Gilberto Freyre (Recife, 1900 – Recife, 1987) foi um dos maiores pensadores e intérpretes da brasilidade. Autor de dezenas de livros sobre variados temas, em geral relacionados ao Brasil e, também, ao Nordeste e a Pernambuco especificamente, ele conciliou, erudita e magistralmente, uma abordagem universalista com temáticas locais e regionais, contribuindo para redefinir o entendimento predominante de Brasil.
O fio condutor do pensamento de Freyre é a dialética entre identidade e mudança, entre os modos existenciais específicos ao Brasil, construídos e adaptados no decurso histórico, e os processos de modernização que modificam os contextos e apagam ou ressignificam os elementos tradicionais. Não há, em Freyre, nem saudosismo nem futurismo. Ele propõe ao Brasil justamente uma modernização sui generis, em que o inevitável alinhamento do País às novas tendências mundiais não implicasse na perda da identidade, de modo a possibilitar a “conciliação do desenvolvimento técnico com alguns dos valores tradicionais característicos do Brasil” (NMT[1], p. 317). Um Brasil moderno e ainda assim brasileiro, e justamente por isso ainda mais brasileiro e capaz de se converter em farol civilizatório do mundo moderno, eis o que ele defende.
Em que consistiria, pois, a identidade brasileira? Para Freyre, o Brasil, tendo sido construído por portugueses, africanos e ameríndios e carregando muito viva a herança de cada um desses elementos, não se reduziria a nenhum deles. O Brasil não seria uma transplantação de outro povo tampouco uma justaposição de enxertos, mas, sim, um “novo mundo nos trópicos”, uma civilização tropical e original que, “sendo decisivamente europeia e cristã em suas características principais, não tem procurado permanecer, nem permanece, exclusivamente europeia e cristã em seus estilos de vida” (NMT, p. 188). O Brasil seria a primeira civilização tropical existente, nascida do expansionismo português.
Uma das características centrais da civilização brasileira, segundo Freyre, seria a miscigenação étnico-cultural, isto é, a capacidade de amalgamação de diferentes etnias e culturas em sínteses originais. Em vez da segregação, comum no mundo anglo-saxão, prevaleceriam no Brasil o encontro e a mistura, resultando em uma diversidade de combinações, sem prejuízo da unidade nacional, antes reforçando-a pela vitalidade da pluralidade de cores, costumes e hábitos. O Brasil se caracterizaria pelo equilíbrio dos antagonismos, no qual residiria a potencialidade da cultura brasileira, bem como pelo abrandamento das diferenças, por meio da tendência ao fusionamento.
O Brasil estabeleceria, então, um “novo e socialmente flexível sistema nacional de convivência” delineado por um grau elevado de democracia social, em que o exotismo não seria uma ameaça ao corpo coletivo, mas um elemento a mais a ser abrasileirado pela assimilação aos outros já presentes. No Brasil, haveria uma inquebrantável unidade em meio a uma impenitente diversidade – não a diversidade pós-moderna de comportamentos e estilos de vida artificiais e desenraizados, mas a verdadeira diversidade, a dos costumes orgânicos ao povo e à terra. No Brasil, os múltiplos costumes e tradições locais e regionais não conflitariam nem se estranhariam entre si, mas se irmanariam em uma identidade nacional superior e abrangente.
Nesse sentido, a civilização brasileira seria universal em sua especificidade, pois favoreceria a harmonização de todos os tipos humanos. Representaria, então, uma alternativa superior tanto ao racismo/etnocentrismo quanto ao multiculturalismo, dado que, em vez de compartimentar os povos e culturas, aglutinaria-os em uma socialização sincrética.
Segundo Freyre, esse aspecto da brasilidade seria decorrência do expansionismo lusitano na América, pois, sendo Portugal uma espécie de transição entre a Europa e a África, carregaria a plasticidade necessária à miscigenação e ao caldeamento. No Brasil, o português teria imprimido esse traço à nova sociedade nacional que ele ajudou a criar, pois, mais do que o enriquecimento extrativista para desfrute na Metrópole, ele teria assentado raízes e estabelecido a sua permanência e a da sua família, tanto a legal quanto a bastarda.
Um dos fatores que teriam contribuído para a fixação do português ao Brasil e para a formação mestiça do povo brasileiro teria sido a grande propriedade rural escravista, patriarcal e açucareira. Embora Freyre reconheça o nomadismo bandeirante, partindo de São Paulo, como outro fator de construção nacional, ele centra sua análise no latifúndio, elemento fixo de colonização, presente, sobretudo, na zona da mata do Nordeste.
O domínio senhorial, que se sobrepunha inclusive ao eclesiástico, teria, pelo relativo insulamento dos engenhos, delineado um padrão social, político e econômico estável e específico do Brasil, distinto do que prevalecia em Portugal. O mandonismo dos particulares não impediu a aproximação social e sexual entre brancos e negros, tampouco criou uma aristocracia fechada e etnicamente definida. Nas palavras de Freyre, “em torno dos senhores de engenho criou-se o tipo de civilização mais estável da América hispânica” (CGS[2], p. 24).
Nos engenhos, teria se travado um tipo muito peculiar de relação social entre brancos e negros, marcado tanto pela intimidade quanto pela violência. Na civilização do açúcar, ao mesmo tempo em que os senhores brancos e as escravas negras copulavam livremente e seus filhos mestiços eram tratados em pé de igualdade com os filhos legítimos do senhor e da sinhá, que por sua vez eram amamentados e criados pelas escravas, havia, por outro lado, toda uma relação de sadismo por parte dos senhores e de masoquismo por parte dos escravos, sendo corriqueira a inflição de terríveis castigos corporais aos escravos.
