como fator de integração, harmonia e compartilhamento de técnicas e saberes entre todos os povos e culturas.
Como afirmou Darcy: “Faz falta ao mundo um Brasil realizado em suas potencialidades de civilização tropical, mestiça e solidária, que não pede nada a ninguém, mas muito pode dar. Temos tudo para isso” (Ribeiro, 1995, p. 14).
Referências:
RIBEIRO, Darcy. Propuestas acerca del Subdesarrollo – Brasil como Problema. Montevidéu: Libros de la Pupila, 1969.
_________________. O Processo Civilizatório. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
_________________. O Dilema da América Latina – Estruturas de Poder e Forças Insurgentes. Petrópolis: Vozes, 1978.
_________________. O Brasil como problema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
_________________. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006[1995].
Um ótimo texto! Que além de cumprir seu caráter científico de análise, apresenta de forma sucinta, sem deixar de ser criteriosa, o pensamento de um dos maiores intelectuais brasileiros.