Tiago Nogara/Carlos Renato Ungaretti/Fernanda Moreira Lins/Clarissa Dias Nascimento/Isabela de Castro Andrade da Silva
- Os desafios da constituinte chilena
- A vitória eleitoral do MAS na Bolívia
- As eleições departamentais e municipais no Uruguai
- A estratégia conciliadora de Alberto Fernández na Argentina
- A instabilidade política no Peru
- Perspectivas para as eleições presidenciais equatorianas
- Os desafios da Constituinte chilena
No dia 25 de outubro, a população chilena foi às urnas para decidir pela aprovação ou rechaço à ideia de enterrar a Constituição herdada da era Pinochet e construir uma nova Carta Magna a partir do ano que vem. Como era de se esperar, o resultado do plebiscito refletiu as demandas por mudança que eclodiram em forma de massivos protestos ao final do ano de 2019. Desde então, as forças políticas do país passaram a avaliar os seus posicionamentos referentes ao plebiscito, o qual, diga-se de passagem, resultou de um amplo acordo entre coalizões de governo e oposição em meio às revoltas.
A coalizão governista – Chile Vamos – reúne os partidos de direita e centro-direita e representa os segmentos conservadores da sociedade chilena. No interior da coalizão, houve partidos que se posicionaram de forma contrária à aprovação, como é o caso da União Democrática Independente (UDI) e da Renovação Nacional. Por outro lado, lideranças da coalizão optaram, desde o início das negociações, por adotar uma abordagem favorável à nova Constituição, como é o caso de Joaquín Lavín. Ex-prefeito de Las Condes e membro da UDI, Lavín desponta como uma das lideranças do campo situacionista, especialmente por ter apoiado desde o princípio a mudança da Constituição.
Membros do governo colheram dividendos positivos, como o ex-ministro da Defesa, Manuel Desbordes, que participou desde o princípio das negociações que tiveram como produto a solução plebiscitária. O presidente Sebastian Piñea, politicamente desgastado e com a popularidade em queda em parte em razão de seu comportamento frente às manifestações, inicialmente adotou uma postura de neutralidade em relação ao plebiscito e, posteriormente, mostrou-se favorável à aprovação.
A oposição, representada sobretudo na Frente Ampla e no Partido Comunista, não teve uma ação política coesa e unitária desde a eclosão dos protestos e as subsequentes negociações com o governo. No contexto prévio à realização do plebiscito, ambas as forças políticas se posicionaram a favor do “aprovo”, embora as divergências tenham sido ressaltadas em diferentes ocasiões. Em 22 de outubro, o presidente do PC, Guillermo Teillier, reiterou que “com a oposição temos diferenças que não permitiram até agora alcançar acordos”[1] .
A fragmentação da oposição, característica que se manifesta desde novembro de 2019, tende a ser uma dificuldade para a formação de uma lista única para a eleição da Assembleia Constituinte, a ser realizada em abril de 2021. Além disso, as forças de esquerda aparentam ter dificuldades para negociar com setores moderados outrora partes da Concertación, que hegemonizou o cenário político chileno entre 1990 e 2010.
A despeito de uma polarização no seio das elites relacionadas com a aprovação ou rechaço da proposta, a coalizão governista apresenta, por ora, maiores chances de unificação e de chegar às eleições de abril de forma coesa. Em 27 de outubro, dois dias após a vitória do “aprovo”, Piñera sublinhou sua aposta na pulverização das forças oposicionistas, atestando que “a Constituição que queremos para Chile nos une e provavelmente divide a oposição”[2].
Apesar dos esforços de Piñera em aglutinar as forças em torno da coalizão do Chile Vamos – entendida por ele como a “mais exitosa das últimas décadas” – seu governo encontra-se em um estado de profundo descrédito, com apenas 15% de aprovação e com recentes desacordos com o poder Legislativo, responsável por recentemente suspender seu ministro do Interior, Víctor Pérez. Dito de outra forma, a direita chilena, inserida na coalizão governista, tem potencial de chegar às eleições para a Constituinte menos fragmentada, contudo, a tendência é de que outras lideranças ofusquem Piñera e assumam um maior destaque, como é o caso de Lavín.
A despeito das incertezas, o certo é que os louros do “aprovo” se disseminaram de forma difusa e é difícil apontar uma força política como “vencedora” e canalizadora da vitória no Plebiscito. Isto é, não houve uma força política ou uma liderança em particular que representasse de forma abrangente a heterogeneidade dos grupos sociais que saíram às ruas em novembro de 2019 e que votaram favoravelmente à criação de uma nova Constituição. Desta maneira, os próximos meses, recheados de novas eleições – como o próprio pleito presidencial em 2021 -, serão de intensa disputa, sejam elas eleitorais, por espaço na Assembleia Constituinte ou mesmo para a priorização de temas e agendas que podem ser incluídas na nova Carta Magna.