Dessa forma, quando Freyre fala de “democracia racial”, ele não ignora o quanto de arbitrariedade e truculência estava contido na formação do povo brasileiro. O que ele ressalta, porém, é que a violência não impediu o cruzamento, na maioria das vezes voluntário, de diferentes grupos étnicos, assim como não impediu a hibridização cultural resultante da aproximação entre brancos, negros e ameríndios, bem como a existência de determinadas práticas que poderiam ser consideradas democráticas, considerando a preeminência do escravismo.
Por exemplo, havia, para os padrões da época, um elevado grau de mobilidade social, em que os mulatos e mamelucos poderiam ocupar posições de destaque na sociedade. Também havia uma massa de homens livres e despossuídos, geralmente mestiços, que praticavam, no entorno das fazendas, uma agricultura de subsistência que alimentava esses camponeses, os senhores e os escravos. Em volta e em função dos engenhos também existiam determinadas práticas artesanais locais, voltadas para o sustento interno, como confecção de roupas e ferramentas. Assim, o engenho escravocrata, longe de se constituir apenas para o atendimento das demandas portuguesas, criou um mundo próprio e relativamente independente, no qual Freyre procura as origens da brasilidade.
A ocupação portuguesa na parte austral do continente americano definiu, assim, todo um padrão social e econômico interno que não existia em função de interesses externos, mas em decorrência das qualidades e necessidades do povo que aqui se formou. Sendo esse povo descendente de portugueses, africanos e ameríndios, não era nenhum dos três, mas brasileiro, isto é, algo absolutamente novo e idiossincrático. Diferentemente, por exemplo, do Congo belga, em que as práticas sistemáticas de tortura e genocídio por parte do colonizador europeu não resultaram em uma nova nação, mas apenas no enriquecimento de uma oligarquia externa e na degradação de povos locais inteiros, no Brasil, foi criado, já durante o período colonial, uma nova formação social, resultante da miscigenação dos seus elementos constitutivos e aberta à incorporação de vários outros. Portanto, em vez de ter sido apenas uma colônia, o Brasil teria se formado como nação ainda durante a sua vinculação jurídica a Portugal. Nesse sentido, segundo Freyre, “os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência” (CGS, p. 50).
Freyre, contudo, tinha plena consciência de que as origens rurais do Brasil não eram um destino, e que o patriarcado escravista, se bem tenha deixado sua herança na cultura e nas instituições, foi um fenômeno historicamente delimitado. Em Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957), ele investiga precisamente a dinâmica da brasilidade e da sociedade brasileira ao longo do processo de urbanização e modernização política e econômica ocorrido desde a Independência e ganhando relevo com a Abolição e a República.
O século XX, ao continuar essa modernização, demandaria, de acordo com Freyre, a devida consideração aos aspectos tropicais do Brasil. Ele sugere, então, a criação de uma ciência singularmente brasileira, a tropicologia, “que lidaria com a adaptação da ciência e da tecnologia europeias a situações tropicais, chegando mesmo à invenção de novas técnicas que venham a ser criadas para resolver problemas peculiares aos trópicos” (NMT, p. 177-178).
Com base na tropicologia, o planejamento socioespacial brasileiro buscaria não a emulação dos países desenvolvidos, mas o desenvolvimento de um ordenamento específico, que fosse em essência “rurbano”, isto é, rural e urbano ao mesmo tempo[3]. A mestiçagem étnico-cultural brasileira seria aplicada então à dimensão geográfico-espacial. Seriam então compatibilizadas características próprias do meio agrário-campestre, como a aproximação com a natureza e o gozo ao ar livre, com aspectos pertencentes ao meio urbano-industrial, como a ampla disponibilização de serviços e infraestruturas. Portanto, o Brasil, a partir da sua especificidade tropical, criaria um modelo autêntico de preservação ambiental, que não estivesse sujeito a determinações estranhas ao interesse nacional, mas conciliasse os imperativos do desenvolvimento com os atributos naturais e sociais intrinsecamente brasileiros. As “comunidades rurbanas” ou “ruralvilas”, propostas pelo ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, foram diretamente inspiradas pelas ideias de Freyre.
A obra e o pensamento de Gilberto Freyre permanecem importantíssimos para a compreensão do que faz o Brasil ser o Brasil e das múltiplas e promissoras possibilidades advindas da nossa autenticidade nacional. Constituem um verdadeiro antídoto ao pós-modernismo, que visa desconstruir as verdadeiras identidades nacionais em nome de falsas identidades cosmopolitas. Também ao liberalismo, cujo individualismo mercantil de matriz anglo-batavo-saxã resiste à assimilação mestiça brasílica por colocar o interesse capitalista acima da socialização autóctone substantiva, impondo critérios alienantes e degradantes de modernização, inclusive abrindo flancos para a penetração do pós-modernismo.
[1] NMT = Novo Mundo nos Trópicos – Gilberto Freyre. 3ª ed. São Paulo: Global, 2011 [1971].
[2] CGS = Casa-Grande e Senzala – Gilberto Freyre. Círculo do Livro, s/d (1933).
[3] Cf. Rurbanização – Que É? – Gilberto Freyre. Recife: Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 1982.
Uma reflexão pertinente em um país que ainda desconhece muito de sua história e personagens….
Parabéns Felipe, ótima reflexão.