Resenha Estratégica – Vol. 17 – nº 49 – 09 de dezembro de 2020
Já se tornou lugar comum afirmar que, após o fim da União Soviética e sua aliança militar, o Pacto de Varsóvia, em 1991, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) se converteu em uma entidade cujo principal objetivo tem sido uma busca permanente para justificar a sua própria existência. Uma das finalidades encontradas foi a de tornar-se uma espécie de Legião Estrangeira a serviço da agenda belicista dos EUA (sempre com o Reino Unido a tiracolo), arranjo que lembra em muito as legiões dos povos dominados pelo Império Persa, obrigadas a participar das guerras movidas pelos reis persas contra a Grécia, no século V a.C. Isto ocorreu nas ações militares contra a antiga Iugoslávia (1999), Afeganistão (2001 até hoje) e Líbia (2011), e tem sido uma constante no cerco físico contra a Federação Russa, tomada como sucessora da URSS na condição de adversário existencial da Aliança.
Por isso, a cada década, a Aliança Atlântica promove uma revisão na sua pauta de justificativas existenciais, na verdade, uma atualização das agendas aprovadas em 1999 e 2010, as quais formalizaram a ampliação do escopo e do alcance da OTAN, não mais restrita ao Atlântico Norte, mas redefinindo-a como uma autêntica “gendarmeria global”.
Esta poderia ser mobilizada não só contra ações militares contra seus membros, mas também por pretextos variados: antiterrorismo, ações “humanitárias”, combate ao tráfico de drogas, agressões ao meio ambiente, desastres naturais, “ameaças à democracia” e uma pletora de outras.
A edição mais recente dessas revisões acaba de ser divulgada, com o título NATO 2030: United for a New Era (OTAN 2030: Unidos para uma Nova Era). Como o nome sugere, trata-se de uma lista de recomendações para orientar as políticas da organização ao longo da década, com o objetivo de “reforçar o papel político e os instrumentos relevantes da OTAN, para enfrentar ameaças e desafios atuais e futuros à segurança da Aliança, emanados de todas as direções estratégicas (grifos nossos)”. Mais abrangente, impossível!
O documento, de acesso público, foi preparado por um Grupo de Reflexão Independente (sic), um reduzido comitê de especialistas encabeçado pelo ex-ministro da Defesa da Alemanha, Thomas de Maizière, e A. Wess Mitchell, ex-secretário de Estado Assistente para Assuntos Europeus e Eurasiáticos dos EUA. Mitchell é também coautor de um livro curiosamente intitulado “A Doutrina do Poderoso Chefão: uma parábola de política externa” (The Godfather Doctrine: a Foreing Policy Parable, 2009), no qual compara as principais escolas de política externa estadunidenses aos três filhos do personagem Don Vito Corleone, ressaltando que, como no livro de Mario Puzo (e no filme de Francis Ford Coppola), o mais novo, Michael, é quem tem a orientação certa para assegurar a sobrevivência da famiglia em um ambiente de desafios novos e rapidamente cambiantes, com uma combinação variável de “poder duro” e “poder suave”. Escusado dizer qual é a linha proposta para a preservação do “excepcionalismo” estadunidense no século XXI – e, por extensão, para a OTAN.
Como extensão do poderio militar dos EUA, a contextualização do ambiente estratégico pelos pensadores da OTAN não poderia diferir dos conceitos fixados em Washington, para cujos estrategistas o principal desafio é a capacidade da Rússia e da China de se oporem aos seus desígnios, rotulada como “retorno da competição de grandes potências” ou “competição geopolítica”, como estabelecido nas edições mais recentes da “Estratégia de Segurança Nacional” estadunidense. Assim, o documento da Aliança estipula: (…) A principal característica do atual ambiente de segurança é a reemergência da competição geopolítica – isto é, a profusão e escalada de rivalidades e disputas interestados em torno de território, recursos e valores.