A esse respeito, é importante mencionar que a nova Constituição abrirá oportunidades para redefinir aspectos centrais para a sociedade chilena, tais como: distribuição de poder (regime de governo); equilíbrio entre Estado e mercado em uma gama de direitos sociais (aposentadorias, saúde, educação); caráter unitário ou descentralizado do Estado; proteção dos recursos naturais, incluindo a água; reconhecimento dos povos originários, entre outros.[3]
Entre os temas que chamam a atenção, deve-se destacar, além do esgotamento do modelo neoliberal, a necessidade de mudanças em direção a um Estado mais atuante no equacionamento dos dilemas econômicos e sociais da população chilena. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), cerca de 1% da população chilena detém 26% da riqueza do país, enquanto cerca de 66% da população controla apenas 2% do capital nacional.
Cabe destacar que, valendo-se da oportunidade de mudança constitucional, uma série de organizações não-governamentais e think tanks vinculadoa aos serviços de política exterior das grandes potências têm insuflado demandas em prol da antiga questão da autonomia do território mapuche. Da mesma forma, grandes meios de comunicação internacionais têm atuado no sentido de condicionar a opinião pública em prol da aprovação de medidas para obstaculizar obras de infraestrutura na região. Ingrid Wehr, diretora da Fundação Heinrich Böll para o Cone Sul, destacou, em entrevista à DW, a necessidade de reconhecimento para a luta por “autonomia territorial” e à demanda de “poder cuidar dos bens naturais que se encontram em territórios mapuches”. Nesse mesmo sentido, destacou a necessidade de combate ao que chamou de “nefasto modelo extrativista existente”, fazendo menção às dez comunas onde se concentram 30 das principais termoelétricas existentes no Chile [4].
Cabe mencionar que as eleições presidenciais chilenas também ocorrerão no próximo ano, com o andamento da Constituinte tendendo a ter grande influência sobre os seus rumos. Em pesquisa divulgada pelo instituto Data Influye[5], em outubro, o comunista Daniel Jadue apareceu em primeiro lugar, seguido por Joaquín Lavín, da UDI, Pamela Giles, do Partido Humanista, Evelyn Matthei, também da UDI, e José Antonio Kast, do Partido Republicano.
Há de se considerar que a liderança de Daniel Jadue, do Partido Comunista, não reflete necessariamente um ambiente eleitoral favorável para as pretensões eleitorais do partido, já que tanto o segundo colocado, Joaquín Lavín, quanto a quarta colocada, Evelyn Matthei, pertencem à UDI. Além do mais, mais de 30% das intenções de voto se dividiram entre outros vários nomes com menor porcentagem, e a pesquisa não contou com a inserção do presidente Piñera, que, apesar de desgastado, mantém um nicho de aprovação acima dos 10%.
Formado em arquitetura e sociologia, Daniel Jadue é militante comunista desde 1993, com atuação de destaque dentre a numerosa imigração palestina no Chile desde 1987, quando presidiu a União de Estudantes Palestinos no país. Desde 2012, é prefeito da comuna de Recoleta, em Santiago, uma das mais vulneráveis economicamente da cidade.
Lavín, da UDI, é prefeito da poderosa e rica comuna de Las Condes, em Santiago, e exerceu as direções dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Planificação e da Educação do país ao longo da primeira presidência de Sebastián Piñera (2010-2014).
Representante da extrema-direita, José Antonio Kast, que constou em quinto lugar na pesquisa, é declarado apoiador do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, e tem ganhado espaço diante do panorama de rechaço da população às forças políticas tradicionais.
O plebiscito chileno, portanto, constitui apenas um primeiro passo em direção à reconstrução de uma nação assolada por décadas de experimentos neoliberais, que resultou em precarização dos serviços públicos, concentração de renda e profunda insatisfação social.
- A vitória eleitoral do MAS na Bolívia
No final do ano passado, a Bolívia passou por uma série de turbulentos eventos políticos e sociais, após o pleito presidencial garantir nova reeleição para Evo Morales, que governava o país junto de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), desde 2006. No cerne do debate concernente à aceitação ou não do resultado eleitoral (em que Evo garantiu 48,08% dos votos, contra 36,51% de Carlos Mesa, assegurando os 10% de diferença para consagrar a vitória em primeiro turno) constavam as acusações de fraude eleitoral, chanceladas pela Organização dos Estados Americanos (OEA), e os questionamentos à possibilidade de Evo tentar a reeleição, tendo em vista que em referendo organizado em 2016 cerca de 51,3% dos votantes vetaram tal demanda.
