Fuá no sítio do pica-pau verde-amarelo

    Circula na mídia notícia dando conta que uma parenta – bisneta – de Monteiro Lobato anuncia adulterações na obra do autor do Sítio do Pica-pau Amarelo.

    O objetivo da cirurgia plástica seria eliminar passagens interpretadas como “racistas” para tornar a obra mais aceitável a supostos cânones “contemporâneos”.

    Diz a CNN que a adulteradora garante: “a essência da obra não foi modificada”, e que “as conotações que se referiam à personagem Tia Nastácia foram alteradas, trazendo uma forma mais humana de retratar a personagem, que é a cozinheira do sítio na obra original de seu bisavô”.

    “A sociedade evoluiu, não vejo passagens racistas no livro do meu [bis]avô, acho incrível que tenha ocorrido essa evolução da sociedade. O termo sinhá, o bolinho de fubá eram do universo do interior paulista, o ‘caipirês’. O Monteiro Lobato que sei como bisavô, como avô, como pai, não era racista. Os valores que ele passou para filhos, netos e bisnetos não eram racistas”, disse a bisneta à CNN.

    São coisas diversas, embora ululantemente relacionadas: autoria e obra. Mas o julgamento, sob quaisquer pontos de vista, de quem escreveu não pode alterar o escrito – esta é a questão.

    Monteiro Lobato ter sido ou não racista é uma coisa; a obra de Monteiro Lobato é outra. Autor e obra merecem ser virados ao avesso, até porque isso é ônus das celebridades. Mas as obras não podem ser reescritas ao sabor das polêmicas contemporâneas, pois ao se fazer isso se atinge simultaneamente autor e obra, subvertendo-se e embaralhando conceitos sobre a pessoa e cassando referências históricas contidas no trabalho tornado público num determinado tempo.

    Os termos e situações descritas por Lobato em suas obras são produtos de uma observação real, verdadeira, sobre o tempo vivido pelo autor, e/ou de lembranças incorporadas. Esses cenários são fundamentais, são olhares e percepções sobre uma questões culturais, sociais, ambientais, políticas, econômicas e… raciais.

    Monteiro Lobato teria sido uma pessoa racista? Isto é menos importante que o escrito e descrito por ele em seus livros e artigos. O que ele escreveu e descreveu é o que tem mais valor: aqui está a essência da percepção – objetiva ou subjetiva – de uma sociedade através da narrativa literária. Nesse narrar toda palavra é essencial, é documental.

    Uma obra não pode ser modificada, nem “apenas em detalhes”, por terceiros para “ajustes” a conceitos contemporâneos – ainda mais se tais conceituações disserem respeito às questões éticas, filosóficas, ideológicas e políticas. Nesse cenário qualquer palavra faz diferença.

    A realidade que confinava a uma mulher não-branca (negra, preta, cafusa, cabocla, mulata…) a funções servis não era exclusividade dos tempos passados e os termos usados para se referir a essas trabalhadoras fazem – e faz – parte da história e da sociologia brasileira. Retirar tais termos das obras de época é um tremendo desserviço em todas as áreas.

    Os escritos de Monteiro Lobato, ao passearem sobre os costumes brasileiros do seu tempo, formam um documento uno, onde cada termo, cada descrição, é um elemento destacado para análises mais profundas.

    Segue a reportagem da CNN: “Segundo a autora, as conotações que se referiam à personagem Tia Nastácia foram alteradas, trazendo uma forma mais humana de retratar a personagem, que é a cozinheira do sítio na obra original de seu bisavô”. Diz a bisneta: “Alterei algumas frases. Em vez de chamar a negra, a negra tem nome: Tia Nastácia. Em vez de dar risada com beiço, troquei. Se fosse um tratamento equivalente com a Dona Benta, eu deixava”. Pronto, problema resolvido: deixou de existir racismo no Brasil graças a singela adulteração cometida. A cor de Tia Anastácia sumiu, assim como sua risada de beiço. Quem sabe terá até carteira assinada na nova versão…

    No Brasil de Lobato, e da bisneta dele, tem – sim – pele escura a maioria das empregadas domésticas e são confinadas à posição subalterna e vítimas de preconceito social/racial. Ou não?

    Monteiro Lobado foi fiel a uma realidade, não a maquiou, não a adulterou em seus escritos. A serviçal – nos textos originais dele – tinha pele escura e os termos usados em relação a ela possuíam conotação e grafias de época. Por isso suas obras, as originais, são referências para o estudo sociológico e cultural do Brasil profundo.

    Esconder, ou subtrair, do objeto cultural partes dele é um desserviço mais nocivo que as singelas justificativas possam sugerir.

    A luta contra o preconceito e a discriminação racial precisam mais do estudo aprofundado dessas referências nas obras de qualquer tipo e autoria que das atrofias que se quer fazer, até porque tais concepções, expressões e situações teimam em existir muito além da ficção.

    Por falar nisso, dizem por aí que querem “ajustar” também a obra de Gilberto Freire… estamos numa pandemia de mutilações intelectuais?

    Enio Lins
    Jornalista, chargista, editorialista, ex-Vereador por Maceió, ex-Secretário de Cultura de Maceió, ex-Secretário de Cultura de Alagoas, ex-Presidente do Instituto de Tecnologia Educacional de Alagoas, ex-Coordenador Editorial da Organização Arnon de Mello, Secretário de Comunicação do Estado de Alagoas.

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    4 COMENTÁRIOS

    1. Parabéns, Ênio. Seu texto expressa exatamente o que eu penso. A obra literária retrata a realidade de sua época, o que a torna autêntica e faz dela um clássico. Lê-las tendo por parâmetro a realidade social e cultural de hoje é um contrassenso. Como professora de literatura infantil que fui, fico feliz que esta discussão seja feita.

    2. Excelente narrativa do sempre mestre Ênio Lins. Seu vibrante e vigoroso talento com o bico da pena como chargista, é o mesmo com a escrita. Um texto mais de que oportuno em época de Pandemia de negacionismos, tanto na ciência como de nossas mazelas culturais. Parabéns mestre Ênio Lins!

    3. Parabéns Ênio Lins !
      Grande contribuição para por luz na polêmica. É preciso saber que linguagens próprias de época sendo mais ou menos politicamente corretas aos olhos de hoje não deveriam macular obras que retratam quadras históricas específicas da época e autores que viveram e escreveram a sua época.
      Novamente parabéns .

    4. Artigo atual e pertinente, vivemos hoje, nos espaços educativos, grandes polêmicas a respeito das obras clássicas da literatura brasileira e com esse artigo podemos nos debruçar numa vasta discussão e entendimento.Obrigada!

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