Resenha Estratégica – Vol. 18 – nº 20 – 26 de maio de 2021.
Desde antes de assumir o Ministério da Economia, Paulo Guedes tem se mostrado um fervoroso pregador do modelo econômico neoliberal aplicado no Chile pelo regime de Augusto Pinochet (1973-1990), mantido no essencial pelos seus sucessores. Tendo trabalhado no país por um breve período, em sua empolgação delirante, chegava a compará-lo à Suíça. E, ao ser guindado ao posto de “superministro” por Jair Bolsonaro, as suas menções ao “modelo chileno”, em especial, de Previdência Social, tornaram-se quase reverenciais, passando a tomar quase como ataques pessoais quaisquer críticas ao mesmo, cujas deficiências foram escancaradas nos últimos anos.
No final de 2019, diante das históricas manifestações que levaram literalmente milhões de chilenos às ruas para protestar contra as crescentes desigualdades geradas pelo modelo decantado por Guedes (deflagradas por um aumento de 3% na tarifa do metrô de Santiago), a sua resposta foi sintomática de um estado de negação: “Como negar 30 anos de acerto no Chile porque houve uma manifestação?” – disse, em um evento promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo (Valor Econômico, 30/10/2019)”. Para ele, a interpretação de que as manifestações eram uma resposta à piora da qualidade de vida da população não passava de “uma narrativa política”. E insistia na adoção da mesma “receita” para o Brasil: “Vamos privatizar e abrir o investimento para o setor privado.”
Entretanto, enquanto Guedes se obstinava em apontar para o Brasil o caminho de Santiago do Chile, com promessas feitas com um fervor quase religioso de que esta seria a trilha da redenção nacional, os chilenos se obstinavam em contrariar os “30 anos de acerto” do modelo da “Suíça sul-americana”, tendo os protestos resultado na convocação de uma nova assembleia exclusiva para a elaboração de uma nova Constituição, que acaba de ser eleita.
Um oportuno retrato da realidade socioeconômica do país andino foi proporcionado por uma reportagem de Janaína Figueiredo, no jornal O Globo de 24 de maio, com o sugestivo título: “Revolta anunciada: insatisfação da classe média precarizada derrubou modelo chileno.”
Profunda conhecedora do cenário sul-americano, tendo sido correspondente do jornal em Buenos Aires, a jornalista sintetiza as causas do que uma de suas entrevistadas, Rossana Castiglioni, decana da Faculdade de Ciências Sociais e História da Universidade Diego Portales, chama de “tempestade perfeita”:
Muitos elementos explicam essa tempestade e o basta dado por amplos setores da sociedade chilena a um modelo que rendeu altas taxas de crescimento (sobretudo na década de 1990), reduziu a pobreza de 68% para 8,6% entre 1990 e 2020, garantiu estabilidade macroeconômica e política a todos os governos pós-redemocratização, mas é excludente e desigual.
Citando um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ela afirma que “33% da renda gerada por uma economia essencialmente primária e exportadora de commodities ficam em mãos de 1% dos chilenos mais ricos”.
Em suas palavras, “a macroeconomia chilena elogiada por Guedes está sob controle, mas abaixo dela milhões de pessoas até agora ignoradas pelo poder político e econômico – de direita, centro e esquerda – vivem endividadas e insatisfeitas”.
Castiglioni explica:
Hoje, 43% da população chilena pertencem a uma classe média baixa, que ganha apenas entre uma e meia e três vezes mais que os que vivem abaixo da linha da pobreza. Isso num país que tem um PIB [Produto Interno Bruto] per capita de US$ 22 mil, muito acima da média regional [para comparação, a do Brasil era de US$ 8.717 em 2019 – n.e.]. São milhões de chilenos que se cansaram de ouvir falar de um milagre econômico que favoreceu apenas as elites.
Segundo ela, trata-se de uma classe média bastante vulnerável, bastando uma doença grave para colocar uma família inteira abaixo da linha da pobreza: O Chile é o terceiro país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) onde as pessoas mais gastam em despesas médicas não cobertas pelos planos públicos e particulares. Isso explica, em parte, por que 66% das famílias estão endividadas e 33% são inadimplentes.
Ou seja, diz Janaína Figueiredo, “o suposto milagre chileno não significou acesso igualitário a saúde, educação, habitação e qualidade de vida”.
Para Sergio Toro, professor da Universidade de Concepción, o modelo deixado pela ditadura de Pinochet não formou cidadãos, mas consumidores, hoje, asfixiados por dívidas que não podem pagar e frustrados por terem sido excluídos de um projeto político e econômico pensado para poucos.
O Chile, diz a jornalista, é um exemplo claro de uma revolução social “promovida por setores médios precários, cansados de não serem representados nem protegidos pelos que estão no poder”.
Uma recente pesquisa do Centro de Estudos Públicos de Santiago mostrou que apenas 8% dos chilenos confiam no Congresso Nacional, e 2% nos partidos políticos.
O professor da Universidade Católica de Santiago, David Altman, afirma que a configuração da atual Assembleia Constituinte “é um espelho mais nítido da sociedade chilena. O espelho de um país fragmentado”.
Seu colega Juan Pablo Luna observa que a economia pujante que beneficiou poucos perdeu sustentabilidade política e as manifestações de 2019 foram a consequência e o golpe final no modelo, após várias revoltas sociais anteriores: “Do modelo neoliberal que viveu seu auge na década de 1990 só deverá restar a autonomia do Banco Central. A ideia de que o Estado só entra em campo quando o mercado falha está desaparecendo.
Crescemos, sim, mas distribuímos muito mal.” E Castigliani aponta para um fator crucial na revolta: “Na classe média baixa precarizada, temos um número enorme de mulheres chefes de família, todas com menos de nove anos de educação. Era uma revolta anunciada.”
Do outro lado da Cordilheira dos Andes, condições semelhantes para uma tempestade perfeita também parecem estar se formando no Brasil, onde o caminho de Santiago, até há pouco, era roteiro destacado nas litanias ministeriais: inflação em alta (principalmente, nos alimentos e combustíveis), desemprego, subemprego e desalento, idem, e uma virtual estagnação produtiva, setor agropecuário à parte.
No Chile, os sacerdotes do fundamentalismo de mercado foram excomungados; vejamos o que acontecerá no Brasil.
Com a pobreza que temos em nosso rico país, urge que legislativo e executivo unam esforços para superar este gigantesco obstáculo para nosso crescimento e bem estar.