Se à época os questionamentos se iniciaram por meio da oposição tradicional, dirigida pelo moderado Carlos Mesa, gradualmente migraram para a direção de um grupo extremista, dirigido pelo radical Luis Fernando Camacho, presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz. Diante de uma greve protagonizada por policiais, enfretamentos entre correligionários do MAS e da extrema-direita nas ruas e dos incêndios às residências de autoridades públicas, inclusive a do vice-presidente, o comandante-em-chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, solicitou a renúncia de Evo, que acatou a decisão e rumou para o exílio no México – de onde posteriormente partiria para a Argentina.
Desde então, Jeanine Añez, ex-senadora, exerceu, frente ao vácuo institucional, a presidência interina do país. Alinhada às perspectivas da oposição de direita ao governo Evo, protagonizou uma reversão do conjunto das orientações de política interna e externa do país no período, ao tempo em que garantiu a convocação de eleições para o primeiro semestre de 2020, desde que sem a participação de Evo. Frente à ascensão da pandemia do coronavírus, as eleições foram adiadas para o segundo semestre, com o MAS aceitando participar mesmo sem a inclusão de sua principal liderança na chapa.
A elevada temperatura política que marcou a derrubada de Evo em 2019 apontava para a possibilidade de fortalecimento do radicalismo de Camacho, em detrimento da opção moderada e tradicional de Carlos Mesa. No entanto, os resultados eleitorais reafirmaram Mesa como liderança do principal polo de oposição ao MAS, o único capaz de angariar apoio consistente para além do tradicional reduto oposicionista da região da Media Luna (Bení, Pando, Santa Cruz e Tarija). Ao mesmo tempo, reafirmaram a poderosa capacidade política do partido que conduziu o país entre 2006 e 2019 com sistemáticas reeleições.
Cabe mencionar que a vitória avassaladora do MAS-IPSP no primeiro turno (Arce/MAS-IPSP – 55,11%; Mesa/Comunidad Ciudadana – 28,83%; Camacho/CREEMOS – 14%), com a fórmula Luis Arce-David Choquehuanca, demonstra-se ainda maior quando vista sob o ângulo dos resultados nos departamentos e municípios. No conjunto dos nove departamentos bolivianos, o MAS conquistou maioria em seis, a CC em dois e o CREEMOS apenas em um, o de Santa Cruz de la Sierra, enquanto 314 municípios tiveram vitória do MAS, contra 21 do CREEMOS e apenas 18 da CC. Tais resultados se fizeram sentir amplamente no âmbito legislativo, garantindo ampla maioria parlamentar para o oficialismo: dos 130 deputados, o MAS ficou com 75, a CC com 39 e o CREEMOS com 16; enquanto no Senado 21 das cadeiras ficaram nas mãos do MAS, com apenas 11 para a CC e quatro para o CREEMOS.
Há de se perceber que, a exemplo do que ocorre na Argentina e no Equador, as esquerdas tradicionais optaram, na Bolívia, por um discurso conciliador e uma fórmula eleitoral encabeçada por seus setores moderados. Ex-ministro da Economia de Evo (entre 2006-2017 e em 2019), o presidente Luis Arce é uma figura que detém respeito e reconhecido sucesso por distintos setores da sociedade boliviana, extravasando a própria base social do MAS, tendo em vista que entre 2005 e 2015 a Bolívia quase quadruplicou seu PIB, passando de US$ 9 bilhões para US$ 33 bilhões, deixando o governo em 2019 com uma perspectiva de crescimento econômico de 5% anuais.
Nesse sentido, a expectativa é de que o governo de Arce seja marcado por uma postura distante de possível revanchismo com relação aos eventos de 2019. A prioridade do MAS é, nesse momento, readquirir capacidade de diálogo com os setores das Forças Armadas que chancelaram a queda de Evo em 2019, e evitar que a oposição violenta e radical dirigida por Camacho, a partir de Santa Cruz, ganhe corpo na sociedade boliviana. Tais temores são bem fundamentados, e chama atenção que, dois dias após a divulgação dos resultados eleitorais, tenha sido realizado atentado contra o presidente Luis Arce, que saiu ileso após detonação de uma banana de dinamites na sede do MAS, onde ele se encontrava.
