Pinheiro do Vale
Os lanceiros negros devem estar fulos de raiva com o vereador Mateus Gomes, do Psol, que tripudiou sobre o hino que aqueles guerreiros cantavam de peito estufado quando soltavam suas cargas de cavalaria contra as tropas imperiais na Revolução Farroupilha.
Os lanceiros negros, uma unidade de cavalaria formada por escravos ginetes na Guerra dos Farrapos, foi uma das tropas mais vitoriosas da República Rio-Grandense, temida pelo Exército Imperial, nunca sofreu nenhuma derrota. Entretanto, está sendo apresentada como vítima pelos historiadores anacrônicos ligados ao movimento negro do Rio Grande do Sul.
Carta testamento
A pretexto de protestar contra a palavra “escravo”, contida no hino (a maioria deles nessa época usava o vocábulo), o edil liderou num ato de desrespeito à memória dos farrapos na posse da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. A seguirem a tendência racialista, deve ser também banida a carta-testamento do ex-presidente Getúlio Vargas, onde o estadista suicida diz que o povo brasileiro não mais será escravo de ninguém.
Unidade invicta
Os lanceiros negros constituíram uma das unidades mais vitoriosas dos exércitos farroupilhas. Nunca perdeu um combate. Na retirada de Laguna, na República Juliana, em Santa Catarina, foram os Lanceiros que salvaram Giuseppe Garibaldi de ser capturado, depois da derrota na batalha naval.
Entretanto, numa narrativa inteiramente facciosa e fictícia, eles são apresentados como vítimas de um massacre racista, a celebre Surpresa de Porongos, nos últimos dias da guerra. Entretanto, como provam documentos, os Lanceiros não estavam naquele local. Os afrodescendentes que morreram naquele episódio faziam parte da antiga infantaria baiana, uma tropa regular do Exército que, desde os primeiros tempos da revolução, aderira à revolta republicana. Como se recorda, havia na Bahia um forre partido apoiando os gaúchos, que chegaram a promover um levante armado, a Sabinada. Seu líder, o médico Frâncico Sabino Álvares da Rocha Vieira, depois da repressão, foi se exilar no Rio Grande do Sul, de onde migrou para Mato Grosso, onde faleceu.
O Combate de Porongos é um episódio fartamente documentado. Mas a narrativa dos grupos identitários se baseia numa carta comprovadamente falsa que o duque de Caxias teria enviado ao comandante farroupilha, David Canabarro, sugerindo traição.
Munição de tiro
O agravante seria que os soldados da infantaria, quase todos pretos e mulatos, estariam sem munição para suas carabinas, recolhida pouco antes do anoitecer. Entretanto, qualquer gaúcho que tenha servido ao Exército, ou os soldados do tráfico ne nossos dias, sabem que munição de tiro é muito sensível e que não pode ficar exposta, se não falha, nega fogo. Isto era normal nas infantarias: a as balas e a pólvora eram recolhidas para embalagem adequada, só distribuída aos fuzileiros na hora do combate. Portanto, há muita má-fé ou ignorância nessa acusação, procurando reduzir a campanha de uma unidade vitoriosa em derrotada.
Lanceiros estavam longe
Os Lanceiros, no dia do combate, estavam longe de Porongos, sob o comando do general Antônio de Souza Netto. Esse grupamento era constituído de escravos de ganho africanos originários do Norte da atual Nigéria, pastores usados nas charqueadas para tropeadas para levar comitivas de gado das Missões Jesuíticas para as charqueadas de Pelotas. Na África Ocidental, essa tribo era conhecida por enfrentar os captores de escravos muçulmanos, que prendiam cristãos para vender no mercado negreiro, homens moços e (poucas) moças para os portugueses, e meninos e meninas para os Árabes. Suas lanças compridas foram das armas mais eficientes naquela campanha. É errado dar-lhes a pecha de derrotados.
Publicado em Repórter Brasília.
Interessante essa narrativa literária da guerra dos farrapos produzida na era Vargas 100 anos após o ocorrido. Porém, com pouca sustentação histórica.
Bom para os gaúchos que ganharam a partir daí, um valor de elevada estima.
Qto a essa citação sobre Porongos, é compreensivo (embora infame) que os donos dessa versão, peleiam pra sustentar esse conto.
Parabéns ao vereador que pertinentemente registra no parlamento portoalegrense, posição de indignação no trecho do hino que trás a palavra “escravo” muito apropriada que seja debatida.
Guardando referências aqui no Brasil, escravizado está para o povo negro como no mundo holocausto está para o povo judeu.
Não se pode tangenciar
Discordo respeitosamente do artigo, e acredito que o caráter do movimento farroupilha ou o que de fato ocorreu em Porongos pouco importa. O Rio Grande do Sul, adotou um hino farroupilha que relaciona a falta de “virtude” (excelência moral) à condição de escravo (dominado). Uma vez que os africanos foram dominados pelos europeus e brasileiros e submetidos à escravidão aqui, hoje se percebe que o hino comete racismo ao creditar tal condição à falta de excelência moral, culpando-os portanto. É o mesmo que atribuir o assassinato de Jesus, o Holocausto ou as invasões de colônias israelenses na Cisjordânia à falta de virtude das vítimas. E, sim, os escravizados são vítimas de quem os submeteu a condições subumanas de inferioridade. O hino é fruto do seu tempo, mas não está isento de críticas. A letra ignora que mesmo sendo virtuoso, um povo pode ser escravizado por armas mais poderosas ou pelo garrote de um sistema econômico. Tal situação difere muito do exemplo dado pelo autor do artigo sobre os dizeres de Getúlio Vargas, uma vez que há na fala do estadista um repúdio à ideia de escravidão, mas sem relacionar tal condição escrava à falta de virtude, e esse é o ponto. O que está em causa é o potencial ofensivo da analogia simbólica do trecho do hino riograndense nos dias de hoje, em que pessoas negras estão paulatinamente ocupando os espaços de poder e fazendo repensar antigos símbolos. Afinal, não é a raiz histórica de um símbolo, mas a sua capacidade de comunicar algo que sustenta a sua representatividade ao longo das gerações. E se hoje se percebe racismo naquele trecho (eu percebo), que se mude o hino ou não se cante, sob pena de um pretenso símbolo mais afastar do que unir, ainda mais quando se pretende inspirado nos ideais de “liberdade, igualdade e humanidade”. É preciso ter solidariedade e acolhimento com quem aprendeu na prática que não basta ter “virtude”, se ao cabo resulta escravo. Os negros que lutaram pelos farroupilhas são a prova da contradição desrespeitosa do trecho do hino.
Parabéns pelo artigo.
Há um esforço enorme para desconstruir a história do Rio Grande do Sul, para tirar de nós gaúchos o nosso pertencismo.