Na área euroatlântica, o desafio geopolítico mais profundo é colocado pela Rússia. Embora a Rússia seja uma potência declinante, por medidas econômicas e sociais, ela provou ser capaz de agressões territoriais e, provavelmente, permanecerá como uma ameaça importante confrontando a OTAN, na próxima década. (…) Em seguida, vem a China: O crescente poderio e assertividade da China é o outro grande acontecimento geopolítico que está mudando o cálculo estratégico da Aliança. (…) A China apresenta um tipo de desafio à OTAN bem diferente da Rússia; ao contrário desta, ela não é, no presente, uma ameaça militar direta à área euroatlântica. Todavia, a China tem uma agenda estratégica crescentemente global, apoiada pelo seu peso econômico e militar. Ela tem demonstrado a sua disposição de usar a força contra seus vizinhos, além de coerção econômica e diplomacia intimidatória, bem além da região do Indo-Pacífico.
Ao longo da próxima década, provavelmente, a China também desafiará a capacidade da OTAN de construir uma resiliência coletiva, salvaguardar infraestruturas críticas, enfrentar tecnologias novas e emergentes, como a 5G, e proteger setores sensíveis da economia, inclusive as cadeias de suprimentos. Em um prazo mais longo, é crescentemente provável que a China projete poder militar globalmente, inclusive, potencialmente, na área euroatlântica.
Entre as demais ameaças consideradas, destacam-se:
– as chamadas Tecnologias Emergentes e Disruptivas (EDTs, sigla em inglês), com ênfase nas armas hipersônicas e tecnologias digitais desenvolvidas pela China e a Rússia;
– as mudanças climáticas, que deverão “acelerar a escassez de recursos e a insegurança alimentícia e hídrica global”, além de provocar a “elevação do nível dos oceanos, redução das massas continentais habitáveis e aceleração dos fluxos migratórios rumo ao território da OTAN”. Ademais, novos teatros de competição deverão emergir com a abertura de novos corredores de transporte no Ártico, “que rivais geopolíticos estão procurando controlar e explorar”. Igualmente, “na medida em que alguns aliados perseguem a neutralidade em carbono, a política da OTAN precisa aprofundar a sua adaptação, inclusive, com a adoção de tecnologias verdes”;
– pandemias como a de Covid-19, capazes de provocar efeitos deletérios “não apenas na saúde pública das cidadanias da OTAN, mas também à resiliência e segurança sociais, tanto por reorientar a atenção política e os recursos escassos, como alimentando rivalidades e confrontações internacionais”.
Em todo o texto, observa-se uma reiteração dos conceitos fundamentais da estratégia hegemônica das elites dirigentes da Aliança, em especial, as anglo-americanas: confrontação e supremacia militar como base das relações internacionais e escassez de recursos – vale dizer, o surrado cenário de “soma zero”, que tais grupos oligárquicos se mostram incapazes de superar.
Embora não haja nele qualquer menção explícita ao fato, o documento é permeado por admissões oblíquas da insofismável erosão da hegemonia estratégica obtida pelos EUA no período pós-Guerra Fria, mal disfarçada no próprio conceito de “competição de grandes potências” – afinal, só existe competição entre forças equivalentes. Este, sim, será o grande desafio para a OTAN no futuro imediato: superar a sua “orfandade estratégica” em um mundo multipolar sem uma hegemonia estadunidense.
Em tempo: o Brasil deve prestar uma grande atenção nas movimentações da Aliança Atlântica, não só para não se deixar enredar nas suas maquinações contra as “competidoras geopolíticas” escolhidas, mas, não menos, pelo seu crescente interesse nas questões ambientais e climáticas. Haja vista, por exemplo, a recente divulgação do relatório Clima e segurança no Brasil, do Conselho Militar Internacional sobre Clima e Segurança (IMCCS), uma “ONG militar” de militares retirados e estrategistas de países da OTAN, sediada em Haia, que atua como uma ostensiva linha auxiliar das políticas setoriais da Aliança nas áreas ambiental e climática (Alerta Científico e Ambiental, 03/12/2020).