Cabe mencionar que a região da Media Luna (Bení, Pando, Santa Cruz e Tarija) encabeçou, em 2008, um movimento insurgente em prol da autonomia da região frente ao governo central. À época, as Forças Armadas respaldaram a autoridade do governo de Evo, e foram cruciais para evitar que as querelas ideológicas cindissem o território boliviano, num evento marcado pela explícita articulação de setores diplomáticos dos Estados Unidos junto dos revoltosos. Nesse sentido, a busca de aproximação com a oposição moderada, de Carlos Mesa, e com as instituições de Estado do país demonstra ser um caminho acertado em prol da pacificação da sociedade.
Questão importante para o Brasil, vale ser observado que Luis Arce já declarou a pretensão de rever os termos do acordo estabelecido por Añez com o governo Bolsonaro no que tange às questões de exportação de gás natural para o Brasil. Segundo o presidente, tal revisão se embasaria em suposta ilegalidade dos atos executados pelo governo interino de Añez. Cabe recordar que, em 2006, o governo de Evo protagonizou turbulentos eventos quando da nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, afetando empreendimentos bilaterais do país com a Petrobras. Ainda assim, é relevante assinalar que a política externa recente do MAS tem sido marcada por maior moderação e pragmatismo, como atestam a presença de Evo na posse de Bolsonaro e a série de elogios que teceu ao presidente brasileiro nessa mesma oportunidade, enfatizando a centralidade de manutenção de boas relações com o Brasil, independentemente das ideologias dos governantes de ambos os países.
- As eleições departamentais e municipais no Uruguai
Após prorrogação devido à pandemia, as eleições departamentais e municipais, que seriam realizadas em maio deste ano, ocorreram em 27 de setembro. Dos 19 intendentes, o Partido Nacional obteve vitória em 15 departamentos (além de terem sido eleitos 91 prefeitos pelo partido, dos 125 totais), a Frente Ampla venceu em três (Montevideu, Salto e Canelones) e perdeu três para o Partido Nacional (Paysandú, Rio Negro e Rocha), enquanto o Partido Colorado manteve sua gestão em Rivera.
Fonte: El País[6].
A partir desses resultados, percebe-se que o Partido Nacional, que elegeu no ano passado o atual presidente Lacalle Pou, mantém sua preponderância no interior do país, inclusive ganhando alguns importantes postos antes ocupados pela oposição. Por outro lado, não obstante a perda de departamentos, a Frente Ampla angariou expressivas vitórias em Montevidéu e Canelones, que concentram cerca de 55% da população uruguaia.
Apesar de existirem diferentes interpretações para a vitória da Coalizão Multicolor na eleição presidencial do ano passado, que destituiu a Frente Ampla da presidência depois de 15 anos, existe certo consenso sobre ao menos duas questões que estiveram no centro de tal giro à direita: a insatisfação com os crescentes níveis de desemprego e pobreza no país e o expressivo aumento da insegurança pública. Em relação a esta última agenda, foi realizado, paralelamente às eleições presidenciais do ano passado, o plebiscito “Vivir sin miedo”, envolvendo projeto de reforma constitucional em matéria de segurança promovido pelo senador blanco Jorge Larrañaga, que se transformou em importante ação mobilizadora para a candidatura de Lacalle Pou, apesar de não ter recolhido quantidade suficiente de votos para a aprovação do projeto.
Após sua eleição, uma das primeiras medidas adotadas pelo governo foi o envio ao Congresso da Lei de Urgente Consideração (LUC), que, após ter passado por mudanças no Legislativo, teve o texto final promulgado pelo Executivo com 476 artigos, dos quais 117 dispõem sobre segurança pública. Por sua vez, a Frente Ampla tem trabalhado para revogar parte dessa lei, enquanto outros grupos da oposição ainda estão debatendo sobre a via que irão adotar: a revogação total ou de artigos específicos.
Importante destacar que, em 20 de outubro deste ano, José Mujica, ex-presidente do Uruguai pela Frente Ampla de 2010 a 2015, renunciou à sua cadeira no Senado pelo motivo da exposição ao Covid-19 potencializada por sofrer de uma doença autoimune. Na carta de sua renúncia, Mujica declarou que não estava se retirando da política, mas sim da linha de frente, que, segundo ele, em seu discurso de despedida, teria que estar aberta às novas gerações.
- A estratégia conciliadora de Alberto Fernández na Argentina
Em recessão econômica desde 2018, a Argentina tem registrado indicadores econômicos negativos, tendência potencializada pelo contexto da pandemia. Apesar do registro de queda da inflação nos primeiros oito meses de 2020, o PIB do primeiro semestre deste ano registrou uma queda de 12,6% em comparação ao mesmo período de 2019, e os salários reais, também nestes primeiros seis meses, diminuíram 3,3%, enquanto o terceiro trimestre apresenta taxa de desemprego de 13,1%.
Por sua vez, desde sua posse em dezembro do ano passado, o governo tem implementado medidas econômico-sociais para conter tais tendências negativas, incluindo a reestruturação da dívida externa do país, que obteve sucesso junto aos credores privados, com 99% da dívida reestruturada, e com negociações em andamento junto ao FMI, tendo em vista os créditos contraídos junto ao organismo em 2018. Essa renegociação, contudo, está distante de ser consensuada. Desde a chegada de uma missão do organismo na Argentina, em 17 de novembro deste ano, setores políticos que rechaçam o diálogo com o FMI têm se manifestado publicamente em oposição à tentativa de acordo. Dentre estes, constam apoiadores críticos do governo e senadores do Frente de Todos, que enviaram uma carta à diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, apontando motivações políticas para a concessão do empréstimo ao país em 2018, durante a gestão de Macri.
Desde junho deste ano, são convocadas manifestações capitaneadas por setores da oposição de direita, destacadamente correligionários da coalizão Juntos por el Cambio, cujo líder é o ex-presidente Mauricio Macri. Após a declaração de Alberto Fernández de que seria realizada uma intervenção na agroindústria Vicentin, em estado de falência desde 2019, houve uma forte reação do setor agroexportador e foi engendrada a primeira manifestação de relevância de oposição ao governo, em 20 de junho deste ano, cunhada pelos organizadores de banderazo. Essa manifestação e as que se seguiram nos meses seguintes caracterizaram-se por apresentar bandeiras diversas – a exemplo da defesa da propriedade privada, rechaço às medidas de quarentena e ao governo -, mas mantendo a centralidade de temáticas como a contraposição à intervenção federal em Vicentin e ao projeto de lei de reforma judicial enviado ao Legislativo pelo governo.
Por seu turno, a questão agrária em específico já revela que existe um certo desgaste do governo também perante a ala esquerda de sua coalizão, especialmente diante dos movimentos e organizações sociais esquerdistas que se portaram como “apoiadores críticos” da coalizão governista. Em outubro deste ano, a ativista Dolores Etchevehere ocupou junto de lideranças do movimento Projeto Artigas – como o líder sindical Juan Grabois – parte da extensa propriedade rural de sua família em Entre Rios. Dolores é irmã de Luis Miguel Etchevehere, ex-presidente da Sociedade Rural Argentina e ex-ministro da Agricultura do governo de Macri. Após decisão da Justiça local pelo desalojamento da propriedade, os integrantes do Projeto tiveram que sair da região, o que contou com a comemoração dos setores da oposição de direita ao governo, marcadamente macristas, contribuindo para a sua reiterada pauta de defesa da propriedade privada.
Cabe mencionar que a chancela do governo à decisão judicial rendeu críticas de tais movimentos sociais esquerdistas. Um de seus principais expoentes, Juan Grabois, é o principal articulador do Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE) e da Confederação dos Trabalhadores da Economia Popular (CTEP), e apesar de sua estreita e histórica vinculação com os partidos da oposição de esquerda ao kirchnerismo, prestou apoio à candidatura de Fernández no último pleito. À época, o fez em aliança com o Patria Grande, movimento político oriundo dos setores estudantis, alinhado às perspectivas da teologia da libertação e com consideráveis vínculos com movimentos sociais tais como o MST, do Brasil.
Ainda em outubro, outro capítulo das tensões entre o governo Fernández e os movimentos sociais esquerdistas tomou os noticiários argentinos, diante dos confrontos que marcaram o desalojamento de ocupações urbanas irregulares no bairro de Guernica, em região ao sul de Buenos Aires. Ocupada desde julho, a área de cerca de 100 hectares chegou a abrigar 2.500 famílias, e a maioria se retirou pacificamente do local. No entanto, a resistência imposta por parte dos ocupantes, junto de movimentos sociais vinculados às questões de moradia, como o MTE, gerou um impasse resultante em posterior confronto com a polícia, que executou o desalojamento, necessitando da mobilização de nada menos do que 4.000 policiais na operação, marcada por confrontos violentos. Diante dos confrontos, setores da oposição de esquerda ao governo chegaram a acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Tanto no caso envolvendo a propriedade rural dos Etchevehere quanto no de Guernica, o presidente Fernández insistiu que a resolução dos conflitos se desse dentro dos marcos da institucionalidade, contrariando as pressões dos núcleos mais radicais do governo e mesmo dos movimentos sociais que lhe prestaram apoio crítico no processo eleitoral recente. Dessa forma, demarcou firmemente suas diferenciações frente aos setores da oposiçao de esquerda, e reiterou seu perfil moderado, marcado pela busca do diálogo e interlocução constante com a oposição ao centro e à direita.
No plano regional, ainda nos primeiros meses deste ano, Fernández teve desentendimientos diplomáticos com o presidente chileno Sebastián Piñera e com Jair Bolsonaro, referentes à comparação de medidas de combate à pandemia adotadas nesses países. Além do mais, o governo argentino declarou sua retirada das negociações do MERCOSUL com a União Europeia (UE) e a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), enfatizando uma orientação protecionista em detrimento das movimentações liberalizantes defendidas pelos líderes de Brasil, Chile e Uruguai. Aos poucos, contudo, as tensões se dissolveram, com o retorno da Argentina às referidas negociações e posteriores declarações públicas de Fernández em prol da manutenção e potencialiação da cooperação com os três países citados.
Nessa mesma esteira, a Argentina concedeu voto favorável ao informe apresentado por Michelle Bachelet, que denunciou violação de direitos humanos na Venezuela, e se absteve em votação da declaração da OEA que condenou as eleições convocadas neste país. Dessa forma, demonstra-se que o perfil de maior abertura do governo ao diálogo com os setores liberais e conservadores não se restringe à política interna, estendendo-se, portanto, ao panorama da política exterior, na medida em que se distancia da antiga aliança do kirchnerismo com o chavismo no panorama regional sul-americano. Ainda assim, o chanceler argentino fez questão de repudiar as sanções e bloqueios aplicados à Venezuela.
Observa-se que, diante de uma conjuntura política regional marcada pela hegemonia de governos conservadores em países-chave para os interesses nacionais argentinos, e diante das complicações econômicas decorrentes da pandemia, o governo Fernández opta por uma via de interlocução com distintos atores, afastando-se de postura confrontacionista que poderia resultar no isolamento político do país. No entanto, tais movimentações não refletem um abandono dos interesses regionais outrora sustentados pelos governos kirchneristas nas gestões de Néstor e Cristina. São explícitos, nesse sentido, os anseios oficialistas pelo revigoramento da UNASUL, num contexto de vitórias das esquerdas na Bolívia, de desgaste de Piñera no Chile e de vindouras eleições no Equador. Após a vitória do MAS na Bolívia, que foi bem recebida por Fernández e seus correligionários, o presidente argentino conduziu Evo, que se encontrava exilado em Buenos Aires, até a fronteira com a Bolívia em La Quiaca, chancelando seu reingresso de facto à política boliviana.
- A instabilidade política no Peru
O Peru, país sul-americano que ao longo do século XXI apresentou taxas de crescimento elevadas e acima da média de seus vizinhos, atravessa um momento bastante particular de crônica instabilidade política. Refletindo problemas e inconsistências institucionais que iniciaram ainda com a destituição de Fujimori por “incapacidade moral” no ano 2000, o Peru recentemente empossou o seu quarto presidente dentro de uma mesma gestão, iniciada em 2016 com a eleição de Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK.
A solução encontrada em 2000 para a destituição de Fujimori, que envolveu a aplicação do argumento de “incapacidade moral” para legitimar a retirada do então presidente peruano, tornou-se um precedente perigoso e que se combinou a escândalos de corrupção comacusações contra outros presidentes do país.
Além de Kuczynski, três ex-presidentes foram alvo de suspeições de corrupção envolvendo sustentáculos da Operação Lava-Jato no país. Alejandro Toledo, que governou entre 2001 e 2006, é acusado de ter recebido suborno de US$ 20 milhões da Odebrecht quando comandava o país. Alan García, que presidiu o país em duas ocasiões (1985-1990 e 2006-2011) e constitui uma figura histórica da política peruana, também respondia por incriminações envolvendo a empreiteira brasileira.
Diferentemente de Toledo, que fugiu para os Estados Unidos, García cometeu suicídio em sua casa, em Lima. Já Ollanta Humala (2011-2016) foi preso em 2017, tendo sido também acusado de participação no esquema da Odebrecht. O processo, contudo, não avançou, e o ex-presidente recebeu o direito de ir para o regime de prisão domiciliar enquanto as investigações prosseguem.
Convém destacar que as acusações decorreram em um momento posterior ao término desses mandatos, tendo sido resultado da Comisión Lava Jato, que, inaugurada no final de 2015, foi retomada no início do governo PPK com o objetivo de finalizar investigações inconclusas. Contando com a cooperação e informações do Ministério Público brasileiro e do Departamento de Justiça e Tesouro estadunidenses, as acusações acima referidas vieram à tona, respingando inclusive no governo de PPK, acusado de prestar assessoria à empresa brasileira entre 2004 e 2007.
Em 2016, PPK foi eleito presidente do Peru, em uma vitória apertada sobre Keiko Fujimori. Desde o início de seu governo, foi alvo de ativa posição dos aliados de Fujimori. O agora ex-presidente foi também acusado de envolvimento com escândalo com a Odebrecht durante a época em que trabalhou como ministro de Alejandro Toledo. Acabou renunciando ao cargo, mas ainda assim foi preso. Atualmente, cumpre prisão preventiva domiciliar, à espera de julgamento.
A despeito das instabilidades políticas desencadeadas por acusações de corrupção e fragilidades institucionais, o Peru mantinha-se no cenário sul-americano como um país que tinha uma estabilidade política – as transições de governo ocorreram de forma tranquila – e uma performance econômica satisfatória, acima das média dos vizinhos, em parte motivada pelo aumento da produção e exportações de cobre, sobretudo para a China.
Nos últimos meses, contudo, a situação se agrava e o que se percebe é uma deterioração institucional somada às crises sociais, econômicas e sanitárias decorrentes da pandemia da Covid-19. Cabe recordar que, no caso da pandemia, o Peru é o país sul-americano que apresenta os piores indicadores em termos per capita, inclusive em relação ao Brasil.
Com a renúncia de PPK em março de 2018, Martín Vizcarra, vice-presidente com pouca expressão, ascendeu ao poder graças à Lava Jato. Chegou, inclusive, a declarar que era um fã entusiasmado da Operação.Ao final de 2019, dissolveu o Congresso, que por sua vez tentou afastá-lo no dia seguinte. O Tribunal Constitucional, contudo, acatou a demanda de Vizcarra.
Com a eleição de um novo parlamento no começo de 2020, o partido de Keiko Fujimori, que fazia ampla oposição à Vizcarra, teve uma redução significativa. Vizcarra desfrutava de uma aprovação de 80%, bastante acima da média dos outros presidentes peruanos, embora não tivesse partido com representação no Congresso – o Peruano Por el Kambio, PPK, desapareceu.
Sem bancada e com relações conflituosas com o Congresso, o ex-presidente Martín Vizcarra já havia sobrevivido a uma votação de impeachment em setembro, quando era acusado de realizar contratos irregulares com o cantor Richard Cisneros. Cerca de um mês depois, começaram a emergir novas denúncias contra Vizcarra, envolvendo um suposto recebimento de suborno durante seu mandato como governador em Moquegua, entre 2011 e 2014. As acusações, partes da saga da Lava Jato, eram de que o então mandatário havia recebido propinas para favorecer que empresas privadas participassem da construção do Hospital Regional de Moquegua.
Sob a liderança de Manuel Merino, presidente do Congresso, Vizcarra foi julgado sob o argumento de “incapacidade moral”, conforme ocorrido com Fujimori em 2000. Desta vez, Merino conseguiu os votos suficientes e, em um processo bastante acelerado, destituiu Vizcarra. O então presidente não contestou a decisão do Congresso e afirmou que não tomaria nenhuma medida legal.
Em um contexto de amplo apoio popular ao presidente destituído, combinado ao descrédito do Congresso frente à opinião pública, eclodiram uma série de protestos na capital Lima e em outras cidades do Peru. Os peruanos, cientes de que 68 dos 130 congressistas também são acusados de corrupção, viram a saída de Vizcarra como um assalto ao poder por parte de Merino. As manifestações contra Merino, protagonizadas pela juventude e que resultaram em uma série de feridos e duas mortes, acabaram pressionando o outrora presidente do Congresso a renunciar.
Com a saída de Merino, o Congresso colocou na presidência Francisco Sagasti Hochhauser, terceiro líder do país em apenas uma semana. Apresentado como político de centro e com perfil técnico, Sagasti assume a presidência de forma interina e tem a missão de conduzir o governo até a próxima disputa presidencial.
De toda forma, a crônica instabilidade política peruana, em parte proporcionada pelo moralismo lavajatista que também afetou o Brasil, revela que o país necessita modificar e realizar uma série de reformas institucionais, a fim de evitar futuras rupturas. Com uma recessão esperada de cerca de 14% para 2020, com elevados índices de desemprego – mais de 700 mil peruanos estão desempregados somente na capital Lima -, o Peru enfrenta uma miríade de desafios e necessita equacionar, além de reformas econômicas e sociais, inadiáveis mudanças constitucionais e institucionais.
- Perspectivas para as eleições presidenciais no Equador
No dia 7 de fevereiro de 2021 a população equatoriana irá às urnas para escolher os seus próximos presidente e vice-presidente, além de cinco representantes para o Parlamento Andino e 137 representantes para a Assembleia Nacional. Segundo a CEDATOS, em pesquisa divulgada no dia 28 de outubro, Guillermo Lasso, do Movimiento Creando Oportunidades (CREO), figura em primeiro lugar nas intenções de votos, seguido por Andrés Arauz, da coalizão Frente Unión por la Esperanza (UNES), e Yaku Pérez, candidato do Pachakutik.
Em 2017, Guillermo Lasso, do CREO, foi o principal contendor do atual presidente Lenín Moreno, do Alianza PAIS, nas eleições presidenciais. À época, Lenín Moreno foi apoiado pelo então presidente Rafael Correa, que desde 2007 estava no cargo, conduzindo o processo de mudanças políticas e sociais conhecido como “Revolução Cidadã”. Passada a eleição, Lenín se aproximou tanto de grupos conservadores da oposição de direita, como o CREO, quanto da extrema-esquerda, como o partido indigenista Pachakutik, para afrontar a prolongada hegemonia de Correa, que diante de investigações da justiça teve de deixar o país em direção à Bélgica.
Lasso é um dos principais acionistas de um dos maiores bancos do país, o Banco Guayaquil, e foi ministro-secretário da Economia durante o governo de Jamil Mahuad, em 1999. Andrés, candidato apoiado por Rafael Correa, que tentou concorrer em sua chapa na condição de vice-presidente, representa o conjunto das forças políticas alinhadas às perspectivas do antigo oficialismo. Em sua coalizão, a UNES, constam partidos como o Movimiento Revolución Ciudadana (MRC), fundado por Correa após sua perda de hegemonia no Alianza PAIS, o Centro Democrático (CD), centrista, e a Fuerza Compromiso Social (FCS).
Cabe destacar que a candidata do oficialista Aliana PAIS, Ximena Peña, aparece com cerca de 1% das intenções de votos nessa mesma pesquisa, indicando a fragilidade de Lenín Moreno na atual conjuntura política equatoriana. O Pachakutik, vinculado a uma série de movimentos indigenistas, ambientalistas, camponeses e organizações não-governamentais, concentra o apoio da extrema-esquerda, e reivindica a liderança das manifestações sociais que tomaram as ruas de Quito e de outras importantes cidades do país no final de 2019. Apesar de expressiva representação nas pesquisas, é difícil crer que tal candidatura amplie sua capacidade eleitoral até o pleito, tendo em vista a envergadura e enraizamento das forças políticas que dirigem as coalizões dos dois primeiros colocados.
O novo governo eleito assumirá o país em 24 de maio de 2021, e terá de lidar com grandes desafios, tendo em vista que a pandemia do coronavírus acirrou a crise econômica do país, com previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) indicando queda do PIB entre -7,3% e -9,6% em 2020.
[1] La Nación: http://www.lanacion.cl/teillier-con-la-oposicion-tenemos-diferencias-que-no-han-permitido-hasta-ahora-llegar-a-acuerdos/
[2] La Tercera: https://www.latercera.com/politica/noticia/presidente-pinera-a-partidos-de-chile-vamos-la-constitucion-que-queremos-para-chile-nos-une-y-probablemente-va-a-dividir-a-la-oposicion/O3V67EQV2ND5BMQ42FKUY4GV2U/
[3]https://theconversation.com/el-proceso-constituyente-en-chile-y-el-desafio-de-la-democratizacion-148764
[4] https://www.elmostrador.cl/noticias/sin-editar/2020/10/31/prensa-alemana-se-pregunta-tras-el-plebiscito-esta-chile-mas-cerca-de-tener-una-constitucion-ecologica/
[5] https://www.tuinfluyes.com/data-influye/
[6] https://www.elpais.com.uy/informacion/politica/mira-todos-resultados-elecciones-setiembre-departamentales-municipales-intendencias-municipios-alcaldes-gano.html